• Nenhum resultado encontrado

Por uma política de formação de professores especialistas nas modalidades da arte e professores das séries iniciais

A que ações e pensamentos toda essa trajetória e toda essa imbricada composição nos leva hoje?

Quero desenvolver isso em cinco pontos que entendo serem questões contemporâneas para o traçado de uma política de formação de professores especialistas nas diversas modalidades da arte e também para professores das séries iniciais, considerando o funcionamento pedagógico-curricular:

a) Arte (Música) como forma de pensamento e conhecimento

Deleuze e Guattari vão tratar da arte, ciência e filosofia como três formas de pensamento e campos indiscerníveis, um não sendo inferior, nem mais relevante que o outro, ou de excelência ou lugar exclusivo de criação e pensamento. Todos os três são campos de criação.

Assim, se desfaz a visão romântica da arte como lugar exclusivo da criatividade e do espontâneo. Dizem Deleuze e Guattari (1992) que “é o cérebro que diz Eu, mas (...) este Eu não é apenas o ‘eu concebo’ do cérebro como filosofia, é também o ‘eu sinto’ do cérebro como arte. A sensação não é menos cérebro que o conceito” 6 (p. 271). A ciência tem a função de produzir proposições

científicas; a filosofia tem a função de produzir conceitos; e a arte tem a função de produzir blocos de sensação, de afetos. Diz de afetar e ser afetado por uma escultura (seus trajetos interiores, ângulos), de ser arrastado pelo devir-jazz de uma performance musical, por uma interpretação do Hino Nacional Brasileiro na voz de Fafá de Belém, de ser afetado pelos materiais, num processo de experimentação. E o gestual do maestro, o cheiro da tinta, ou o pêlo da brocha fazem parte desse bloco de sensações.

Não há mais lugar para os binarismos reducionistas do tipo arte como lugar da emoção, do inefável, do transcendente, do metafísico e do inexprimível, e ciência como pensamento via razão. Arte, ciência e filosofia não competem entre si, são apenas formas de organizar o caos (concomitância de linhas). Arte, ciência e filosofia brigam contra a opinião, o clichê, o molde, o dado pronto: no lugar do ponto-posição (já dado de antemão numa estrutura), seria mais próprio falar do ponto-linha, que surge no trajeto-cartografia.

6 Curioso é observar que na virada do século XIX para o XX Dalcroze falava que os seus alunos deveriam chegar ao final de uma experiência de ensino dizendo “eu sinto, ao invés de dizer eu sei”...

189

Urge tratar a arte como área de conhecimento, como instrumento de compreensão do mundo e intervenção na realidade, como leitura do mundo através das marcas sonoro-musicais, das vestimentas, das esculturas, da arquitetura etc. Marcas que talvez já não tenhamos na memória, sons que já perdemos (garrafas de leite, rangido de cadeiras de balanço no assoalho, rodas de carros de boi, trepidar de paralelepípedos no fundo do carro). Essa “afinação do mundo” ou “paisagem sonora”, como diz Schafer – todos os “corpos sonoros”, todo objeto suscetível de produzir sons –, tem sentidos inscritos socialmente.

Há implicações disso no projeto de formação de professores de Arte e dos professores das séries iniciais no funcionamento da prática curricular?

b) Arte (Música) como plano de composição estética, que extrapola o plano de

composição técnica

Os materiais entram na sensação, seja quando se compõe a partir de um plano detalhado, ou quando se vai compondo de cor em cor, de som em som, por experimentação.

A arte, como plano de composição estética, atravessa e une os eixos do fazer,

apreciar, refletir. Integra o produzir (executar, criar), fruir e refletir. Refletir sobre

conhecimento técnico, notacional, perceptivo; sobre conhecimento socialmente acumulado, contextua-lização dos produtos culturais e históricos; sobre sentidos e subjetividades, contextualização histórica, social, psicológica, antropológica, geográfica, ecológica, biológica, o que amplia o que temos vivido tradicionalmente como “História da Arte”.

Há implicações disso, no projeto de formação de professores de Arte e dos professores das séries iniciais, no funcionamento da prática curricular?

c) Arte (Música) como multiplicidade já presente na prática social (musical, no caso) Estar entre “a variação de um idêntico” e “a identidade de um diverso”, conforme expressão de Barbero (1987), falando dos fenômenos de cultura e comunicação. Essa é a condição em que nos coloca a cultura, pelo seu funcionamento intertextual, em rede, com produtos híbridos, misturando presente e passado e produzindo sentidos que se dão na remissão a outras obras, do mesmo gênero ou não.

