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3.5 Sobre a reconciliação

3.5.5 O poder

No primeiro capítulo, em diversas ocasiões apareceu a importância do empoderamento e da distribuição do poder assim como a desautorização ou o desempoderamento, bastante frequente nos processos judiciais comuns. A restauração é possível na medida em que há envolvimento e empoderamento da comunidade na participação da solução de seus conflitos, com respeito a direitos e com compartilhamento de responsabilidades em diferentes níveis (ZEHR; MIKA, 1997; BARTON, 2003; PELIKAN, 2002; MELO et al., 2008).

Em pesquisa sobre a violência contra a mulher, provocada pelo seu parceiro, Pelikan (2009) afirma que o maior potencial da JR, nestes casos, é o deslanchar de um processo de empoderamento que põe fim à violência. O empoderamento vem, principalmente, da experiência de ser compreendida e de encontrar apoio. Em relação ao parceiro, o maior efeito do empoderamento da mulher, conforme mostra o segundo estudo, com intervalo de dez anos em relação ao primeiro, aponta para uma mudança sociocultural. Os homens levaram mais a sério a iniciativa das mulheres de colocar limites a seu comportamento violento e, em muitos casos, expressaram um pedido de desculpas. Contudo, para esta intervenção ter efeitos duradouros, precisa de certas condições por parte da vítima, pois, sem recursos – no caso de mulheres muito pobres em que se configura uma situação de inevitável dependência (sem dinheiro, sem qualificação profissional, sem acesso a informação ou contatos que possam propiciar ajuda) – é impossível oferecer uma ajuda e muito menos encaminhar um reforço ou empoderamento. O empoderamento pode acontecer onde já foram dados alguns passos – por exemplo, lavrar um boletim de ocorrência, procurar um atendimento psicológico – , isto é, onde existe um mínimo de autonomia. O fato da reivindicação da vítima ao direito de uma relação livre de violência chegar até o procedimento de JR é outro empoderamento, que exige o reposicionamento do parceiro, caso queira continuar sua união e assim colocar fim à violência; em alguns casos, com o fim da relação.

O poder, na abordagem de John Paul Lederach (1997), especialista internacional em construção da paz, está fundado numa concepção de poder como luta, articulação e imposição da própria vontade, poder como fruto do conflito. Poder é uma relação estratégica, é a habilidade de realizar mudanças, intervir em processos, conquistar metas e objetivos. Para a transformação construtiva do conflito, é imprescindível levar em conta o papel do equilíbrio, do desequilíbrio e da manipulação do poder. Por mais que alguns tenham mais e outros menos, todos têm algum grau ou quantidade de poder que existe sempre em relação a outras pessoas. É muito fácil abusar do poder, quando se nega ou se desconhece o mesmo. Quando alguém age como se tivesse um nível de poder igual ao do outro, mas por recursos materiais, sociais de instrução, status, ocupando posições formais, origem étnica ou de gênero, tem mais poder, sem saber e sem querer, pode prejudicar a relação e intimidar o outro. O equilíbrio de poder, entre pessoas e grupos em conflito, é muito importante e pede uma compreensão mais aguda da relação de poder existente entre os envolvidos. Torna-se necessário aumentar de um lado ou/e diminuir o poder do outro lado. Ignorar ou subestimar a importância da balança do poder para a transformação de conflitos impede o avanço nas negociações ou torna os acordos pouco duráveis. Quando a relação é desequilibrada, um acordo é praticamente impossível.

Seguindo esta linha, Enns e Myers (2009) afirmam que a restauração justa está condicionada à redistribuição do poder, que deve ser, no fim do processo, mais equitativa do que antes da restauração. Isso é possível somente com uma análise cuidadosa de violações específicas, do contexto social e da distribuição do poder em questão. Esta análise é multidimensional, levando em conta o contexto social dominante, os subcontextos específicos orientados para a comunidade de interesses e os sujeitos individuais. Mapear o poder desta forma busca problematizar a tendência subjetivista, através da confrontação com as condições objetivas de dominação e dos contextos culturais específicos. O desafio é incluir na análise as condições macro: possibilidade de ter segurança e saúde, de deslocamento, comunicação e autodeterminação, além de estabelecer conexões entre poder objetivo e subjetivo e aplicar ferramentas transculturais, tais como autoconhecimento, escuta, empatia e pensamento crítico. Também pode ajudar na superação de tendências pessoais e estereótipos em relação ao outro, escutar sobre a autopercepção de grupos e identificar como as condições econômicas e políticas influenciam o poder de mobilidade, acesso, autodeterminação e influência.

Para estes autores, é frustrante perceber que muitos facilitadores de JR não examinam e nem levam em conta as dinâmicas de poder. O objetivo da ação não violenta é voltar a sentar com o adversário para mediar a questão, equilibrar o poder e negociar a paz. Contudo, é verdade que as partes mais fortes, politicamente, dificilmente negociam com as mais fracas. O processo de paz somente é possível com o envolvimento do adversário na busca de soluções.

Creio que o apontamento de Pelikan sublinha bem como na prática pode haver um empoderamento que possibilita uma primeira iniciativa, mostrando ou exibindo, de alguma forma, certa quantidade ou peso de poder para provocar o movimento do(s) oponente(s). O poder está em relação, e somente em relação com outros pode ser minimamente equilibrado, redistribuído, para que o outro deixe de ser ameaça. Somente neste estado é possível sentar juntos para pensar sobre um possível futuro.

