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2.6 Justiça Restaurativa em nível macro: a reconciliação

2.6.2 África do Sul

O processo deste país parece ser o mais bem estudado, com inúmeras publicações em diversas línguas. Creio que seja também o processo de reconciliação com maior espaço na mídia internacional. A história do conflito remonta à história da colonização na África do Sul, com a chegada dos colonos holandeses (século 17) e ingleses (século 19), sendo, desde então, defendido um sistema de segregação racial.

A doutrina da supremacia branca ou apartheid foi oficialmente instituída em 1948, com a subida ao poder do NP (partido afrikaner), numa África do Sul já independente, em que 93% da terra foram entregues à minoria branca, representando 10% da população. A oposição ao apartheid tomou forma, principalmente, através do Congresso Nacional Africano (ANC). Na década de 1960, deu-se o massacre de Sharpeville, a ilegalização dos partidos de oposição e a criação de grupos armados. A década seguinte foi marcada, em nível interno, pela rebelião do Soweto, com a acentuação dos conflitos entre as comunidades negras e não negras. Com a independência de Angola e Moçambique, estes apoiaram o ANC e o movimento anti-

apartheid se fortaleceu. As Nações Unidas condenaram o regime do apartheid,

declarando em 1978 o Ano Internacional Anti-Apartheid. A minoria branca foi perdendo força e foram anunciadas mudanças: em 1990, foram legalizados os partidos políticos proibidos, libertados os presos políticos e revogadas algumas leis do apartheid. Em abril de 1994, aconteceram as primeiras eleições democráticas em que o ANC ganhou a maioria. A base legal para a Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) foi negociada entre o ANC e o governo.

Em 1995, foi promulgada a Lei de Promoção da Unidade Nacional e da Reconciliação que estabeleceu os seguintes objetivos para a CVR: estabelecer um quadro completo das violações graves de direitos humanos, de março de 1960 a maio de 1994; facilitar a atribuição de anistia aos que revelarem totalmente os fatos na condição de estarem associados a objetivos políticos; restaurar a dignidade civil às vítimas; recomendar as medidas de reparação e prevenção de futuras violações, compilando toda a informação num relatório final (FILIPE, 2007).

2.6.2.1 O funcionamento da Comissão da Verdade e Reconciliação

Com dezessete membros, a composição da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) tentou ser representativa do povo sul-africano: sete de cor preta e seis de cor branca, dois de origem indígena e dois mestiços, estando, entre eles, sete mulheres. Havia advogados e juristas, militantes e membros de hierarquias religiosas, trabalhadores sociais e médicos. Por ser insuficiente, em 1997, o número foi incrementado para 45 (LEFRANC, 2005, p. 74).

Foram estabelecidos três comitês.

O primeiro foi o Comitê para as Violações de Direitos Humanos, que deveria reunir todas as informações, provas e denúncias referentes às violações graves de direitos humanos. Foi o artifício da política da verdade, podendo fazer recomendações sobre medidas de reparação e reabilitação da dignidade humana e civil das vítimas. Este começou com as audiências em 1996 e terminou em 1998, com a entrega do Relatório Final ao presidente Mandela. Aproximadamente 22 mil vítimas36 relataram por escrito seu caso, das quais 3.500 foram ouvidas em audiências públicas com transmissão e ampla difusão nos meios de comunicação social. As audiências públicas eram pensadas para ser um espaço de revelação da verdade histórica, a partir dos relatos escritos sobre a violência política. Contudo, fundamentadas na cultura sul-africana e no conceito

ubuntu37, pouco a pouco passaram a ser um “tribunal de lágrimas” (LEFRANC, 2005, p. 75), com rituais e linguagem singular, assumindo uma “função terapêutica” (LEFRANC, 2005, p. 76), sendo as vítimas encorajadas a falar em voz alta, às vezes em presença dos responsáveis dos crimes. Os representantes da comissão agradeciam sistematicamente as vítimas e as reconheciam como tal. Era um ritual de ordem religiosa de extrema importância, com uma emoção que permitia uma espécie de catarse.

