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Espaço de tensão e luta

3.4 Sobre a verdade

3.4.3 Espaço de tensão e luta

Conforme já apresentei em outra parte, nos espaços de mediação e de JR não se trata de manter o jogo da produção da verdade dos fatos como os advogados estão acostumados a fazer. A proposta é que os participantes do processo de restauração retomem a posse de sua própria experiência e tomem em suas próprias mãos o governo da transformação do conflito comum. Ainda que o conflito e as relações de poder persistam, deixa de haver dominação, por ter sido criado um respeito pelo espaço do outro através do deslocamento de uma relação de poder vertical para uma relação de poder horizontal – entre as partes e das partes consigo mesmas (CATÃO, 2009).

Na ótica de Foucault, parece ser duvidoso afirmar que não haverá dominação. Mais bem se poderá falar de um deslocamento no eixo do poder que, nos procedimentos da JR, possibilita uma montagem da verdade, através da interação dos diversos envolvidos no conflito, estes todos autogovernados. Talvez seja exatamente este autogoverno que permite colocar vítima e agressor, um frente ao outro, para conversar sobre o conflito e atentar a perspectivas de avaliação que não são as suas. Por

conseguinte, nos dizeres de Melo (2005; MELO et al., 2008), se produz uma reavaliação das próprias condutas e verdades e, no bojo deste encontro, pode emergir uma densidade subjetiva própria apenas à negociação e ao estabelecimento do compromisso. O ideal da JR parece ser a criação de um espaço que permita relações emancipadas, sem testemunhas ou provas, sem o convencimento do advogado, sem interferência do juiz ou outro mantenedor de um poder superior. Já vimos que a função do facilitador é promover a conversa, ajudar os participantes a cederem parte de suas afirmações absolutas para fazer surgir verdade(s) minimamente aceita(s) por todos. Portanto, a construção desta(s) verdade(s) parece se deslocar para o interior de cada pessoa, convidada pelo facilitador a rearticular os fatos, sentimentos e memórias, para encontrar um gancho que possa engatar com a outra parte, liberando, aos poucos, uma narrativa de consenso mínimo, uma nova verdade.

A partir da abordagem arendtiana, podemos reconhecer o conceito de pluralidade na base da construção desta verdade. A construção, a partir das verdades plurais, pode constituir uma garantia para a vida em comum com (e apesar de) a pluralidade. Nesta visão, a pluralidade é a condição para encontrar a verdade, ou o interesse comum, que habita entre os envolvidos, este inter-humanos que permite, ao mesmo tempo, a relação.

Voltando a abordagem para o exercício de tentar construir um consenso, certamente este é mais fácil a partir da orientação do discurso para os valores ou um valor de “consenso de ordem mais alta”, conforme a proposta de Heller (1998, p. 325), imaginando que tenham uma afinidade com o interesse ou a necessidade pessoal de todos os participantes. Um diálogo mais abstrato abre mais facilmente a possibilidade de consenso, mostrando haver pontos em comum, principalmente quando os envolvidos pertencem a categorias sociais muito diversas, sendo difícil identificar, de imediato, interesses ou necessidades parecidos. É um caminho possível para um processo de reconhecimento mútuo e, portanto, de construção de uma narrativa, ainda que bastante abstrata. Certamente, é necessário testar empiricamente esta afirmação, o que não será possível nesta pesquisa.

De outro lado, esta construção de consenso, idealmente aplicada à JR, não critica o direito, mas parece afirmar a norma estabelecida como certa, além de convidar os envolvidos a fazer sua autorreflexão e até autoacusação.

É a confissão uma parcela do ato de coragem para alguém revelar o que é, conforme já vimos na visão de Arendt (1997)? Ou, o compromisso de dizer a verdade

sobre si, não sendo percebido como confissão forçada, é uma confirmação da normatização do sujeito, seguindo a lógica de Foucault? Assumir as regras da sociedade e fazer seu próprio ato de confissão faz o próprio agressor sujeitar-se ao enredo estrutural, à norma preestabelecida? Beneficia a produção do sujeito agressor assim como do sujeito vítima, completando, desta forma, o processo, através do discurso sobre si mesmo?

Na ótica da microfísica do poder, o poder normatizador, imanente na prática da confissão, está presente de forma externa e/ou interna aos participantes. Quem confessa é controlado pela força reflexiva nele operante, ao mesmo tempo em que é monitorado pelas intervenções do facilitador e através dos fluxos ou movimentos da restauração.

