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PARTE I ENQUADRAMENTO TEÓRICO/REVISÃO DE LITERATURA 2 CAPÍTULO II SOCIEDADE EM REDE

2.4 Novos paradigmas?

2.4.1 No tempo

O tempo não é apenas uma unidade métrica, é muito mais do que apenas uma medida. O tempo na sociedade em rede significa dizer que o tempo voa, foge e não retorna – em latim, a expressão usada é “tempus fugit”. Combinar o “tempus fugit” com a sociedade em rede parece fazer todo o sentido, pois o tempo adquiriu uma nova dimensão no modelo de organização social da sociedade em rede. Nesse sentido, as sociedades vivem de acordo com a complexidade do ritmo impostos por motivos culturais, sociais e econômicos, regendo o dia a dia dos indivíduos com base em um tempo socialmente construído e diferentemente valorado (e.g., Castells, 2011; Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007). Assim, pode-se considerar que uma das principais consequências da sociedade em rede está relacionada ao tempo que despendemos para realizar nossas atividades e as suas diferentes formas de uso. Há uma forte percepção de que houve uma alteração profunda no uso do tempo no dia a dia, seja na forma de estar, quer no emprego ou na vida particular. Abriram-se novas e significativas perspectivas em múltiplos domínios da vida quotidiana, e facilitou-se a concretização de significativas mudanças, tanto em nível individual como em nível da sociedade atual (e.g., Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007; Picoito & Almeida, 2007; Almeida, 2007). “O tempo é talvez a variável que a sociedade em rede mais influenciou. Na verdade, o tempo fisicamente não acelerou, apenas a nossa concepção mudou em resultado da forma como lidamos com ele” (Coelho, 2007, p. 49).

O tempo fisicamente não acelerou, o que mudou foi, em um mesmo espaço de tempo, o aumento de produtividade nos processos de produção, de gestão e da distribuição de bens e serviços no mundo, além da rápida e constante evolução técnica dos processadores de dados que permitem cada vez mais o aumento da velocidade de transmissão da voz, dados, imagens estáticas ou de vídeo e das redes de telecomunicações. Assim, os indivíduos ficam reféns dessa evolução tecnológica e são obrigados a acelerar as suas respostas, alterando substancialmente a forma de executar as suas rotinas profissionais e pessoais (e.g., Coelho, 2007; Castells, 2011; Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007). Correia (2007, p.571-572) complementa que: “[...] o tempo da sociedade em rede parece ser nunca suficiente porque a capacidade humana de gerir a multitarefa é quase sempre derrotada pela pressão, da pressa e corrida contra o relógio, transformando-se numa competição em que as competências se viram contra o próprio indivíduo”.

Nesse cenário, as atividades se desenvolvem em um único tempo, sem distinção entre as atividades do trabalho, do lazer, do estudo e da diversão, assumindo-se assim a multitarefa (resolver problemas em múltiplos cenários) como uma situação de normalidade em nossas vidas (e.g., Coelho, 2007; Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007; Correia, 2007).

Para alterar essa realidade do “tempus fugit” só a resistência do homem impedirá a aceleração ilimitada do tempo em nossas rotinas diárias e, para isto, faz-se “necessário repensar e compreender o papel e os impactos das TIC nessa mudança” (e.g., Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007, p. 627).

2.4.2 Na comunicação

Afinal, como se define comunicação? É importante destacar que um dos conceitos mais tradicionais de comunicação assume a perspectiva de que uma mesma comunicação pode ter diferentes conotações, variando de acordo com o sentido e a interpretação de cada pessoa. Comecemos por palavras-chave da definição de comunicação dada pelo dicionário Houaiss da língua portuguesa: comunicar envolve transmitir, receber, partilhar, saber fazer, ensinar, expor informações, instruções, ideais, sentimentos por meio de recursos físicos ou dispositivos eletrônicos. A comunicação pode envolver uma ou mais fontes de emissão e um ou mais receptores. Quando falamos em comunicação em massa, estamos dizendo que a comunicação é dirigida a um grupo de pessoas numericamente vasto, estipulado e fixo, disperso e não homogêneo (e.g., Harlow & Compton, 1976; Houaiss, Villar & Franco, 2009; G. Cardoso, 2014).

