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À primeira vista, pode parecer que o processo de arte comunitária, que servia como instrumento de desenvolvimento cultural e de continuidade, tenha sofrido erosão por causa do surgimento e desenvolvimento de áreas urbanas em toda a África. No entanto, a arte continua a ser usada como meio para comentar e criticar as mudanças socioeconômicas relacionadas com o colonialismo e a independência, tanto na zona rural como em áreas urbanas. Há, porém, diferenças marcantes na maneira como a comunidade pode ser definida. Como foi mencionado, a comunidade rural era baseada em indivíduos ligados por consangüinidade ou ocupação. Diferentemente da maioria das zonas rurais, as áreas urbanas se definem por grupos heterogêneos de pessoas pertencentes a diferentes grupos étnicos e de diferente procedência. A comunidade, tal como existia num sentido tradicional, não é mais viável num meio urbano. Pessoas vindas de diferentes zonas rurais

convergem nas grandes cidades, em busca de melhores condições de vida, emprego, educação etc. Infelizmente, encontram apenas alienação. De acordo com Diouf (2001), os centros urbanos concentram, principalmente, os jovens, nascidos após a independência. Vêm em busca de oportunidades, mas encontram alienação e marginalização, pois não se enquadram na cultura do meio urbano.

Em geral, uma comunidade heterogênea não parece ser o lugar mais adequado para um discurso coletivo, visto que, segundo Repetti (2001), “a proximidade forçada de grupos culturalmente heterogêneos incentiva a fragmentação do mbookk – a família polígama ampliada – e o enfraquecimento de suas funções de apoio, além de impor a modificação das relações sociais tradicionais” (p. 11). No Senegal, porém, jovens (estudantes e desempregados) se juntaram no final da década de 1980 e fundaram um movimento social chamado Set-Setal. Algumas pessoas dizem que o movimento foi instigado pelo ritmo sincopado do super-astro do mundo musical Youssou N’Dour, que escrevia e cantava canções a respeito de pureza, dignidade e retidão (ROBERTS e ROBERTS, 2002). Suas canções foram lançadas em um momento em que havia “tensões entre a juventude urbana e o governo senegalês por causa da falta de emprego e do colapso dos serviços públicos básicos” (ROBERTS e ROBERTS, 2002, p. 58). Essa juventude marginalizada, porém, não se lançou às ruas em agitações. Pôs-se, antes, a restaurar os logradouros públicos, embelezan-do-os, recolhendo lixo e pintando as paredes com ícones da cultura popular e de santos sufistas1. Além disso, o propósito

do movimento, expresso na palavra set, na língua wolof, que significa puro, era limpar as ruas, restaurar, pintar e substituir monumentos coloniais e dar novos nomes aos locais alienados. Outro propósito do movimento era romper com o discurso histórico, que fora perpetuado pela geração nacionalista (DIOUF, 1992).

A fim de ajudar os jovens marginalizados a encontrar seu lugar em comunidades ou “quartiers” heterogêneos, inúmeras organizações associativas, como as sociedades de auxílio mútuo e associações islâmicas forneceram respaldo e criaram um espaço de apoio e assistência mútuos, mediante discurso, cooperação prática e solidariedade recíprocos. Essas associações reuniam pessoas com laços familiares e ligadas por causa de etnia, religião ou negócios (REPETTI, 2001). A argamassa que unia cada um desses “quartiers” não era apenas elementos sociais, mas também suas memórias idiossincráticas, que contribuíam para as várias identidades sociais que davam àqueles jovens senegaleses uma sensação de pertencer. O elemento de coesão que unia os membros dos “quartiers” era as histórias que a comunidade produzia. Essas histórias dão origem a uma consciência comunitária. Ainda segundo Repetti, “o acervo de tradições orais é partilhado pelos residentes de um distrito

1 Os sufis são muçulmanos que representam uma vertente mística do Islã; muçulmanos que buscam uma experiência direta de Alá.

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e é virtualmente desconhecido fora dos limites daquele distrito” (p. 2). As histórias servem de impulso para trocar o nome dos espaços alienados. Um distrito ou “quartier”, por exemplo, mudou o seu nome de HLM 6 para HML “ângulo Mouss”, ou “canto do gato” por causa de uma história em que um gato entra em uma casa e se transforma em uma feiticeira; e “Patte d’oie” (Pé de ganso) substituiu a designação oficial das zonas HLM indicadas por número (HLM 1, HLM 2 etc.). Repetti acrescenta que “essa expressão de identidade por meio da camaradagem” constitui uma base social da produção artística urbana, que era emblemática do movimento Set-Setal.

Embora possa parecer, pelos relatos publicados, que os jovens decidiram empreender essa atividade sem a ajuda de órgãos governamentais, o fato é que, ainda segundo Repetti, “a Municipalidade de Dakar confiou a implementação do Set-Setal... a associações e artistas locais. A campanha decorativa de educação social recebeu subsídios para ornamentar com murais áreas da cidade (p. 9)”.

