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Uma forma de trabalho do espírito Uma volta pela livraria local provavelmente nos há de revelar um acervo de textos voltados para o cuidado e a alimentação do

Características da ação comunitária

5. Uma forma de trabalho do espírito Uma volta pela livraria local provavelmente nos há de revelar um acervo de textos voltados para o cuidado e a alimentação do

espírito. O espírito pode ser considerado como a força invisível e intangível que anima os seres vivos, talvez sem nosso consentimento ou aprovação. A artista brasileira Regina Vater, ao discorrer sobre a influência do legado africano no Brasil, oferece uma explicação para o conceito de espírito:

A vibração de antigos saberes da África ainda reverbera em muitas coisas no Brasil: em nossa espiritualidade sensorial, em nossa conexão mágica com a vida, na nossa resistência e paciência nas circunstâncias mais adversas, em nossa teimosa esperança de “melhores dias”, na espontânea conexão com a alegria, no aguçado sentido de meiguice e generosidade do amor, na liberdade e inventividade do corpo, no admirável ouvido musical brasileiro e na flexibilidade e adaptabilidade diante do novo. (1977, p. 72)

Note-se que não estou me referindo à religião. Trabalho do espírito aqui se refere à atividade que nos anima, nos inspira a nós e a nossa comunidade e que nos traz máxima satisfação. O trabalho do espírito está relacionado com a sugestão de Chandler (1997), segundo o qual “o gênio artístico não é uma questão de gênero ou raça, salvo se aquelas qualidades estiverem ligadas à agência espiritual – ao poder de fazer com que boas coisas aconteçam, mesmo em tempos ruins” (p. 81). Os professores cônscios de que o trabalho do espírito pode ser uma parte importante da experiência das diversas culturas norte-americanas terão mais facilidade para trabalhar com estudantes de tipos diversos. Por exemplo, Ani (1994) sugere que, para alguns estudantes, influenciados por certos sistemas de crença africanos, a criação artística deve ser sempre comunitária e espiritual, para que seja moral:

No conceito africano do ser humano, o emocional e espiritual estão indissoluvelmente ligados ao racional e material. Aliás, é a espiritualidade do ser humano que o define como humano, fornecendo o contexto no qual ele é capaz de criar tanto a arte como a tecnologia. A identificação emocional do indivíduo e da comunidade com a arte e sua participação nela são valores primários que ajudam a determinar sua forma... Embora os artistas [europeus] ainda tentem suscitar certas reações emocionais isoladas no seu público, essas reações têm, teoricamente, muito pouco significado “cultural” ou “moral”... (p. 203)

Em uma situação comunitária, o trabalho do espírito incluirá necessariamente o propósito de agir para o bem comum. O motivo que leva a pessoa a fazer isso não se expressa em forma discursiva, assim como nossa experiência da arte dificilmente pode ser verbalizada. Os participantes de uma comunidade, porém, podem ser capazes de explicitar a natureza do trabalho do espírito a ser realizado, como no caso da criação do Kwanzaa Playground na cidade de Columbus, Ohio. Os sete artistas da comunidade, cujas obras nele estão permanentemente instaladas, tinham sido expostos a certos aspectos do pensamento de raízes africanas, com o qual se identificaram em diferentes graus. Boa parte de sua obra reflete a internalização de qualidades suscetíveis de serem definidas como espirituais. A discussão de Delpit (2003), ao analisar a obra de Asa Hilliard em 1997, sobre a educação africana tradicional e contemporânea, ajuda a colocar em evidência a importante relação entre espírito e educação. O autor observa que a educação da mente e do corpo se realiza simultaneamente e que o “templo divino” (p. 16) do corpo abriga o espírito. A educação corporal e a espiritual estão, pois, interligadas. “Na tradição africana, portanto, é papel do professor apelar para o intelecto, a humanidade e a espiritualidade de seus alunos” (p. 16). Os artistas do Kwanzaa Playground procuraram atingir o intelecto, a humanidade e a espiritualidade dos que freqüentam o lugar, mediante o seguinte trabalho do espírito:

• tornando visível o efeito de cosmologias africanas em sua arte;

• apresentando exemplos de estética e símbolos de inspiração africana, que evocam lições positivas de vida, como as que se observam em símbolos adinkra; • tornando culturas invisíveis visíveis a todas as comunidades;

• mostrando como as crianças são valorizadas, como parte da coletividade, da família e da comunidade; e

