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2.3 O Direito do Trabalho na sociedade: funções histórico-teleológicas

2.3.1 O princípio da proteção

Dada a relevância da temática, é de bom alvitre começar este tópico enunciando que o princípio protetor insere-se como ponto de partida para a formação do Direito do Trabalho, como fio condutor para seu desenvolvimento e como motriz para sua existência. Ele

é a “a raiz sociológica do Direito do Trabalho e imanente a todo o seu sistema jurídico”.112 É o

princípio cardeal, a viga mestra, a pedra de torque do ramo juslaboral. Segundo PINHO PEDREIRA, “a proteção do trabalhador é a causa fim do Direito do Trabalho”.113

Com o mesmo ponto de vista, aduz VIANA que “a norma trabalhista não busca apenas regular as relações entre dois contratantes (para isso seria bastante o direito comum), mas proteger um deles, em face do outro. Se a tutela se vai, nada lhe sobra de especial”.114

Simples assim: sem a proteção ao trabalhador não haveria Direito do Trabalho; sem o princípio da proteção não há razão de ser para a sua existência.

Como a História descreve, o Direito do Trabalho surge intervencionista, “como reação aos postulados da Revolução Francesa (1789) que asseguravam a completa autonomia da vontade nas relações contratuais, permitindo a exploração do trabalhador”.115

Em outros termos: ele revela-se sob a forma de medidas cogentes e tutelares do Estado contra aspectos desumanos, degradantes e perversos da exploração de uns homens sobre os outros.116 Isto é, como instrumento para atribuir certa civilidade (embora

hodiernamente ainda incipiente e precária) à exploração do trabalho pelo capital.

Desse modo, o ramo juslaboral despontou da necessidade de proteger o trabalhador em sua condição de ser humano, atuando no cercear da liberdade contratual trabalhista, quando ela mesma torna-se instrumento de opressão do mais forte em relação ao mais fraco. Consoante RIPERT, citado por SÜSSEKIND, “a experiência demonstrou que a liberdade não basta para assegurar a igualdade, pois os mais fortes depressa se tornam opressores”.117 É pertinente também a máxima “entre o fraco e o forte a liberdade escraviza, a

lei é que liberta”.

O primeiro momento da regulação das relações de trabalho (em sua origem, restrita à forma subordinada e ainda atrelada à modalidade contratual da locação de serviços) ficou a cargo da regulação civil, até então baseada na igualdade entre os contratantes, na

112 SÜSSEKIND et al. Instituições de Direito..., v. 1, p. 128.

113 PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., 2. ed., p. 26.

114 VIANA, A proteção social do... In: PIMENTA, et al Direito do Trabalho..., p. 170. 115 SÜSSEKIND et al. Instituições de Direito..., v. 1, p. 128.

116 PINHO PEDREIRA descreve o cenário da exploração dos trabalhadores pós-Revolução Industrial: “Movidos

pela ânsia de obter grandes lucros e pela necessidade de enfrentarem a competição que entre eles se estabeleceu, desencadearam os industriais a mais desenfreada exploração de seus operários, pagando-lhes salários irrisórios, submetendo-os a jornadas extenuantes, a numerosos acidentes pelo manejo de máquinas perigosas, dos quais frequentemente resultavam incapacidades totais, colocando-os em ambientes de trabalho insalubres e arriscados, nos quais contraíam muitas enfermidades, e não lhes prestando assistência quando adoeciam ou em qualquer outra situação em que a necessitassem”. PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., 2. ed., p. 27.

autonomia da vontade e na filosofia política individualista, asseguradas pelo Estado em face dos postulados da Revolução Francesa e interesses da classe burguesa.

Contudo, foi-se verificando que, em verdade, referida igualdade se detinha estritamente ao plano jurídico, já que a realidade demonstrava que a inferioridade do contratante-trabalhador era tamanha que quem impunha unilateralmente as cláusulas e condições de trabalho era exclusivamente o tomador desses serviços, que o fazia livremente, de acordo com a nefanda lei da oferta e da procura.118

Dessa maneira, o trabalhador, que necessita da contraprestação pelo seu trabalho para a subsistência própria e a de sua família, sujeitava-se (e ainda hoje se sujeita) a quaisquer condições que o tomador de serviços lhe impunha, posto que não era livre para negociar a melhor forma de regulação de seus interesses.

Então, diante da insuficiência de uma igualdade apenas formal – somada à pressão dos sindicatos, partidos políticos e pensadores de ideias progressistas, principalmente de cunho marxista, além da comoção social diante das barbáries contra os trabalhadores –, finalmente, interveio o Estado nas relações econômicas de trabalho.