O movimento Set-Setal do final da década de 1980 contou com milhares de jovens senegaleses, que foram mobilizados para limpar locais onde o lixo e a sujeira evidenciavam a negligência do governo de Dakar. No esforço de limpeza, combatiam também a corrupção, a prostituição e a delinqüência causadas por um governo ineficiente. Os murais, que abordavam três tópicos principais – saneamento, ecologia e história – podem ser considerados como meios pedagógicos destinados a estabelecer certa forma de controle social. Em certas comunidades, eles atuam como dispositivos que criam ou revivem a história. Os que tratam de saneamento focalizam questões relacionadas com HIV/Aids, vacinação e o combate contra a diarréia. A maioria desses contém textos para esclarecer as mensagens educativas. Por exemplo, um que se refere à diarréia exibe a frase “Comment on attrappe la Diarrhée?” – Como se contrai a diarréia? A ilustração mostra, em forma de narrativa, que, se defecarem e brincarem no mesmo local, as crianças irão sofrer diarréia. Todo ano, um grande número de crianças morre desse mal; por isso, a campanha para informar os cidadãos sobre o assunto é de crucial importância.

A preocupação com a ecologia é ilustrada por um mural que admoesta: “Ne coupez pas les arbres!” – Não corte as árvores! A África está sofrendo seriamente com o desmatamento. À medida que os madeireiros e fazendeiros limpam terrenos para a agricultura, perde-se a cobertura vegetal, expondo as áreas à erosão e ao escoamento dos minerais e nutrientes, empobrecendo o solo. Na África Ocidental, esse problema é gravíssimo, pois 90% das matas já foram derrubados. Além da perda de minerais e nutrientes, o desmatamento causa mudanças climáticas.

Dos murais com temas históricos, 11,7%, aproximadamente, tratam de religião e outros contêm referências políticas (DIOUF, 1992). Essas referências são mais

internacionais do que locais; mostram não somente figuras históricas da época colonial, mas também aquelas que parecem ter mais relevância para a juventude de hoje. Entre as figuras políticas internacionais se incluem Nelson Mandela, Malcom X e Che Guevara. Outras afirmações políticas são feitas por meio da representação simbólica de fábulas senegalesco-gambianas, que falam da raposa e do coelho e do cabrito e da hiena. Num mural, o cabrito e a hiena, que são inimigos em fábulas tradicionais, tornam-se amigos e jogam futebol com o leão, um símbolo da paz (REPETTI, 2001). Os murais religiosos se concentram, em sua maioria, na representação de Ahmadou Bamba, um santo marabuto. Trata-se de um sufi2, nascido

em 1853. Era um pacifista que empunhava a pena em vez de revólver. Ele atingiu a santidade realizando milagres, como orar sobre as águas, sossegar um leão famélico e escapar das ciladas cruéis de seus captores franceses. As representações de Bamba predominam nos “quartiers” majoritariamente muçulmanos. Esses murais servem não somente para ornamentar ou embelezar a cidade, mas, também, para contar a história e falar do poder de Bamba. Os “mourides”3 levam uma imagem de Bamba à

testa ou beijam os murais para receber sua bênção (ROBERTS e ROBERTS, 2002, p. 55). Embora o Islã proíba a representação de seres humanos, a imagem visual é, nesse contexto, usada como veículo de intercessão.

Um dos principais responsáveis pela criação dos murais relacionados com o movimento Set-Setal era um jovem grafiteiro chamado Pape Samb, mais conhecido por Papisto Boy. Órfão, chegou a Dakar aos dez anos. Tinha vivido numa comunidade de pescadores espremida entre pátios de fábricas e um parque industrial chamado Belaire. Ele pinta murais como um ato de devoção ao Caminho Mouride3. Artista

autodidata, é mais conhecido pelo mural de mais de duzentos metros de comprimento nas paredes de uma fábrica de Belaire. O mural retrata Nelson Mandela, Jimi Hendrix, Malcom X e outras figuras conhecidas. Papisto Boy diz que se inspira em sonhos e que sua mão é guiada pelo santo. Depois de Amadu Bamba, o retratado que mais aparece é Bob Marley, considerado um “mensageiro” que inspirou Papisto por intermédio da música. Diferentemente do que acontece com outros murais, Papisto vem trabalhando no seu mural das paredes sórdidas da fábrica há trinta anos, de modo que se trata de uma obra em andamento. Há pinturas sobre pinturas, que não são completamente cobertas. Às vezes, ele enxerga algo escondido em um retrato ou

2 O sufismo cristalizou sua forma atual no século XVII. “A vereda do amor”, como a religião échamada, é um caminho que facilita a união pessoal e direta com o “Divino Amado”. Por meio dessa união, aquele que busca, fortalecido pela disciplina e pela graça, vive a experiência da essência do amor e sabedoria divinos no mundo e atinge a consciência da “Realidade Única”.

3 Seguidores do “mouridismo”, um movimento islâmico contemporâneo, inspirado pelo sufi pacifista, poeta e santo Amadou Bamba.

