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2.6 Justiça Restaurativa em nível macro: a reconciliação

2.6.3 Chile

Tenho a impressão de que o período pós-militar mais bem estudado na América Latina é o do Chile. Em 1978, anos antes da transição para a democracia, o governo Pinochet publicou um decreto-lei que concedia a anistia geral para os perpetradores de crimes durante a ditadura militar. Após a derrota moral e política de Pinochet, o povo elegeu como presidente um membro da oposição moderada, que tinha anunciado seu compromisso na defesa intransigente dos direitos humanos. Fiel a esta promessa e paralelamente a diversos intentos fracassados de revogar a lei da anistia, o presidente Patricio Aylwin, criou a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, chamada também Comissão Rettig38. Era composta por pessoas de reconhecido prestígio e autoridade moral, a fim de ajudar a esclarecer a verdade sobre as violações mais graves dos direitos humanos.

As tarefas confiadas à CVR foram:

Definir um quadro tão completo quanto possível, sobre os graves incidentes de violação dos direitos humanos, suas origens e circunstâncias; Reunir informações para identificar as vítimas e estabelecer seu destino ou paradeiro; Recomendar medidas correctivas e afirmativas considerando a justiça e medidas legais e administrativas a serem tomadas para interromper ou prevenir a prática de outras violações graves dos direitos humanos (CUYA, 2006).

Tinha nove meses para investigar os acontecimentos que levaram à morte ou ao desaparecimento de pessoas entre setembro de 1973 e março de 1990 dentro ou fora do país.

2.6.3.1 O funcionamento da Comissão da Verdade e Reconciliação

Mais de 60 pessoas de várias organizações nacionais e internacionais de direitos humanos colaboraram no processamento das informações obtidas pela Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR), que recebeu mais de 3.400 parentes de desaparecidos e assassinados. Consultou mais de cem arquivos de organizações de direitos humanos, acadêmicos, políticos e religiosos. A sede dos governadores provinciais e prefeituras do

país e as embaixadas e consulados chilenos no exterior eram usados para receber denúncias de desaparecimentos. Os hospitais e o registro civil responderam favoravelmente aos pedidos de informações sobre as vítimas da ditadura chilena. Este não era o caso da polícia e forças armadas: embora 70% tenham respondido às cartas enviadas pela Comissão, a maioria informou que os documentos sobre os detidos desaparecidos já haviam sido queimados ou destruídos em conformidade com as disposições legais. Apenas um pequeno número de membros das Forças Armadas cooperou, e ainda de forma tímida, com a CVR (LEFRANC, 2005; CUYA, 2006).

Em maio de 1991, foi apresentado o relatório final39 das investigações da Comissão. O presidente Aylwin aproveitou a oportunidade para dizer que, com a contribuição da verdade, chegou a hora do perdão e da reconciliação e pediu perdão às vítimas, em nome da nação. Apesar de não conseguir que os autores dos crimes se reconhecessem como tais, o informe abriu um caminho para a reparação das vítimas, ancorada em Lei40, com várias medidas de bem-estar social, pensão mensal, facilidades para tratamento de saúde, educação, habitação, cancelamento de certas dívidas e isenção do serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas. Nos anos seguintes, foram encontradas algumas das vítimas da ditadura enterradas em cemitérios clandestinos e dois agentes da Dirección de Inteligencia Nacional (DINA) foram condenados.

Contudo, em 1995, o então presidente Frei teve que reconhecer que o Chile não havia alcançado a reconciliação. Apesar de algumas atividades judiciais, o dispositivo da justiça permaneceu em grande medida sem mudanças, ou seja, continuou prevalecendo a anistia de 1978 (LEFRANC, 2005). A sociedade civil chilena continuou pressionando o governo para afirmar a dignidade também das vítimas de atos de agentes do Estado, encarcerados ou torturados por motivos políticos. Em setembro de 2003, o Presidente Lagos instalou a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, presidida pelo Monseñor Sergio Valech (Comisión Valech). O período considerado era o mesmo daquele da Comissão Rettig. Tendo como objetivo preencher as lacunas da Comissão Rettig, que só podia se pronunciar sobre os que foram mortos por agentes do

39 O Relatório final é composto por três partes:

Parte I: Síntese dos fatos de violações dos direitos humanos (p. 1.094). Parte II: Recomendações para a reparação dos danos (p. 1.096-1.168).