Sob outra lógica, o belíssimo texto sobre a autobiografia e a redação de um diário de um prisioneiro na França, em fins do século 19, sugere que, de certa forma, todos, movidos por objetivos individuais, temos a necessidade de arquivar a própria vida, o que pode ser entendido também como fazer confissões. Nunca é uma prática neutra e, muitas vezes, é a única ocasião de se fazer ver tal como o indivíduo se vê e deseja ser visto. Nunca se confessa sua vida de uma vez por todas, o que faz com que o relato esteja sendo refeito incessantemente. O relato da vida ou a confissão deste prisioneiro, no período imediatamente anterior a sua execução, permite apreender a história de sua relação com os papéis que mantém e restituir seu discurso sobre sua prática e as dificuldades que ele encontra. Artières (1997) afirma que, ao contrário do que se pode crer, essa prática provoca um processo notável de subjetivação, e não sujeição, pois o prisioneiro, através da invenção de uma forma profundamente original, constrói para si mesmo uma identidade a partir e em torno de representações que são feitas dele. Arquivando sua vida, ele imagina um discurso híbrido que resiste à interpretação, sendo isso um dispositivo de resistência.

Este relato abre mais uma perspectiva sobre a autoconfissão dos participantes em processos de JR. Confessar, comunicar sobre passagens de sua própria vida, interpretá- las, silenciar sobre outras, pode ser entendida como um processo de construção da própria identidade, em diálogo com representações heterônomas, num clima e contexto favorável ou adverso, e muitas vezes um e outro. A autoconfissão pode ser uma forma de autogoverno, de controle sobre si mesmo, podendo ser sujeição assim como subjetivação, no sentido de apropriação autônoma, decisão de dizer ou não e assim resistir.

Assim, a verdade sempre incompleta, ambígua e híbrida, construída através do exercício de comunicação intra e inter-humana, se completa e continua incompleta, através do exercício de junção de partes.

O facilitador pode ser visto em uma posição de panótico, observando e coletando as informações necessárias, constituinte do poder normatizador que convida ou até obriga vítima e ofensor a falar e a ouvir, a construir um consenso através da técnica reflexiva (BAUER, 1997). Também a obrigação de falar e de ouvir, imposição externa, pode ser vista como uma forma de violência; por outro lado, pode ser condição para abrir o canteiro da construção daquele consenso mínimo ou, ainda, pode ser a oportunidade de construção de sua identidade e do discurso sobre si; pode permitir que agressor e vítima construam suas identidades.

A questão da verdade é uma questão sobre o campo de luta contemporânea, em torno das verdades, verdades jurídicas, formas de punir, afirmações sobre o crime e o criminoso. Há lutas, há debates, há tentativas de colocar essas questões em um campo de liberdade e emancipação; há tensão, pois sempre há liberdade e sujeição, poder e resistência. Existe esta tensão eterna sem necessariamente haver vencedores e vencidos. Sempre há relações de poder e produção de subjetividades. Na mesa de negociação da JR, os lados distintos, os desentendimentos e as interpretações ao redor desta luta são chamados a mostrar-se, a entrar na disputa daquilo que é possível tolerar, restaurar, ignorar.

Na conjuntura particular dos envolvidos, que tipo de verdade pode ser consensuada a partir dos diferentes lugares que cada indivíduo ocupa, a partir dos discursos que produzem efeitos (de verdade) e são contestados, reinventados e novamente ocultados?

Refletir sobre construção da verdade levanta muitas possibilidades e muitas tensões próprias desta tarefa. Entendendo que a verdade é relação sempre tensa, neste momento, não me resta outra coisa a fazer do que deixar estas reflexões justapostas e tensionadas entre si, ciente de que sempre haverá luta e conflito entre verdades. Creio que esta tensão e luta fica mais exposta nos procedimentos da JR, por não haver um julgamento de um lugar absoluto – a lei incorporada no juiz –, mas por permitir a relação entre humanos iguais, sendo, portanto, um desafio imenso a ser administrado.

E por fim, existe a necessidade de compreender que a verdade, quem sabe, quando cai do céu sobre a terra, se rompe em cem pedaços, um pedacinho à disposição de cada

um. Esta afirmação poética de Panikkar (2007) convida a entrar em diálogo, a partir do pedacinho de verdade que é meu, com os pedacinhos alheios.