Tento estabelecer um diálogo entre o entendimento dos ativistas da paz e da reconciliação, Lederach, Enns e Myers, e a filosofia política de Arendt, quando esta afirma que

[...] o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está “no poder”, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome. (ARENDT, 1994, p. 18).

Nesta visão, o poder funda o grupo quando este elabora suas regras. O poder é entendido como ação que acontece em conjunto de um grupo e em público, podendo ser visto e ouvido por todos. É possível tratar o poder (e a esfera pública), ao mesmo tempo, como o espaço das aparências, no qual os humanos podem mostrar, por atos e palavras, quem são e o que podem fazer. A legitimidade do poder reside neste ato fundacional, do qual todos participam em condição de igualdade. Ao mesmo tempo, um grupo que age em concerto visa produzir poder, isto é, criar consentimento. Este conceito de poder é inteiramente marcado pela ideia de consentimento, de apoio e de livre troca de opiniões entre iguais (PERISSINOTTO, 2004).

Em situação pós-conflito, quando as partes iniciam a articulação de ações em conjunto e existe uma distribuição desigual de poder, é difícil aplicar o conceito arendtiano de poder, entendido como a habilidade para agir em concerto entre indivíduos emancipados. Num primeiro momento do processo de reconciliação, a prática aponta para a necessidade de alguma intervenção estratégica, poderosa, para equilibrar o poder. O consentimento e a livre troca de opiniões somente são possíveis

quando o outro não é mais ameaça, mas voltou a ser um igual a mim, membro equitativo do grupo.

Quando acontecer o CP ou o círculo de restauração que reúne os envolvidos, os facilitadores já mapearam o contexto com suas relações e dificuldades, já dialogaram separadamente com os envolvidos durante os pré-círculos, já trabalharam para estabelecer um equilíbrio nas relações de poder. Neste momento, o círculo pode ser o espaço para (re)unir o grupo, (re)colocar regras e atribuir ou confirmar a identidade ao grupo. Depois de equilibrar o poder, a reconciliação é capaz de conciliar novamente o grupo, ser um ato fundacional que confirma identidade e abre a possibilidade de um futuro em comum.

Inicialmente, quando no CDHEP começamos a trabalhar com o conceito da reconciliação, guiadas por um imaginário ideal e inexistente, arquitetávamos a reconciliação como sendo algo parecido com uma situação perfeita e perpétua. Após aprofundar a questão, fica claro que o ideal da reconciliação pode ser um guia na difícil tarefa de possibilitar uma relação, mais ou menos próxima, posterior a uma situação de conflito, mais ou menos intensa.

O quanto é possível avançar em direção a este ideal depende da relação de confiança que é possível estabelecer e que está relacionada a muitos fatores, como acabamos de ver. A experiência mostra que o perdão e a confiança ajudam no processo da reconciliação, mas ambos não podem ser proclamados ou ordenados pela instância política. Ao contrário, a instância política pode apenas fomentar as condições para o processo de reconciliação acontecer e os exemplos do mundo mostram que, devido a seus interesses políticos e à concentração de poder, não é o lugar confiável para articular esta iniciativa.

É imprescindível que a instância a quem for delegado o processo de reconciliação – em muitos casos, as comissões de verdade, criadas especificamente para esta finalidade e sem outras atribuições políticas – represente a diversidade étnica, ideológica, religiosa e política existentes no grupo em questão. Isso favorece uma constelação de poder equilibrado, possibilitando que os grupos depositem mais facilmente sua confiança neste espaço e contribuam com as iniciativas da reconstrução das verdades que se interpuserem entre os mesmos. Após um longo processo de diálogo, pouco a pouco, talvez seja possível chegar à construção de uma narrativa equilibrada, núcleo central da reconciliação.

Como já vimos anteriormente, o perdão é gratuito e incondicional, em contraposição à reconciliação que se baseia na justiça, como os autores acima citados não cansam de repetir. A justiça orientada para o futuro implica chegar a um acordo sobre o passado, examinando as feridas de todos os lados e reconhecendo as responsabilidades. Não é possível construir um futuro se continuar o medo de se conhecer o passado: recordações dolorosas devem ser examinadas e elaboradas para possibilitar uma história comum, uma narrativa mínima.

A tomada de consciência da perda e a acolhida da dor permitem um alargamento humano através da confrontação com a impotência frente a certa realidade, sem que isso, necessariamente, diminua o humano na própria pessoa e nem no outro. Esta aceitação pode nos levar a passar pelo sofrimento e assim chegar a um lugar melhor, um lugar que permita minha existência e a do outro, ainda que com sofrimentos. Faço aqui uma ligação com o pensamento de que o outro é aquele que eu não sou e que me solicita, me interpela e me atribui uma responsabilidade, neste caso, a responsabilidade de possibilitar um futuro.

Assim, fechando este item, acredito ter mostrado como as dimensões pessoal, interpessoal e societária estão enredadas na possibilidade de fazer acontecer a reconciliação, sendo resultado ou processo.

Tanto a reconciliação quanto a JR são frutos de uma intensa confrontação pessoal e grupal com os fatos do passado, de decisões políticas e de intervenções sociais que não podem ser esperadas como um resultado natural e não acontecem por acaso. Reconciliação, mais do que tapinhas nas costas ou tentativas de esquecer, é intenso trabalho.