Essa intervenção, desde sua origem, foi no sentido de proteger o hipossuficiente trabalhador, mediante a prescrição de regras imperativas e irrenunciáveis destinadas à fixação condições de trabalho minimamente necessárias a uma prestação de serviços com dignidade.

Em outros termos, a intervenção do Estado nas relações de trabalho inclina-se para a compensação da desigualdade fática do trabalhador (econômica, hierárquica, cultural, histórica, de oportunidades, de acessos etc.) com uma proteção jurídica que a ele é favorável. Adota o Estado, na tentativa de estabelecer certo nivelamento fático entre os contratantes trabalhistas, a técnica jurídica de tratar desigualmente os desiguais.

PLÁ RODRIGUES cita RADBRUCH, que menciona: “a igualdade deixa assim de constituir ponto de partida do direito para converter-se em meta ou aspiração da ordem jurídica”.119 Aquele autor cita, ainda, L`HOMME, neste mesmo diapasão:

O Direito do Trabalho parece como um direito unilateral porque em seu ponto de partida existe um propósito deliberado, uma preocupação bem definida de favorecer a título exclusivo, ou pelo menos principal, a certas categorias de pessoas. Abandona decididamente o princípio da igualdade jurídica. Para compensar a desigualdade

118 Eis nessas razões os fundamentos para enquadrar o contrato individual do trabalho como um contrato de

adesão.

119 RADBRUCH, Gustavo. Introducción a la Filosofia del Derecho, 1951 apud PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios

econômica que se foi acentuando, cria-se em proveito dos trabalhadores uma série de vantagens que são unilaterais.120

Portanto, o Direito do Trabalho, apoiando-se na proteção ao trabalhador, emerge na tentativa de suplantar uma igualdade meramente formal em prol de igualdade material (real, substanciada) e, sobremaneira, condizente aos valores inerentes à pessoa humana.

Dessa maneira, claro o fundamento primordial que orienta o Direito do Trabalho: o amparo e tutela ao trabalhador (hipossuficiente da relação), inspirado em um propósito de igualdade material e no ideal de justiça social, apresentando-se como ponto de partida e diretriz subsequente de toda a normatividade jurídico-trabalhista.

Destaca-se que impossível se compreender o Direito do Trabalho sem esse olhar pretérito e tuitivo, mormente para entender o seu significado ontológico, teleológico e axiológico, e, a partir daí, moldá-lo para que consiga efetivamente alcançar os objetivos por que pugna.

De outro lado, o Direito do Trabalho sem o princípio de proteção ao trabalhador – objetivando a equalização nas diversas formas de relações laborais nas quais se constata um hipossuficiente –, perde o próprio sentido de sua existência e fica completamente alheio ao seu fim primordial enquanto direito social.

Para PINHO PEDREIRA121, os fundamentos deste princípio são: a subordinação

jurídica do trabalhador ao empregador (que reverbera a supremacia deste sobre aquele, sobremaneira por se tratar de uma relação de poder); a superioridade hierárquica do

empregador (que detém o exercício do poder diretivo, inclusive na sua faceta disciplinar); a

dependência econômica do trabalhador em face do empregador (que decorre do fato de o trabalhador necessitar do trabalho e do salário como único ou principal meio de subsistência); o comprometimento da própria pessoa do trabalhador no desempenho da prestação de serviços (porquanto o obreiro submete-se, na execução dos serviços, a uma diversidade de riscos à sua incolumidade moral e física); a ignorância do empregado a respeito das

condições de trabalho e dos seus próprios direitos (que se agrava no Brasil, levando-se em consideração o percentual de analfabetismo e o quase analfabetismo da população); e o

crônico desequilíbrio do mercado de trabalho (já que, apesar dos movimentos flutuantes, se a oferta de trabalho é superior à demanda, a força contratual daqueles que se colocam no mercado é certamente inferior àquela dos potenciais adquirentes).

120 L`HOMME, Jean. El Derecho del Trabajo y su carácter unilateral, em “la ley”. 14.02.48, t. IXLIX, p. 1003,

p. 1003, apud PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios de..., p. 31.

Como se aufere, os fundamentos do princípio da proteção estão atrelados, direta ou indiretamente, à inferioridade ou hipossuficiência do trabalhador, que, por sua vez, está relacionada à falta de liberdade na manifestação da sua vontade.

Então, forçoso dizer que o trabalhador necessita de proteção em diversos momentos: pré-contratual, contratual propriamente dito, da terminação do contrato e pós- terminação contratual (inclusive, e principalmente, quando desempregado). Ou seja, a necessidade de tutela pelo trabalhador arrasta-se e o acompanha por toda sua vida, laborativa ativa ou inativa.