• mostrando a relação positiva entre autodeterminação e ação comunitária. 6. Valorização mediante a narrativa. Um aspecto da cultura jovem que está se tornando um fenômeno mundial é uma forma de arte performática chamada narração

oral. Trata-se de uma narrativa poética e emocional, ora em estilo livre e extemporâneo,

ora meticulosamente preparada. Esse tipo de contar história pode ser observado em praça pública, clubes, teatro, televisão, rádio, espaços comunitários e escolas. Uma linguagem humorística, vigorosa e pungente é utilizada, a fim de criar algo que poderia ser considerado como uma contra-narrativa (HOOKS, 2003), uma forma de resistência oral contra as matrizes narrativas de hegemonia, supremacia, poder e

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privilégio. Em sua descrição de metodologias, Creswell (1994) caracteriza a narrativa qualitativa como um procedimento de pesquisa que resulta da análise de dados. Esses descritores partilham da palavra falada como narrativa. Os dados submetidos à análise são a experiência vivida, e a natureza da narrativa pode ser realista, confessional ou impressionista, ou todas essas coisas ao mesmo tempo.

A narrativa é uma história contada. Ela requer um contexto compreensível, um pano de fundo, pormenores descritivos e marcadores cronológicos (LUNSFORD & CONNORS, 1995). As narrativas religiosas (como as bíblicas e as corânicas, por exemplo) e as narrativas históricas (como as da escravidão, as militares) são exemplos desse gênero. Ana Mae Barbosa, arte-educadora e patrona das artes, discorre sobre as dificuldades de artistas brasileiras em suas próprias narrativas (BARBOSA, 1997). A crítica teórica Bell Hooks, uma afro-americana, vale-se de suas narrativas para exemplificar a aplicação de ideologias baseadas em raça à educação (HOOKS, 1994 e 2003). Muitos estudantes têm histórias para contar, que podem ajudar a estabelecer um vínculo entre eles e seus professores e até mesmo inspirar e influenciar o currículo e o ambiente da sala de aula.

Um professor que quisesse focalizar minha história, por exemplo, observaria os seguintes elementos, entre outros. Filosófica, cultural e etnicamente, identifico-me como uma afro-americana, produto do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. É evidente que meu destino foi influenciado pelo processo movido por Brown contra a

Junta de Educação de Topeka, Estado de Kansas em 1954, que levou à abolição da segregação

legalizada nas escolas públicas e à Lei sobre Direitos Civis de 1964, cujo propósito era pôr fim à segregação legalizada de negros e brancos no Sul dos Estados Unidos e em locais públicos em todo o país. A vida e o destino de meus pais, porém, assim como de seus antepassados, retrocedendo até o século XV, foram profundamente influenciados pelas atrocidades do tráfico negreiro transatlântico. Dos 15 milhões de africanos que foram transportados à força da África pelos europeus e norte-americanos, a maior parte foi levada para a América do Sul e para as ilhas do Caribe. Constato que, desde aquela época até os dias de hoje, os descendentes de africanos na diáspora pelo mundo afora têm tido de enfrentar desafios, sem o direito e a expectativa de utilizar seu próprio nome e tendo de lutar para manter uma presença histórica e cultural em muitas frentes hostis.

Minha experiência educacional (como estudante e como professora) abarca tanto escolas com maioria de estudantes negros como escolas com maioria de estudantes brancos. Em todas as escolas predominantemente para brancos, tinha plena consciência de que pessoas semelhantes a mim eram omitidas dos relatos históricos sobre contribuições inventivas, criativas e monumentais aos Estados Unidos e ao mundo. Minha experiência educacional abrange várias décadas e poderia apontar para uma irrelevância contemporânea. Contudo, há um mês, uma aluna do curso de graduação

contou-me que ela tencionava fazer pesquisa sobre a omissão ou o tratamento indevido da arte de africanos e afro-americanos no conteúdo curricular e a falta de preparo, especialização ou disposição para inclusão desse aspecto nos currículos. Há dois meses, um grupo de estudantes brancos me disse que eles se sentiam estupefatos ao constatar a falta de interesse por parte de seus colegas, também brancos, em discutir a importância do elemento racial (como, por exemplo, a imagem definida pela raça como um aspecto da cultura visual), particularmente por parte daqueles que não tinham alunos negros. Seria importante que aquele professor soubesse que a prática de uma pessoa adotar seu próprio nome é um componente de minha história, bem como um aspecto de minha autodeterminação. Isso significa que as pessoas podem escolher sua identidade, em vez de tê-la imposta por outros. Nos Estados Unidos, a identidade pública e privada é baseada, em geral, em bipolaridades, tais como negro/branco, homem/mulher rico/pobre heterossexual/homossexual instruído/sem instrução. Todo professor deveria refletir se sua filosofia, história pessoal e se o ambiente de sua sala de aula, bem como suas práticas de ensino, demonstram resistência a essas polaridades como determinantes do êxito educacional e da igualdade social.

