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O estudo da dieta de mamíferos, pós-ingestão, pode ser realizado com base na análise de conteúdos gastrintestinais e na análise de amostras fecais. A primeira apresenta a vantagem de ser individual, ou seja, permite o conhecimento da dieta de cada indivíduo e a comparação da dieta entre classes etárias e sexos diferentes. Além disso, usualmente os itens alimentares apresentam-se menos digeridos, facilitando a sua identificação e a estimativa de massa ingerida. Por outro lado, as suas desvantagens referem-se principalmente ao fato de ser um método, que no caso dos mamíferos, requer a retirada de indivíduos da população estudada e é limitado a um número menor de unidades analisadas. Já, o estudo da dieta ou ecologia alimentar com base em amostras fecais traz as vantagens de não requerer a retirada de indivíduos da população, fornecer um número maior de unidades para a análise e ser o método com a melhor relação custo-benefício, considerando os custos de um projeto. Entretanto, nas amostras fecais os itens alimentares já sofreram todo o processo digestivo e geralmente restam apenas as partes não digeríveis ou menos digeríveis, tornando a identificação dos itens mais difícil ou até mesmo impossível, como no caso dos animais de corpo mole (p. ex., anelídeos, moluscos) ou sem anexos epidérmicos queratinizados (anfíbios). Considerando o método de análise de amostras fecais para determinação da dieta de carnívoros, duas questões vêm à tona: a necessidade de identificação da autoria das fezes em nível específico, ou seja, conhecer quem são os carnívoros que defecaram e a necessidade de identificação de itens alimentares, usualmente bem digeridos e fragmentados. Na tentativa de responder à primeira questão, vários métodos de campo e laboratório têm sido empregados de maneira complementar ou isoladamente. Em campo, a detecção do odor e local de deposição das fezes, assim como de rastros associados às amostras, pode guiar o pesquisador na identificação das espécies que defecaram, embora haja certo grau de subjetividade na caracterização do odor, sobreposições de locais de defecação e sobreposições de tamanho e forma das pegadas entre as espécies. Nesse útlimo caso, os pequenos felinos neotropicais simpátricos e sintópicos em áreas de Floresta Atlântica como Leopardus wiedii, Leopardus tigrinus e Puma yagouaroundi são um bom exemplo. Em laboratório, a morfologia das fezes, o volume fecal, o maior e o menor diâmetro e o comprimento das amostras, além da observação de seu conteúdo (itens alimentares), também podem fornecer pistas sobre a espécie que defecou. Métodos mais sofisticados de análise laboratorial como a extração, identificação e quantificação de ácidos biliares e extração e identificação de DNA das células da mucosa intestinal presentes no muco que reveste as fezes, têm

sido aplicados a um número restrito de espécies e áreas, ou por terem problemas metodológicos não resolvidos, ou por serem economicamente inviáveis. Contudo, a identificação das espécies que defecaram também pode ser realizada através da identificação dos pêlos dos próprios carnívoros presentes em suas fezes. Estes mamíferos arrancam seus pêlos com a língua ou com os dentes incisivos e acabam ingerindo-os devido ao comportamento de autolimpeza e manutenção da pelagem, os quais podem ser eliminados nas próprias fezes deixando uma assinatura da espécie que defecou. Na identificação dos itens alimentares consumidos é usual a comparação dos fragmentos não digeridos com coleções de referência e auxílio de especialistas. No caso dos vertebrados, restam nas fezes as escamas, dentes, ossos e otólitos dos peixes; as escamas, ossos e dentes dos répteis; as penas, ossos, unhas e bicos das aves; e os pêlos, ossos, unhas, cascos e dentes dos mamíferos. No caso de invertebrados terrestres, restam fragmentos do exoesqueleto quitinoso e nos aquáticos, fragmentos do exoesqueleto calcário. Dos frutos, usualmente restam partes mais lignificadas, como sementes, fibras e cascas. Considerando os mamíferos consumidos por carnívoros, sua identificação é feita tradicionalmente através dos dentes encontrados nas amostras e mais recentemente o método de identificação de pêlos-guarda tem se mostrado uma ferramenta complementar bastante útil. O presente estudo dedica-se a aplicar o método de determinação dos predadores e presas, através da identificação de seus

