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A subcidadania, uma questão educacional

3.6 Sobre a cidadania

3.6.4 A subcidadania, uma questão educacional

E, por fim, quero aproximar-me de algumas questões concretas de parte da sociedade brasileira. Ao longo dos dias nos quais estava me debruçando sobre esta

temática, o noticiário informava sobre a situação do sistema prisional do estado do Espírito Santo.

A situação dos presídios do Brasil, e o ES é um retrato muito bem feito do país, só está assim porque aqui só são presos pobres, negros e miseráveis. Se no nosso país não reinasse a impunidade para os ricos, para os políticos corruptos e juízes que vendem sentenças, se essas pessoas fossem para o presídio, jamais existiria prisão metálica. Só é possível permitir essa situação porque achamos que os presos, negros e pobres são uma subcidadania. Então, a eles é permitido que fiquem durante três anos em celas metálicas no calor de 50 graus. Se lá estivessem os ricos e brancos de olhos claros endinheirados, certamente os presídios que temos hoje não seriam dessa maneira. Há um recorte classista e de prioridade governamental que corrobora que os presídios se transformem em verdadeiros caixões sociais. (TOLEDO, 2010).

Acima, não está em questão um estado de exceção, por exemplo, durante uma ditadura militar. Está em questão uma denúncia sobre o dia a dia de uma parte da população, um estado permanente na sociedade brasileira onde está praticamente naturalizada uma assimetria nas relações, que parece trabalhar sempre a favor de quem tem mais poder. Como é possível que tamanha assimetria tenha conseguido estabelecer- se e generalizar-se no País?

Já tratei do corpo incircunscrito (CALDEIRA, 2000), desprotegido por direitos individuais, que resulta historicamente da ausência destes mesmos direitos. A circunscrição do corpo parece ser uma condição do cidadão, do indivíduo e do reconhecimento de sua integridade e, quando ausente, o resultado possível pode ser a

subcidadania.

A subcidadania parece ser também um fenômeno psíquico, mas não é um fenômeno individual, o que torna necessário analisar o processo coletivo que incorporou as diferenças abismais como sendo normais ou naturais. O conceito de ideologia é um caminho possível para abordar esta naturalização da desigualdade que conseguiu construir um extraordinário contexto de obscurecimento das causas da desigualdade para os privilegiados e para as vítimas deste processo.

Aplicando a constituição do habitus de Bourdieu, podemos entender o habitus primário como um gigantesco processo de aprendizados morais e políticos, capazes de generalizar e expandir dimensões fundamentais de igualdade em esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados. Este processo permite a existência de uma noção de dignidade, efetivamente compartilhada na vida cotidiana por classes que conseguiram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa que fundamenta o reconhecimento social infra e ultrajurídico. Este reconhecimento permite a eficácia social da regra

jurídica da igualdade e, portanto, da noção moderna de cidadania. Há algo como uma dimensão de “dignidade compartilhada”, no sentido não jurídico de “levar o outro em consideração”, algo como um “respeito atitudinal” (SOUZA, 2006, p. 166).

Ao longo do processo de socialização são aprendidos os esquemas avaliativos compartilhados objetivamente pelo mesmo grupo, que guiam, consciente ou inconscientemente, pensamentos, ações e comportamentos e produzem acordos implícitos, como que inscrito em nosso corpo, pré-reflexivo, para além da eficácia jurídica. No caso brasileiro, o habitus parece sugerir que algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo dela. Parece existir um acordo ancorado institucionalmente pelo não valor humano, que desqualifica indivíduos e grupos sociais para uma vida marginal nas dimensões existencial, econômica e política, como sendo subcidadãos. Com a ausência do reconhecimento social, este habitus é autodestrutivo para os grupos afetados, na medida em que a autorrepresentação e autoestima, socialmente construídas, inflige feridas profundas, atingindo suas vítimas com um autodesprezo mutilador que pode se expressar na aceitação da situação de precariedade como legítima e até merecida e justa, fechando o círculo da naturalização desta desigualdade, ainda que abismal, da sociedade brasileira. Uma vez que o fundamento da naturalização desta desigualdade é construído na estrutura ideológica invisível, não chega à consciência de suas vítimas e assim garante sua reprodução automática e o mascaramento das precondições econômicas inerentes à sua construção. A partir deste mecanismo de dominação se define quem é e quem não é gente, e, portanto, quem é e quem não é cidadão. (SOUZA, 2006).

Embora este processo de alienação, a partir da ideologia, seja bastante conhecido, achei importante fazer esta introdução. Quando se pensa a questão da JR, creio que se impõe muito cuidado para não se deixar guiar por este perigoso ponto cego. Todos os que operam a instituição do justo, tanto os ligados à instituição estatal da justiça quanto os ligados a outros espaços, compartilham este habitus de cidadania plena para alguns e incompleto para outros. Ultimamente tenho trabalhado com a situação do sistema prisional descrita no início deste subcapítulo e, efetivamente, percebo uma tolerância e até um entendimento de que as condições dos prisioneiros têm que ser as piores possíveis, pois por causa de algum crime cometido foram rebaixados para a categoria de subgente.