Quanto às formas de proteção, preleciona CESARINO JÚNIOR:

Esta proteção pode consistir numa autoproteção, quando resulta principalmente da união, da organização desses indivíduos: é o caso do Direito Corporativo; ou numa heteroproteção, quando resulta precipuamente da ação do Estado, embora, em certos casos com pequena participação dos hipossuficientes.122

Logo, o sistema de proteção ao trabalhador não se restringe às medidas interventivas estatais (não só por meio do Direito do Trabalho, mas também por intermédio do Direito Previdenciário), abarcando, ainda, a proteção alcançada mediante a atuação de seus legítimos representantes, os sindicatos das categorias, inclusive quando adotam a greve como mecanismo de resistência e autotutela.

Importante dizer que contemporaneamente a hipossuficencia do trabalhador e a decorrente necessidade de proteção não desaparecem quando da reunião dos trabalhadores; ao contrário, resplandecem e reverberam das organizações sindicais profissionais.

É ainda de se reconhecer o aspecto dinâmico do princípio da proteção, tal como o faz MURADAS:

O sentido tuitivo, em uma perspectiva dinâmica, se relaciona à ideia de ampliação e aperfeiçoamento de institutos e normas trabalhistas. Assim, afiança-se o compromisso da ordem jurídica promover, quantitativamente e qualitativamente, o avanço das condições de pactuação da força de trabalho, bem como a garantia de eu não serão estabelecidos recuos na situação sociojurídica dos trabalhadores. Por conseguinte, são consectários lógicos do princípio da proteção, o princípio da norma mais favorável e o princípio da progressividade dos direitos sociais.123

122 CESARINO JÚNIOR, Direito Social brasileiro. 1940, p. 31 apud SÜSSEKIND et al. Instituições de

Direito..., v. 1, p. 102.

PLÁ RODRIGUES124 considera que o princípio da proteção divide-se em três regras

distintas e independentes, cada qual não se subordinando ou derivando da outra: regra in

dubio pro operário (permite ao juiz ou ao intérprete escolher dentre vários sentidos possíveis de uma norma aquele que seja mais favorável ao trabalhador); regra da norma mais favorável (determina que, no caso de haver mais de uma norma aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável ao trabalhador, ainda que não seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas); e regra da condição mais benéfica (consiste no critério pelo qual a aplicação de uma nova norma trabalhista nunca deve servir para diminuir as condições mais favoráveis em que se encontrava um trabalhador).

Primeiro, registre-se que, embora a precisão do apontamento do conteúdo de cada um dos três citados enunciados, o que PLÁ RODRIGUES denomina de regras, em verdade, consubstancia verdadeiros princípios normativos do Direito do Trabalho. Segundo, mais adequada é a proposição de DELGADO, que prega que este desdobramento não deve prevalecer, haja vista que o princípio tuitivo:

[...] não se desdobra apenas nas três citadas dimensões; abrange, essencialmente, quase todos (senão todos) os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho. Como excluir essa noção do princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas? Ou do princípio da inalterabilidade contratual lesiva? Ou da noção genérica de despersonalização da figura do empregador (e suas inúmeras conseqüências protetivas ao obreiro)?125

Por essa razão, sustenta-se que o princípio da proteção é anterior e fundamentador de todos os demais princípios peculiares do Direito do Trabalho, o que impossibilita, qualquer divisão do princípio tuitivo em apenas três outros princípios, de aplicabilidade mais específica.

Como o mesmo pensamento, SÜSSEKIND esteia que “os fundamentos jurídico- políticos e sociológicos do princípio da proteção geram, sem dúvida, outros, que dele são filhos legítimos”.126 Também PINHO PEDREIRA: “dos princípios fundamentais do Direito do

Trabalho é o de proteção o mais relevante e mais geral, dele constituindo os demais simples derivações”.127

Quanto à aplicabilidade do princípio da proteção, necessário colacionar outro esclarecimento, de DELGADO:

124 PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios de Direito..., 42-3. 125 DELGADO, Princípios de Direito Individual..., p.42. 126 SÜSSEKIND et al. Instituições de Direito..., v. 1, p. 129.

O princípio tuitivo, desse modo, explica o Direito do Trabalho, sua estrutura e funcionamento geral e busca protegê-lo de modificações drásticas que descaracterizem sua natureza, função e objetivos teleológicos. Porém, no cotidiano da aplicação desse ramo jurídico especializado, normalmente cede espaço a regras e princípios mais particularizados, que realizam a tutela geral inspirada pela diretriz da proteção.128

Conclui-se, então, coadunando com o entendimento supraesboçado, que o princípio da proteção ao hipossuficiente trabalhador informa e é parte constituinte não só da essência do Direito do Trabalho, mas também de todo o seu arcabouço principiológico e normativo: parte inseparável. Contudo, sua aplicação prática é mais restrita, já que cede espaço a outras regras e princípios particulares do Direito do Trabalho de aplicabilidade específica.

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