Uma multiplicidade já está presente na prática social e podemos falar de uma música sobreposta, interdependente de outras práticas, e não “pura musicalidade” (SAID, 1992, p. 121), ao mesmo tempo em que falamos da música como experiência massiva e singular. Música compartilhada, com suas matrizes culturais, inscrita num

ritual social no qual um grupo se reconhece; e música como experiência individual e idiossincrática, não visando a comunicação social.

Um menino congadeiro diz que aprende a bater o ritmo do congado indo “direto no batido” (ARROYO, 1999); o aluno da escola regular diz que gosta mesmo é do “batidão do funk” (ALFONZO, 2004). Em ambos os casos, referem- se a um composto, uma multiplicidade dada a cada instante: o batido do congado e o batidão do funk são, ao mesmo tempo, ritmos, timbre, intensidade, coreografia, dança. Borram-se as fronteiras entre essas dimensões de uma mesma experiência social. No “batido” e no “batidão” há tanto uma escuta guiada por convenções quanto uma escuta que escapa às coordenadas que orientam qualquer suposta escuta “certa”, “ideal” e totalizante.

Há implicações disso no projeto de formação de professores de arte e dos professores das séries iniciais no funcionamento da prática curricular?

d) Arte (Música) nos seus caminhos de profissionalização e humanização

Um músico popular, cego, tocador de viola, afirma: “Tô tocando, tô me divertindo. É a minha profissão.”7 Divertir-se e ir se tornando um músico profissional

se confundem. Mundo do trabalho e profissionalização parecem se instalar sem que se tenha um demarcador temporal para isso.

De igual forma, o jovem vai se profissionalizando em música hoje, sem que se possa precisar quando e como começa a sua profissionalização. Essa é uma realidade que temos encontrado nos dias atuais, e que nos leva a rever célebres binarismos e códigos de coleção que guiaram projetos e políticas educacionais no Brasil: formação do músico x formação de platéia; formação profissional x formação geral.

Se professores abrem portas e se falamos de um projeto ético-político- social-estético, como não conceber que um projeto esteja centrado em tarefas que façam sentido para o aluno e para o professor, aumentando a potência de agir e de viver, a potência de produção e a capacidade de tomar decisões musicais, favorecendo o crescente desejo de competência e a expectativa de profissionalização?

e) Arte (Música) no projeto educacional-pedagógico-curricular, com um

funcionamento da aula como mapa-cartografia

Decorre disso tudo que não se trata de entender a arte como campo de conhecimento proposicional. Ao invés de dizer o que é a “bossa-nova”, dizer do que

191

experimentamos: seu devir-jazz, seu devir-impressionismo, seu devir-samba, entre essas qualidades e blocos de sensação. Ao invés de uma unidade programática no planejamento de ensino que define “o que é ritmo”, experimentar o devir-ritmo nas suas multiplicidades, sempre um conceito em fuga, que depende das circunstâncias, que é da ordem do acontecimento, dos eventos em seus relacionamentos em cada contexto, seja no transcurso de um trecho musical, nos modos de falar um nome ou uma frase falada-cantada – “melodiada”.

Nesses trajetos, que são cartografias, a escuta é nômade, inesgotável, de caráter heurístico e sempre reinventada, mesmo quando se dá em sistema musical com alto grau de previsibilidade.

Decorre também que devemos estranhar os projetos de disciplinarização e institucio-nalização da Arte como conhecimento escolar, como a temos caracterizado na cultura escolar. O exercício de atomização (para melhor controle e domínio do processo de administração do conhecimento) e os binarismos “na grade” / “fora” da grade “curricular” / “extra-curicular” ou “profissional” / “não profissional” devem dar lugar à experimentação de outras possibilidades de lidar com educação e organização curricular.

Sandra Corazza, na sua palestra intitulada Nos Tempos da Educação8, trata

do que herdamos para então considerar a herança que deixaremos no campo pedagógico-curricular. A herança que deixaremos decorrerá de uma decisão cotidiana, fundamentada, compartilhada, construída coletivamente, investindo nas brechas abertas nos documentos da “educação maior”, oficial, instituída.