Se aquele professor estudasse minha história em relação à minha comunidade, poderia ensinar e aprender, em plena consciência, os três conceitos seguintes: 1) raça e as odiosas conseqüências socioculturais do racismo são fenômenos importantes que afetam a realidade da experiência do indivíduo como norte-americano ou como imigrante no contexto norte-americano; 2) a designação racial nos Estados Unidos influi sobre até que ponto uma educação de qualidade poderá ser obtida e sobre o conteúdo curricular; e 3) os professores que não estão interessados na história de seus alunos, inclusive no impacto da raça, poderão ter dificuldade em utilizar o conteúdo curricular de maneira atraente e significativa. (DANIEL, 2003)

Conclusão

Os professores fariam bem em se envolver no ensino de arte como uma ação comunitária, visto que tal processo oferece as seguintes vantagens: confere um propósito a uma abordagem, muitas vezes desprovida de rumo, do envolvimento educacional nas experiências comunitárias de arte; propicia uma perspectiva sob a qual a pedagogia se baseia no saber da comunidade; ensina os educadores formais a respeito do processo, filosofia e valor da arte e da pesquisa baseada na comunidade; permite uma visão dos componentes de um conhecimento que é evolutivo, ligado a situações específicas, contextual e voltado tanto para o processo como para o produto; e exige que os educadores e pesquisadores examinem sua tendência para a exploração da “comunidade”. Hooks (1994), que resumiria esses componentes

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como “pedagogia engajada”, acrescentaria que essa abordagem de parceria de objetivos educacionais entre escolas e comunidades é “uma expressão de atividade política”. (HOOKS, 1994, p. 202-203)

A familiaridade dos educadores com as características da ação comunitária pode respaldar as maneiras de ensinar e aprender, mediante a transferência do

conhecimento, por meio da ação, da microcomunidade para a macrocomunidade (ou

de dentro da comunidade para fora dela). O envolvimento dos professores na história de seus alunos e de suas comunidades poderá dinamizar o currículo e, como sugere Delpit (2003), evitar que os professores se “esgotem no esforço de fazer com que o ensino seja vital, atraente e eficaz”. (p. 15)

Incentivo os educadores a se envolverem com as comunidades como fonte de conhecimento e de pedagogia e a participarem de uma experiência interativa de ensino e aprendizagem com seus alunos. Esse envolvimento é capaz de incentivar o pensamento crítico, ao nos familiarizarmos com as vozes e as formas de saber das comunidades às margens da sociedade predominante. Um resultado auspicioso dessa transferência de conhecimento de uma comunidade para outra poderá ser uma educação mais estreitamente relacionada com a vida.

Referências

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behavior. Trenton: Africa World Press, Inc., 1994.

BARBOSA, A.M. Art in Brazil: Several minorities. In: FARRIS-DUFRENE, P.

Voices of color. Art and society in the Americas. New Jersey: Humanities, 1997. CRESWELL, J.W. Research Design. Qualitative & Quantitative Approaches. Thousand Oaks: Sage, 1994.

DANIEL, V.A.H. “The Kwanzaa playground narrative: an anchor for integrated curriculum in art education”. The International Journal of Arts Education, 1(2), 6- 15, 2003.

DELPIT, L.Educators as “seed people” growing a new future. Educational

Researcher, 7(32), 14-21, 2003.

GRUENEWALD, D. “Foundations of place: A multidisciplinary framework for place-conscious education”. American Educational Research Journal, 40(3), 619-654, 2003.

HOOKS, B. Teaching to Transgress. Education as the practice of freedom. New York: Routledge, 1994.

______. Teaching community. A pedagogy of hope. New York: Routledge, 2003. HOVEY, K. Spatial, social theory applied to the Kwanzaa Playground:

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LUNSFORD, A. & CONNORS, R. The New St. Martin’s Handbook. Boston: Bedford/St. Martin’s, 1995.

SHAPIRO, A. “Effects of including prior knowledge as a subject variable”.

American Educational Research Journal, 41(1), p. 159-189, 2004.

VATER, R. “The continent of Ashe”. In: FARRIS DUFRENE, P. , Voices of

Color. Art and society in the Americas. New Jersey: Humanities, 1997.

3. Reflexões sobre o Ensino da Arte no Âmbito das ONGs

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