A partilha ou transmissão de informações é um dos aspectos mais importantes da comunicação e é muito valorizado na sociedade em rede, mas, para que seja feito corretamente, é necessário que os indivíduos tenham habilidade técnica para fazê-lo (e.g., Harlow & Compton, 1976). Entretanto, esse processo não é novo, e desde o século XIX observa-se a aceleração dos fluxos de informação e comunicação em nível mundial, trazendo consigo a emergência de públicos modernos que se utilizam de técnicas de comunicação, mas já se criticava que tal processo ficava restrito a círculos sociais comuns sem a sua ampliação para diferentes classes sociais (e.g., Harlow & Compton, 1976; Mattelart, 2006) .

Passadas décadas, foi somente partir dos movimentos sociais dos anos 1960, fortemente acentuados pelos jovens, que a partir década de 1980 surgiram novas formas de fazer reivindicações por meio de movimentos sociais, seja contra a arbitrariedade do autoritarismo, ou contra as injustiças sociais ou até mesmo na procura de experimentações pessoais. Tais movimentos, de caráter libertador das minorias, recorreram ao uso individualizado e descentralizado da tecnologia. Esses acabaram por ter forte influência na criação de uma nova cultura baseada na experimentação de símbolos da comunicação que são considerados o alicerce para modelo atual de apropriação social da mídia (e.g., G. Cardoso, 2014).

No século XXI, não é mais possível compreender a sociedade atual limitando-se a um espaço físico (geográfico), porque países, instituições, organizações e pessoas estão interligadas por múltiplas redes de relação e poder, e por meio das diferentes mídias de comunicação partilham espaços de fluxos de informação e conhecimento com objetivos comuns. Cabe ressaltar que, na sociedade em rede, uma das formas de poder mais evidentes está no controle ou na influência sobre a comunicação (e.g., G. Cardoso, 2014; Castells, 2011).

Tal controle e poder estarão sempre condicionados se grupos sociais tiverem ou não conectividade e o acesso a redes para impor seus valores e objetivos à sociedade e a outros para resistir à sua dominação. Tal perspectiva, se analisada do ponto de vista da comunicação, só ocorrerá se a comunicação for vista como um processo inovador e as informações forem interpretadas de forma ativa pelos seus receptores e transmitidas seletivamente para ressignificá-las sempre com a mediação e a participação (comunicação interpessoal e mass media) nos contextos dos indivíduos e suas comunidades locais. Assim, haverá possibilidade da disseminação do conhecimento, do fortalecimento

de novas formas de comunicação e do empoderamento individual, consequentemente, de uma autonomia comunicativa. Caso contrário, se a comunicação for unilateral e encontrar receptores passivos que a absorvam sem questionar novas informações e ideias, corre-se o risco de haver a dominação de culturas externas e valores impostos pelos emissores aos indivíduos e comunidades locais, os enfraquecendo na comunicação, no conhecimento e na cultura local10 (e.g., G. Cardoso, 2014; Castells, 2011).

Essas duas perceptivas de comunicação são caracterizadas por modelos bem distintos, o ativo, que é baseado num sistema de relações horizontais e fortemente interativo (e.g., internet, celulares, redes sociais, e-mails, jornais, revistas, rádios online, etc.), e o passivo, que é baseado numa forte ordem hierárquica e papéis bem definidos (e.g., na mídia impressa, televisiva, rádio e cinema) (e.g., G. Cardoso, 2014).

Na sociedade em rede a possibilidade de escolher e utilizar entre uma variedade de comunicações em rede, nunca disponíveis na história da humanidade, é vista como fenômeno mundial de “mídia em massa” e é considerada um facilitador no uso da perspectiva ativa da comunicação. Entretanto, sem superar as críticas do século XIX, a comunicação “em rede” continua a ser caracterizada por um padrão hierárquico de cima para baixo, no qual os membros direcionam a comunicação para outras pessoas no mesmo nível ou abaixo, mas não acima. Isso ocorre porque a conectividade e o acesso a redes em uma estrutura social é caracterizada pela exclusão e inclusão em diferentes tipos de redes sociais e de comunicação e o poder é uma determinante crucial da mudança social.11,12(e.g., G. Cardoso, 2014; Castells, 2011).

Os diferentes tipos de comunicação (mídias) que utilizam as TIC, em geral, possuem um papel ambivalente na sociedade em rede. Se, por um lado, eles podem atuar como um processo democrático e solidário socialmente no desenvolvimento e no comportamento entre pessoas, comunidades e países, por outro, podem distorcer ou criar fake news sobre fatos e pessoas que irão formar falsos consensos sobre a realidade, podendo provocar a “desidratação” física e moral de indivíduos, grupos étnicos, comunidades ou mesmo de toda uma nação, com consequências imprevisíveis para o estabelecimento do estar social coletivo (e.g., G. Cardoso, 2014).