Parte III: “vítima”. O volume de 635 páginas, com um esboço biográfico de 2.279 pessoas, em relação às quais a Comissão chegou à convicção de que morreram ou desapareceram como vítimas de violação dos direitos humanos, incluindo 132 membros do executivo (CUYA, 2006).

Estado durante a ditadura, esta Comissão tinha como missão aconselhar o Presidente da República em suas ações.

Em novembro de 2004, foi apresentado um primeiro relatório41, ampliado em maio de 2005, que reconheceu mais 1.204 pessoas como vítimas. A lista de vítimas estabelecida pela Comissão forneceu a base para conseguir alguns benefícios, como pensões de reparação etc. Tendo concluído seus trabalhos, a comissão foi dissolvida.

Como resultados punitivos, em resposta ao trabalho da CVR, em março de 1994, a justiça chilena condenou 15 militares e um civil à prisão perpétua42. Em 1998, a Corte Suprema chilena rejeitou o uso da anistia em um caso envolvendo 24 desaparecidos. Em 2002, condenou dois militares – um general e um brigadeiro – por violação dos direitos humanos durante o período compreendido pela anistia (NO BRASIL..., 2009).

Em 1998, o juiz espanhol Baltasar Garzón ordenou a prisão do ditador Augusto Pinochet, alegando que os crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes públicos durante a ditadura são de impossível prescrição e que as leis de anistia não podem impedir a investigação de crimes contra a humanidade. Garzón utilizou o relatório da CVR para emitir esta ordem. Apesar de numerosas tentativas de processar o ditador Pinochet43, este só foi preso, após abertura de um processo pelos crimes de genocídio, terrorismo e tortura. Morreu em 2006, sem ter sido condenado e foi sepultado sem honras de Estado (MERCADO GLOBAL, 2008).

Em março de 2008, 24 oficiais e suboficiais da polícia política da ditadura de Pinochet foram condenados por crimes de sequestro, homicídio e tortura de 31 militantes de esquerda, opositores à ditadura. Em maio do mesmo ano, 98 ex-agentes da ditadura foram presos por violações aos direitos humanos (MERCADO GLOBAL, 2008).

Mas, apesar destas condenações, apesar da reconstrução das narrativas e de muitas indenizações, o Chile continua não reconciliado. Parece que a reivindicação por uma justiça real e uma reparação digna para todas as vítimas continuam ressoando, pois, em 2008, ainda se afirmava que “Chile no poderá „olvidar‟ ni menos „perdonar‟” (PADILLA, 2008). Sob o título Reapertura de la Comisión Valech, o diário El Clarin

41 O primeiro relatório continnha 27.255 nomes. Imediatamente, mais de oito mil pessoas pediram

reconsideração.

42 Trata-se da morte do artista plástico Santiago Allende, do sociólogo José Manuel Parada e do

professor e dirigente sindical Manuel Ceballos, caso de 1985, conhecido como “Os Degollados”.

43 De 1989 a 1990, mais de 200 ações foram apresentadas à Justiça contra Pinochet, que foi preso e

informa que em 10 de dezembro de 2009 foi criado, por parte do governo, o Instituto Nacional de Direitos Humanos (NHRI), com a tarefa de solicitar a reabertura do processo de avaliação dos ex-presos políticos, para atender os sobreviventes44 que ainda não foram reconhecidos. Seu trabalho começaria em meados de janeiro de 2010 (ARAMBURU, 2009).

Como podemos observar, o processo de lidar com o passado autoritário e violento no Chile se iniciou em 1978, com a anistia do governo Pinochet. A imposição de esquecer, a anistia política, contrário ao pretendido, forçou o aparecimento da Comissão Rettig em 1990, seguida pela Comissão Valech em 2003 e, em fins de 2009, pela criação do Instituto Nacional de Direitos Humanos. As reivindicações por justiça e verdade se estendem ao longo de três décadas e ainda não cessaram. Este processo evidencia, mais uma vez, que a paz é uma construção, um longo prazo, que eventualmente pode levar à reconciliação.

O Chile também é um exemplo de uma sociedade civil mobilizada. A primeira comissão disponibilizou de 60 pessoas trabalhando na colheita de informações, consultando mais de 100 arquivos de organizações de direitos humanos, acadêmicos, políticos e religiosos. Este país, com 16 milhões de habitantes, foi capaz de disponibilizar mais de cem arquivos com informações políticas; evidencia ter uma consciência cidadã bastante ativa, o que certamente contribui para não deixar adormecer a história, enquanto a narrativa completa não for contada e assimilada pela grande maioria.