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em uma cena e pinta essa visão. O retrato de Che Guevara é um perfeito exemplo disso. “Certa manhã, enquanto ele estava parado diante do retrato do político Abdoulaye Wade (p. 3), da oposição, o olhar fixo nele”, o retrato de Che se revelou a ele e Papisto Boy o pintou.

Conclusão

Como vimos, a arte em sociedades africanas continua a exercer controle social, manter os padrões sociais, reforçar conceitos históricos e educar as massas. Ao passo que, antes, a arte era usada para controlar forças imprevisíveis, no contexto urbano de hoje no Senegal, ela é usada para transformar espaços marginalizados em “espaços imaginários”, criados pelo desejo de controlar um meio ambiente negligenciado pelo governo de Dakar. Esse controle assumiu a forma de murais que recriam a história, produzem memórias compartilhadas e instruem a comunidade a respeito de questões sociais. Infelizmente, ao contrário dos objetos de arte tradicional, cujo uso e função eram reforçados por uma comunidade homogênea, esses murais são efêmeros e frágeis diante da ação do tempo e da poluição e, por isso, alguns já começam a se apagar.

Referências

CHANDA, J. African Art and Culture. Davis: Worcester, Massachusetts, 1993. DESCHAMPS, H. Traditions et Archives au Gabon. Paris: Berger-Levrault, 1962. DIOUF, M. Citoyennetes et recompositions identitaires dans les villes Ouest

Africaines (Citizens and recomposition of identify in West African cities),

Sahel 21, 2001

DIOUF, M. Fresques murales et écriture de l’histoire: Le Set/Setal à Dakar. Politique Africaine 46, 41-54, 1992.

PERANI, J. & SMITH, F. The visual arts of Africa: gender, power, and life cycle rituals. New Jersey: Prentice Hall, 1998.

BIEBUYCK, D & HERREMAN, F. Central Africa. In: PHILIPS, T. Ed. Africa: The Art of a Continent. New York: Prestel, 1999.

REPETTI, M. Marking Dakar: A Topography of the Imaginary. Spring, Translated by Deidre Kantz Xcp: Streetnotes, 2001. www.xcp.bfn.org/ call4work.html

ROBERTS, A. & ROBERTS, M. A Saint in the city: Sufi arts of urban Senegal. African Art, 35(4) 52-73, 2002.

______ . Papisto Boy. African art, 32(2) 72-79, 2000.

2. Componentes da Ação Comunitária como

Fontes Pedagógicas

Vesta A. H. Daniel*

Nesta palestra, defendo a idéia de que a vinculação da aprendizagem a contextos e processos comunitários é uma forma de identificar aquilo que sabemos, de onde veio nosso conhecimento e como esse conhecimento contribui para o êxito da educação institucional. Ademais, as inter-relações entre as instituições formais e os espaços comunitários, conducentes a um ensino e a uma aprendizagem viáveis, são capazes de incentivar uma intensa atividade educacional. Serão aqui sugeridos componentes pedagógicos específicos, baseados na comunidade, que não se limitam à educação artística como forma de vincular professores, membros da comunidade e alunos mediante a prática educacional.

A ação comunitária é um comportamento ou atividade cuja origem e realização se encontram na autodeterminação de um grupo que se define como comunidade. Faz-se necessária a cooperação de várias identidades para identificar, buscar e atingir seus objetivos coletivos. (DANIEL, 1999)

* Doutora em Educação, Departamento de Educação Artística da Universidade Estadual de Ohio, Columbus, Ohio, EUA.

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Meu trabalho no ensino superior inclui o preparo de estudantes de uma universidade do Meio-Oeste dos Estados Unidos para se tornarem arte-educadores. Procuro incentivar os estudantes e aqueles que já estão em exercício a adotarem um conceito transformador da educação. Um dos meus objetivos é levá-los à experiência da educação artística baseada na comunidade e de seu potencial para identificar as correlações entre grupos díspares e a associar-se à comunidade como uma fonte pedagógica. Defino comunidade como sendo um aglomerado de pessoas unidas (ou não) pelo lugar ou localidade, por circunstâncias semelhantes ou por sua história, interesses compartilhados, ou afinidades espirituais.

A vinculação a contextos comunitários permite identificar o que as pessoas sabem, de onde lhes vem tal conhecimento e como esse conhecimento está ligado a uma educação institucional bem-sucedida. As fontes de conhecimento e as formas de adquirir conhecimento não podem se limitar a um cânone determinado pela presunção de uma classe média eurocêntrica e machista, que se julga dona de um conhecimento superior e intérprete do pensamento. Aqueles que estão à margem, os membros de diversas comunidades, os ativistas e defensores de causas cívicas e culturais podem ser fontes confiáveis de conhecimento relevante para uma prática educacional que leve em conta os comportamentos comunitários. A consideração dos métodos comunitários de identificação e utilização do conhecimento é um aspecto da pedagogia baseada na comunidade. Ela pode contribuir para que a educação seja mais estreitamente vinculada tanto aos professores como aos estudantes. Pode também transformar a sociedade, contribuindo para a consecução do ideal de igualdade.