36 Mais de três quartos eram de cor preta e mais de 55% eram mulheres, na maioria das vezes, parentes

das vítimas diretas (LEFRANC, 2005).

37 Ubuntu é um conceito difícil de transpor para uma língua ocidental. Desmond Tutu diz que a pessoa

do mundo africano que tem uma visão ubuntu “[...] é aberta e disponível aos outros, para ele ou ela, pois tem uma boa autoconfiança que vem do saber-se pertencente a um todo maior. Esta confiança é diminuída quando outros são humilhados ou diminuídos”. Esta visão cultural predispõe seus membros para o perdão e a reconciliação (TUTU apud BLOOMFIELD, 2003, p. 46). Outra definição é que “[...] minha humanidade está inextricavelmente ligada a sua. Eu sou humano porque eu pertenço e participo da humanidade” (OLINER, 2008, p. 131).

O segundo comitê foi o da Anistia, cujas decisões eram irrevogáveis e não podiam ser revisadas por nenhum outro comitê ou instância de poder. A outorga de uma anistia individual colocava um fim a toda responsabilidade civil e penal da pessoa: as diligências judiciais e a condenação criminal eram anuladas. As pessoas podiam apresentar-se e defender-se em um prazo de 12 meses. Seu registro era quase jurídico, com procedimentos rigorosos. Por mais que não se exigia uma expressão de arrependimento, muitos transformaram sua declaração em confissão, respondendo assim às expectativas da CVR. Este processo permitiu o esclarecimento de diversos casos grandes de interesse nacional. Este comitê terminou as audiências em maio de 2001, encerrando formalmente o trabalho da CVR, quatro anos depois do previsto.

O terceiro, o Comitê para a Indenização e Reabilitação, devia identificar as vítimas e emitir as recomendações sobre medidas de restauração. Uma questão que estimulou de alguma forma uma percepção de injustiça para as vítimas é que este comitê tinha apenas poder de recomendação sendo que o da Anistia tinha a autoridade de pronunciamentos irrevogáveis em relação a perpetradores de graves violações de direitos humanos (FILIPE, 2007). Além do mais, a nova África do Sul não contava minimamente com recursos para uma indenização econômica (LEFRANC, 2005).

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Há muita controvérsia sobre o resultado do trabalho da CVR e se os objetivos propostos, de certa forma, foram alcançados. O projeto de reconciliação estava centrado na premissa de que a revelação da verdade sobre o passado permitia aos sobreviventes chegar ao fim da opressão e que o perdão, na forma de anistia, e a vontade de enfrentar um futuro unido levavam à construção de uma comunidade reconciliada.

O processo de reconciliação exigiu dos governos uma vontade política visando a uma mudança de cultura política. Durante a transição, deu-se prioridade à reconciliação sobre a retribuição, o que foi expresso na atitude de Mandela e do ANC, que reconheceram, oficialmente, vítimas e perpetradores em ambos os lados do conflito. Esta atitude denotou a primazia da ideia de JR e não punitiva, que reintegrava as comunidades numa relação cívica positiva, permitindo assim a reconciliação (FILIPE, 2007).

A afirmação de que houve indivíduos vítimas e indivíduos agressores em ambos os lados favoreceu a atribuição de culpa e responsabilização no sentido de atenuar as acusações de ambos os lados. Mas, como se tratava de uma questão estrutural, de

política pública, parece ser possível interpretar esta afirmação também como uma atribuição de responsabilidade coletiva, no sentido de todos serem responsáveis, em nome da governabilidade, o que provavelmente não faz jus à grande maioria negra, vítima do apartheid.

Uma voz mais crítica alega que

[...] a aposta da comissão, fazer com que os principais responsáveis que foram denunciados manifestariam uma aceitação razoável de suas conclusões, a fim de permitir a construção de um vasto consenso social, fracassou em grande parte. [...] Em vez da esperada convergência gradual sobre a “verdade” histórica, os principais partidos preferiam uma reiteração de suas versões da história sul-africana, através de uma modificação de linguagem, mudando a concepção do outro como inimigo, para uma representação como sendo adversário. (LEFRANC, 2005, p. 81).