Se comunicação também é sinônimo de partilhar, afirma-se que uma das manifestações mais relevantes da sociedade em rede não é usar a comunicação para obter informações e sim partilhá-la (e.g., Caraça, 2007). No século XXI, em sua última década, embora a comunicação tenha se pautado em grande parte pela busca de informações, a possibilidade de comunicar partilhando as informações parece ser a evolução mais significativa para os próximos anos que virão. A comunicação que utiliza a partilha de informações tem que ser feita com responsabilidade e consciência, não apenas por um indivíduo, mas por todos os grupos ou comunidades, para alcançar o conhecimento coletivo (e.g., Topaloglu, Caldibi & Oge, 2016; Mendes, 2001).

10 SOAS. University of London. Introduction to Knowledge, Communication & Development. Disponível em: https://www.soas.ac.uk/cedep-demos/000_P523_MKD_K3637-Demo/unit1/page_10.htm

11 SOAS. University of London. Introduction to Knowledge, Communication & Development. Disponível em: https://www.soas.ac.uk/cedep-demos/000_P523_MKD_K3637-Demo/unit1/page_10.htm

12 Schwab, N. G. & Bourgeois, M. J. Comunication Network. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/communication-network

2.4.3 Na consciência

Na sociedade em rede, o indivíduo é o novo centro das preocupações políticas (Zorrinho, 2007). Nesse sentido, governos de diferentes nações têm discutido o tema para elaborar projetos sociais e educacionais, cujo objetivo é promover nos cidadãos uma atitude crítica capaz de estimulá-los e impulsioná-los a novos projetos de vida, em que todos os cidadãos possam ter um “sentimento coletivo de consciência, de libertação e autocapacitação, assim, permitindo-lhes transformar as condições sociais que os sujeitam à desigualdade e à opressão” (Coelho, 2007, p. 25).

Tão importante quanto os projetos governamentais é a percepção de cada indivíduo de que são eles os responsáveis pelo seu contributo para a harmonia e riqueza da sociedade em que se inserem por meio de suas escolhas, postura cívica, incluindo a participação ativa social, civil e política - que envolverá dificuldades e nem todos irão participar - em contexto democrático do exercício da cidadania (e.g., Zorrinho, 2007; Almeida, 2007).

Não nos iludamos, nesse difícil caminho da participação ativa e da autonomia com responsabilidade social haverá indivíduos com pouca instrução educacional que serão mais facilmente manipulados pelo poder das grandes corporações, de tal forma que estes indivíduos se tornarão menos valiosos para si próprios e para as comunidades, com baixa autoestima, em função do pouco contributo para o bem- estar coletivo. Assim, acredita-se que maior será a conquista da harmonia e da riqueza de uma sociedade quanto maiores (quantidade e pessoas) forem as ações e os projetos associados ao aprendizado de novas competências e acesso à informação. A consequência desse aumento das competências e do grau de instrução para toda a população poderá levar à libertação dos indivíduos e das sociedades da tutela dos interesses dos grandes conglomerados, sejam potencialmente louváveis ou eticamente reprováveis. Logo, quanto maior o nível educacional e a integração social do individuo, maior e melhor será sua consciência de seus deveres e direitos no processo democrático da cidadania (e.g., Zorrinho, 2007; Almeida, 2007; Correia, 2007).

2.4.4 No emprego e no rendimento

As novas áreas e oportunidades de emprego e renda que chegam ao mercado de trabalho na sociedade em rede, facilitadas pelas TIC, têm absorvido as pessoas com maior qualificação e mais preparadas tecnologicamente, mas, por outro lado, outros empregos estão desaparecendo ou sendo perdidos por pessoas menos qualificadas que já estavam no mercado de trabalho (e.g., Amaral L. M,. 2007).

Os indivíduos, para permanecer ou conquistar os empregos, são obrigados a inserir-se numa corrida tecnológica e fragmentar-se, a cada dia, e cada vez mais, no seu conhecimento e na sua especialidade para competir por trabalho. Nesse cenário, “o job for life e a carreira tendem a desaparecer, sendo substituídos pelos projetos/períodos de trabalho, formação continuada e ao longo da vida” (Gomes, 2007, p. 678-680).