pêlos-guarda presentes nas amostras fecais. Para tal, amostras de fezes de carnívoros terrestres foram coletadas nas trilhas e estradas da Reserva Volta Velha, Município de Itapoá, Santa Catarina, em 70 expedições mensais entre 1995 e 2001, com duração de dois a quatro dias e totalizando cerca de 15 km percorridos a pé em cada expedição. Todas as amostras coletadas tiveram o volume total aferido através do deslocamento do equivalente em água em uma proveta graduada contendo um volume de água conhecido. Em seguida, as amostras foram secas e triadas, separando os fragmentos de itens alimentares em grandes grupos. Para os mamíferos consumidos, foram separados os fragmentos de ossos, dentes, pêlos e eventualmente unhas e cascos. Para a identificação da espécie de carnívoro que defecou foram utilizados os rastros associados às amostras no campo, aliados ao volume da amostra e à presença de pêlos da própria espécie, como detalhado a seguir. Durante o processo de triagem, especial atenção foi dada à procura macroscópica por pêlos dos predadores. São pêlos evidentes nas amostras e que se destacam dos demais por serem escassos e diferentes do maior volume de pêlos das presas. Todos os pêlos dos carnívoros e uma sub amostra de até 20 pêlos-guarda das presas foram preparados conforme o protocolo de preparação de lâminas para identificação em microscopia óptica: lâminas para a visualização da medula dos pêlos foram preparadas através da diafanização dos mesmos em água oxigenada comercial 30 volumes por 80 minutos e lâminas para visualização da cutícula

dos pêlos, confeccionadas imprimindo a superfície dos pêlos sobre uma fina camada de esmalte para unhas incolor previamente seca por 15 a 20 minutos. Para a garantia na identificação dos pêlos das presas, o protocolo foi repetido três vezes para cada amostra. A identificação de amostras fecais dos carnívoros de pequeno e médio porte através de pegadas associadas mostrou-se inviável no presente estudo porque nenhuma das fezes coletadas foi observada em campo com pegadas associadas. Esse fato está possivelmente relacionado ao substrato de deposição das fezes que muitas vezes não é favorável ao registro das pegadas devido à presença da serapilheira, às chuvas freqüentes na região de estudo e à periodicidade e duração das visitas a campo que dificultou a coleta de amostras recentes (apenas 9,6%). Vinte e um por cento das amostras de fezes de carnívoros coletadas apresentaram pêlos de predadores. As espécies de carnívoros identificadas foram a irara (Eira barbara), o furão (Galictis cuja), o gato mourisco (Puma yagouaroundi), o gato-do- mato- pequeno (Leopardus tigrinus), o gato maracajá (Leopardus wiedii), o quati (Nasua nasua), e o mão pelada (Procyon cancrivorus). A mensuração dos volumes fecais médios (vm) não foi útil às identificações pois mostrou semelhanças interespecíficas: Eira barbara (n=1), v = 9 ml; Galictis cuja (n=7), vm = 8,6 ml; Puma yagouaroundi (n=12), vm = 12,5 ml; Leopardus tigrinus (n=20), vm = 12,9 ml; L. wiedii (n=1), v = 22 ml; Nasua nasua (n=1), v = 6 ml e Procyon cancrivorus (n=1), v = 9 ml. Ainda nesse sentido, Puma yagouaroundi e L. tigrinus mostraram

grande amplitude de volume fecal, 3 ml a 37 ml e 5 ml a 23 ml, respectivamente. Foram constatadas 12 espécies de mamíferos consumidas, listadas a seguir: os roedores Akodon cursor, Necromys lasiurus, Delomys dorsalis, Holochilus brasiliensis, Nectomys squamipes, Oecomys trinitatis, Oligoryzomys nigripes, Oryzomys sp. e Juliomys pictipes; e os marsupiais Lutreolina crassicaudata, Monodelphis iheringi e Philander frenatus. A identificação do mamífero consumido não foi possível em 25 amostras devido à escassez de pêlos-guarda ou porque a microestrutura da medula estava danificada a ponto de impedir a caracterização do padrão medular. É importante ressaltar que com a triplicata do protocolo de preparação e análise de lâminas com pêlos de presas para cada amostra, os resultados foram freqüentemente diferentes e complementares entre as réplicas, mostrando a importância das mesmas na melhora qualitativa e quantitativa das identificações. No presente estudo, a identificação microscópica dos pêlos dos carnívoros forneceu um diagnóstico seguro das espécies que defecaram, o qual só poderia ser obtido de outra forma com técnicas com mais alto custo; também permitiu a separação de espécies distintas de mamíferos consumidos, embora seus pêlos fossem macroscopicamente semelhantes, evidenciando a importância da análise microscópica.

Palavras-chave: dieta de carnívoros; escatologia; identificação de pêlos; tricologia.

VOZ E AMBIENTE DE TRABALHO DO PROFESSOR DA REDE PÚBLICA DE