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Construção da verdade e controle social

3.4 Sobre a verdade

3.4.2 Construção da verdade e controle social

Parece que, neste momento histórico, estamos assistindo à geração de uma nova forma de aproximação da verdade, através das Comissões de Verdade (CV), que são uma invenção de apenas algumas décadas e estão sendo aperfeiçoadas continuamente. Mas, como se constrói a verdade nestas novas de formas de inquérito, na CV ou nos procedimentos de JR?

“Não reprovamos uma coisa porque é um crime, mas é crime e por isso o reprovamos.” (DURKHEIM, 1989, p. 100).

Isso significa que nossa verdade tem a ver com a moral que construímos, com aquilo que a comunidade ou sociedade convencionou como sendo justo ou não. Quando alguém de nossa comunidade ofender a moral coletiva – aquilo que foi definido como bom e justo –, essa pessoa tem que ser punida. A autoridade da punição vem do sentimento coletivo de defender a consciência coletiva contra todos os inimigos. Para Durkheim, a finalidade de toda a sociedade é moderar a guerra entre os humanos, subordinando a lei física do mais forte a uma lei mais alta. A ausência desta lei, a partir da associação dos indivíduos, cria um vazio cuja importância é de difícil avaliação. Uma norma, e, portanto uma verdade é uma maneira de agir obrigatória, de algum modo, subtraída ao arbítrio individual.

O sociólogo norte-americano Garland (1990) concorda com a afirmação de que os sentimentos coletivos são as entidades reais nas quais estão enraizadas a constituição afetiva e moral dos indivíduos. Contudo, critica Durkheim por desconsiderar que estes sentimentos são resultado de um processo histórico de lutas políticas. O direito e a ação do Estado não expressam simplesmente estes sentimentos como verdade, mas interferem no sentido de transformá-los e recriá-los em concordância com uma visão

particular da sociedade. É menos um processo natural e normal do que fruto de um lento processo de extenso trabalho ideológico. Os sentimentos morais, internalizados pelos indivíduos, mudam-se ao longo do tempo na medida em que novos códigos estão sendo legislados e novas gerações estão sendo socializadas de acordo com eles.

Isso significa que o conteúdo das verdades vai mudando ao longo do processo histórico. Neste sentido, Foucault (2005) evidencia a construção de certas ordens de verdade a partir de certas condições em determinado momento histórico. E estas verdades, por sua vez, constroem certo tipo de pessoas, a partir de saberes que se relacionam de uma determinada forma com a verdade em jogos de partição do verdadeiro e do falso, de quem pode ou não falar, do que é qualificado e do que é desqualificado. Centra sua atenção na questão do sujeito/poder/verdade, investigando sobre a formação de domínios de saber a partir das práticas sociais e como estas modelam sujeitos. Nem o sujeito, nem a história (a verdade) são dados definitivamente. Existe um campo de interação de sujeitos, de formas de saber e, por conseguinte, jogos de poder e verdade.

Neste entendimento, verdade e conhecimento são o resultado do jogo do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos e combates. Existem somente por haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, por ser uma violação das coisas a conhecer. Através das condições políticas e econômicas, formam-se sujeitos de conhecimento, relações de verdade e relações de poder.

Foucault vai desenhando como a construção da verdade ao longo dos séculos passou por diversas formas:

a) a prova – uma espécie de jogo de estrutura binária que é aceito ou não, em que

se vence ou não o desafio, sem, contudo, existir uma sentença enunciada por um terceiro; não há a separação entre verdade e mentira, mas há a confirmação de que o mais forte ou ágil tem razão;

b) a retórica – a arte de persuadir, convencer as pessoas de que o dito é a verdade,

o que é a função dos advogados, aqueles que falam no lugar de outro; mais uma forma é através do conhecimento por testemunho;

c) o inquérito – o exercício do poder através de perguntas, pois é necessário procurar para saber a verdade. É uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, vem a ser uma maneira de autentificar a verdade. É uma forma de saber-poder.

Parece-me que a JR pode também ser analisada nesta ótica de saber-poder, pelo marco das novas formas de governo, do autogoverno, do governo de si. Segundo a interpretação foucaultiana, o governo é o ponto de contato entre o modo como se dá a manipulação e o conhecimento do indivíduo, nas sociedades ocidentais, e o modo pelo qual os indivíduos se conduzem e se conhecem a si próprios. Implica atentar para a interação entre

[...] os pontos em que as tecnologias de dominação dos indivíduos uns sobre os outros recorrem a processos pelos quais o indivíduo age sobre si mesmo e, em contrapartida, os pontos em que as técnicas do eu são integradas em estruturas de coerção (FOUCAULT apud BAMPI, 2000).

Neste sentido, o controle e a construção da verdade não somente estão sendo orientados para os outros, mas são produzidos a partir do próprio controle do sujeito sobre si mesmo, o que introduz o tema da autoconstituição do sujeito. Este deslocamento no eixo do poder possibilitou pensar a passagem do governo dos outros para o governo de si, tornando a autoridade de controle cada vez mais invisível e funcionando de forma cada vez mais discreta.

A tese de Schuler (2009) – com o título sugestivo de Veredito: escola, inclusão,

justiça restaurativa e experiência de si – analisa de que modo o dispositivo da inclusão vem funcionando por meio do discurso da JR em escolas de Porto Alegre. Indaga sobre a tecnologia do círculo restaurativo em que se busca a transformação das experiências de si mesmo dos indivíduos colocados na posição de ofensor e como se constitui em diferentes relações de poder, saber e modos de subjetivação, considerando que este último é o efeito principal dessa maquinaria jurídico-escolar. O círculo restaurativo é entendido como um procedimento de verdade e governo, empregando o exercício do poder soberano, disciplinar e de controle, por meio de tecnologias de si, tais como a exposição pública, a confissão, a responsabilização e o acordo.

O aluno ofensor de hoje é tomado como risco em potencial no futuro, e nessa relação são produzidos vereditos morais e científicos, em que os indivíduos em posição de alunos são colocados a experimentar a si mesmos, em um determinado domínio moral, problematizando-se a si mesmos por meio de valores como culpa, vergonha, cura, responsabilização, humildade, justiça. É este o controle dos indivíduos e das populações em uma biopolítica contemporânea, em que o controle torna-se generalizado, garantindo isso principalmente pelos espaços de autonarração, em que o indivíduo se faz nos próprios códigos do regime de verdade vigente. Um ato jurídico da consciência, somado a toda uma tecnologia de escrita e documentação, em que o tribunal é assumido como modo de

existência, no qual o indivíduo está constantemente prestando contas de si, julgando-se, expressando sua verdade, assumindo obrigações, ocupando o assento moral do ofensor, do responsabilizado, do restaurado, assumindo essa identidade e sendo enclausurado dentro dela, tendo como fim último o autogoverno.

Assumindo que esta produção da verdade é um movimento adequado a seu tempo e aos sujeitos daquele tempo e, ao mesmo tempo, é produtora de sujeitos de seu tempo, tenho a impressão de que tanto a Comissão da Verdade quanto os procedimentos da JR são produtores de uma nova forma de construção da verdade: uma construção coletiva, a partir de sujeitos que se reconhecem mutuamente e que incorporam o governo de si. Como qualquer outra construção coletiva, esta forma cria uma tensão entre as diversas subjetividades e os fatos objetivos vividos coletivamente. Tudo indica não haver a possibilidade de existir uma verdade absoluta. De outro lado, a construção coletiva da(s) verdade(s) – através da tensão permanente entre versões, experiências, poderes – permite, além da elaboração externa e interna dos fatos, identificar formas de restauração que influenciam o futuro.