Creio haver aqui um desafio imenso para ultrapassar ou desmistificar esta rede à qual todos estão presos (vítima, agressor, operador de direito, facilitadores dos

procedimentos restaurativos, comunidade de afeto): não permitir que o habitus que orienta nossas opções e nosso pensar possa reforçar uma situação injusta. Como evitar falsos consensos, aos quais já me referi? Como quebrar a cegueira, apesar da ideologia ter um aspecto emocional insensível à ponderação racional, e apesar de o ódio e a raiva de quem ousa problematizar essa verdade tão desagradável aos nossos ouvidos (SOUZA, 2006, p. 188)? Como inserir práticas, experiências e perguntas, capazes de provocar dúvidas em relação a esta realidade instaurada tão firmemente em corpos e mentes? Como fazer com que as vítimas sociais desta situação não se sintam humilhadas por considerarem-se subcidadãos quando estão em diálogo com cidadãos? Como favorecer uma vergonha reintegrativa capaz de favorecer a instauração do direito para toda a sociedade, para as vítimas diretas de crimes e ofensas, e também para as vítimas da ausência da lei igualitária? Como favorecer a desconstrução da mentira da igualdade, desmentida pela realidade de grande parte da população? Como propor e animar para a reconstrução de uma nova visão de igualdade cidadã com reconhecimento mútuo?

Parece-me que, particularmente neste ponto, a educação seja desafiada por ser uma das atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele (ARENDT, 1997). Assumir responsabilidade significa favorecer um processo que permite que os envolvidos possam ser os donos da bola, que não deleguem as decisões para terceiros, que tenham coragem, possibilidade e conhecimento para decidir sobre a construção do justo em suas próprias vidas e nas situações do cotidiano. Assumir responsabilidade cidadã significa também confrontar as desigualdades, também as

naturalizadas pela ideologia, desconstruir seus fundamentos, ainda que isso atraia muito

incômodo.

Assumir responsabilidade pelo mundo significa beneficiar as pessoas para que possam se relacionar melhor consigo mesmas, que pensem e julguem suas respostas, e assim possam contribuir na construção de si mesmas, da sociedade e de um novo amanhã, superando repetições, alienações, desigualdades que prejudicam a vida.

Assumir a responsabilidade pode ser conforme faz o centro de JR, Eigen

Kracht64,em Amsterdã, que recorre às fortalezas e boas energias de pessoas comuns da comunidade para serem facilitadores. Não se define como uma assistência social, mas como um lugar onde acontecem processos decisórios que torna os cidadãos ativos, no

espaço privado e público, promovendo os mecanismos democráticos como liberdade, justiça, igualdade e respeito. Parte do pressuposto de que o poder, presente nas mentes e corações de cada pessoa, pode ser partilhado, sem abrir mão das garantias de direitos, inclusive para se proteger contra a tirania da maioria. A força transformadora está não somente no reconhecimento de interesses públicos ou alheios, mas na assunção da responsabilidade para realizá-los (JENKINS, 2010).

Como a formação para estes procedimentos restaurativos pode acontecer na realidade brasileira, pretendo delinear no próximo capítulo, quando descrevo o espaço e a prática educacional do CDHEP, uma organização não governamental que está oferecendo formação visando práticas de JR.

4 CAPÍTULO III – A Justiça Restaurativa no Centro de Direitos

Humanos e Educação Popular do Campo Limpo

No primeiro capítulo, apresentei um panorama sobre a origem, a situação e a prática da JR no mundo e no Brasil. Durante as leituras, fiquei atenta para identificar conceitos que fundamentam o campo da JR, o que teorizei no capítulo seguinte. Certamente é possível diversificar estes conceitos para além dos que eu citei: justiça justa, reconhecimento, perdão, verdade, reconciliação, cidadania. Com certeza é desejável questionar o recorte de minha análise, apesar de minha escolha criteriosa a partir dos autores de JR que se referem aos mesmos conceitos, explícita ou implicitamente.

Quando cheguei ao fim da análise e apreciei a minha escolha e meu texto a distância, compreendi que, sem invalidar os autores do primeiro capítulo, meu recorte foi influenciado também pela minha prática como educadora no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo (CDHEP), zona sul da cidade de São Paulo, onde se trabalha com a temática da JR.

A partir da elaboração desta tese, fui compreendendo novos ângulos e percebendo novas necessidades na formação do CDHEP. Na discussão da equipe de trabalho, tive a possibilidade de partilhar esta compreensão e, coletivamente, parte destas mudanças foram se incorporando no conteúdo dos cursos, ao longo dos últimos anos.

Este terceiro capítulo, como os outros dois, é um retrato tirado, em um determinado momento histórico, da reflexão sobre nossa prática. É um exercício de análise e de distanciamento, a partir da contribuição das pessoas que participam de nossos cursos. Ciente de que a JR é um campo em construção e que a formação ainda está em fase de adaptação às necessidades, descobertas a cada pouco, a presente análise tem curta vida útil. Mas acho que vale a pena, neste momento, olhar mais de perto um dos fundamentos da JR que está sendo colocado em São Paulo.

Apresento brevemente o CDHEP, seus contatos com a JR – que tem tudo a ver com minha trajetória profissional –, seus interlocutores, o conteúdo da formação e, até onde foi possível, a apreciação desta formação pelos participantes.