As versões contraditórias da história sul-africana se perpetuaram e, em geral, as máximas autoridades políticas se negaram a assumir uma responsabilidade que não fosse

coletiva ou moral na violência política. No entanto, o processo iniciado permitiu uma

relativa tomada de consciência da minoria branca sobre as brutalidades cometidas em nome do apartheid, assim como a multiplicação de pedidos de desculpas por parte de antigos dirigentes.

Para Richards (1998), na melhor das hipóteses, a CVR iniciou um processo para criar estruturas que permitam iniciar a cura e a construção de uma memória coletiva. No preâmbulo de sua constituição está que a contribuição da CVR é a construção de uma ponte entre o passado de uma sociedade profundamente dividida, caracterizada pela discórdia, muito sofrimento e injustiças, para um futuro que reconhece os direitos humanos, a democracia, a coexistência pacífica e possibilidades de desenvolvimento para todos os sul-africanos. O procedimento da anistia é um progresso necessário em direção à reconciliação e reconstituição, tendo como objetivo o entendimento mútuo e não a vingança. A CVR é a luta por uma verdade curativa, cuja duração, certamente, irá muito além do fim da CVR.

E, por fim, uma pergunta ainda não respondida é sobre a possibilidade de conseguir reconciliação se não houver arrependimento e responsabilização. No processo da África do Sul era suficiente que os perpetradores relatassem a verdade para receber anistia. Para Michael Lapsly, conhecido militante anti-apartheid, a reconciliação é um pacote com vários ingredientes: reconhecimento e confissão daquilo que foi feito, arrependimento explícito e restauração. Para ser perdoado, não era suficiente dizer: I‟m sorry.

Diferentemente de Ruanda, na África do Sul, o entendimento é de que um pedido explícito de perdão é desnecessário. Este pode estar fundado na teologia protestante, predominante naquele país, que entende que o processo de arrependimento e conversão está no reconhecimento do erro, ou do pecado, através do qual o crente se liberta do peso do acontecido. A chave da mudança está no ato do reconhecimento, dispensando assim as palavras, também pedidos de perdão. A reconciliação é incondicional, sendo a conversão, a mudança de atitude, o motor da mesma através do reconhecimento (WÜSTENBERG, 1998, p. 114).

Uma questão problemática aos processos da justiça, restauração e reconciliação parece-me ser esta relação entre verdade e arrependimento. Na África do Sul se parte do pressuposto de que no fato de contar a verdade está automaticamente presente e subentendido o arrependimento, sendo, portanto, desnecessário exigir sua manifestação explícita. Fazer aparecer a verdade criminosa do apartheid, pronunciar o relato do acontecido ou de sua própria ação, neste entendimento, automaticamente, faz o perpetrador merecer a anistia. Em seu reconhecimento está embutida a vontade de mudança de atitude. Possivelmente, é a partir deste pano de fundo que a CVR dispensa um pedido explícito de arrependimento, embora esta posição não seja aceita por todos os sul-africanos.

Talvez a maior contribuição da CVR tenha sido a criação de uma história

definitiva e de certa forma impositiva e inegável sobre os abusos do apartheid, ao

mesmo tempo em que estimulou um debate nacional e internacional sobre a cultura de direitos humanos.

Este foi o caminho próprio da África do Sul. A história vai mostrar se o apelo à história individual de vítima e perpetrador, expô-la em frente à comunidade para que todos pudessem ouvi-la, ritualizá-la e, a seguir, anistiar os perpetradores, foi a estratégia certa no sentido de favorecer ao máximo a restauração e um futuro reconciliado.

Outros países ainda têm que achar seu caminho para propiciar aos responsáveis a assunção de sua responsabilidade e encarregar-se da restauração. Não há respostas definitivas e únicas. Por isso, passo para a experiência do Chile, que mostra como o caminho da verdade, da justiça e da reconciliação pode ser longo.