Também é verdade que os arranjos tecnológicos atuais na vida cotidiana têm potencialmente criado novos cenários de interação e rearranjos nos modelos relacionados com o trabalho e a vida familiar, incluindo sociabilidade e colaboração de grupos de pessoas, oferecendo, assim, novas oportunidades

de emprego e de recursos financeiros para diferentes necessidades das pessoas (e.g., Carvalho, Francisco & Relvas, 2015;Topaloglu, Caldibi & Oge, 2016).

Apesar das vantagens desses novos arranjos tecnológicos na vida do trabalho e familiar, esses vêm atribuindo um superdimensionado valor social ao trabalho, fazendo com que o tempo livre e o lazer sejam relegados a segundo plano (e.g., Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007; Carvalho, Francisco & Relvas, 2015; Topaloglu, Caldibi & Oge, 2016).

Assim, o trabalho se apresenta na sociedade em rede como um dever moral, uma forma de rendimentos e um fim em si mesmo, se tornando a antítese do prazer e do lazer (e.g., Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007).

2.4.5 No lazer

Se o trabalho é a antítese do prazer, o prazer é consumo do tempo de forma não produtiva, ou seja, são atividades não produtivas que têm um fim em si mesmas: o consumo do lazer, bens e serviços. O lazer é uma forma de preguiça, deleite e indulgência, podendo significar que, para gozá-lo, o indivíduo terá que ter capacidade financeira para suportar um período ou uma vida de ócio sem necessidades de rendimentos mensais. Infelizmente, nem todos os indivíduos possuem capacidade financeira ou tempo disponível em função do excesso de trabalho para suportar as atividades de lazer, e este acaba por ficar em segundo plano em relação ao trabalho (e.g., Cardoso, Gomes & Cardoso, 2007).

O lazer, na educação, é controverso entre pesquisadores. Constata-se que o uso das TIC para o lazer (recreação) pode estar positivamente correlacionado com o desempenho dos alunos, uma vez que o uso de computador para fins recreativos envolve participar, desde discussões online até o uso de ambientes virtuais, e seus sistemas requerem que os participantes desenvolvam habilidades da visão espacial e do pensamento de forma lógica, crítica e reflexiva, indo para além de memorizar fatos ou dizer algo que já foi dito. Em oposição a essa corrente positivista do lazer na educação, alguns pesquisadores alegaram que o uso das TIC para fins educacionais em casa ou em ambientes informais não garante o fomento das competências interdisciplinares (e.g., Scherer, Rohatgi & Hatlevik, 2017).

2.4.6 Na mudança de hábitos

A emergência da sociedade em rede implica o exercício de novos comportamentos e novas capacidades. Isso vem ocorrendo lentamente e se manifesta em diversas áreas, como, por exemplo, a do trabalho, da formação continuada, da ampliação das competências, e até mesmo na busca da própria identidade em função da crise de valores nos núcleos familiares. Vale destacar que entre as mudanças ocorridas do núcleo familiar, cada vez mais, o número de famílias comandadas por mulheres cresce – o que antes era exclusividade do homem – e as novas gerações abandonam o campo e migram para as cidades, modificando-se, substancialmente, a noção do território (e.g., Quirino, 2007; Correia, 2007; Coelho, 2007; Almeida, 2007; IBGE, 2018).

Num universo digital, os novos meios de comunicação são fundamentais para a concretização de tais transformações, pois estes envolvem textos, imagens e poderosos motores de buscas de informação, em que os indivíduos precisam adequar seus hábitos na leitura, na escrita, na forma como acessam e

pesquisam os registros do conhecimento. Educar e aprender são a chave para a aceitação dessas transformações e integração na sociedade em rede (e.g., Caraça, 2007; Correia, 2007).

Na sociedade em rede não tem havido lugar para quem se habitua ou habitou-se durante toda a vida à regularidade comportamental padronizada, e para sobreviver terá que aceitar e assimilar os novos tempos e processos de mudanças. À primeira vista, a “assimilação destes novos tempos e processos parece ser tanto mais difícil quanto mais avançada por idade do imigrante digital, uma vez que o esforço é maior ao nível de processos e modelos mentais” (Correia, 2007, p. 578).

As pessoas ou as sociedades que não assimilarem e acolherem estas mudanças ficarão “irremediavelmente no século passado, envoltas nos seus externos e nas suas angústias” (Caraça, 2007, p. 153).