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A reflexão como condição

3.6 Sobre a cidadania

3.6.2 A reflexão como condição

O círculo restaurativo é um espaço para a reflexão e autorreflexão sobre suas ações e as consequências destas, e para a avaliação e julgamento das possibilidades de restauração. Já vimos que não se trata de aplicar fórmulas e categorias preestabelecidas, mas de confrontar-se conscientemente com o fato em questão e encontrar uma saída adequada, provavelmente única. A JR exige do sujeito-cidadão pensar suas respostas a cada ação e situação. Não é possível delegar estas a outrem; cada envolvido é convidado a pensar sobre o fato e as relações em questão. Já vimos que a exigência do pensar e a

competência reflexiva para assumir a amplitude de seus feitos podem abrir o processo de restauração. Isso vale para a vítima e para o agressor.

Arendt (2004) lembra que pensar , o diálogo silencioso entre “mim e mim mesma”, enquanto tal, beneficia bem pouco a sociedade. O pensar, no entanto, é capaz de dissolver as regras de conduta aceitas e é exigido, especialmente, nos momentos em que todo mundo está deslumbrado, sem pensar, por aquilo que todos os demais fazem e acreditam. A linha divisória entre aqueles que desejam pensar – e portanto têm de julgar por si mesmos – e aqueles que não o desejam atinge todas as diferenças sociais, culturais e educacionais.

Pensar e julgar por si configuram condições do sujeito-cidadão. Entretanto, o que acontece quando as pessoas não querem ou não podem pensar sobre suas ações?

Um estudo sobre o comportamento obediente de militares durante a ditadura no Chile indaga sobre as razões de estes transgredirem os limiares da ética e realizarem atos criminosos. Como é possível um ser humano qualquer, educado em valores cristãos, predominantes nos setores militares, quando recebe ordem de uma autoridade superior, realizar atrocidades? É necessário, em primeiro lugar, desconstruir o argumento da obediência, pois não é possível igualar consentimento à obediência. “Um adulto consente onde uma criança obedece; se dizemos que um adulto obedece, ele de fato apóia a organização, a autoridade ou a lei que reivindica „obediência‟.” (ARENDT, 2004, p. 109).

Segundo Pozzoli (2006), a crueldade dos membros do exército em suas expressões mais sofisticadas tem raízes individuais como também sociais: o indivíduo atua não de forma isolada, mas, sim, através de uma instituição. A autora levanta muitas questões interessantes sobre a violência institucional, mas, neste momento, centro-me no sujeito obediente, capaz de negar a cidadania a si e a outros. Ao sujeito obediente falta uma verdadeira relação social, existindo uma impossibilidade de comunicação que inibe a convivência e o sentido de comunidade. Cada ato de atrocidade cometido é seguido pela negação ou pela sua justificação. Há uma forte sensação de ser portador de uma verdade definitiva que se impõe por si mesma. Os que não aderem à mesma são vistos como um defeito no mundo, o que justifica sua eliminação física e/ou degradação psíquica. O sujeito obediente, com consciência autoritária, se caracteriza por um espírito de subordinação e adoração ao poder, uma fidelidade frente a superiores com receio diante de responsabilidades próprias, inclinação para preconceitos, nacionalismo e agressividade.

Igual a Botcharova (2001), no caso da ex-Iugoslávia, Pozzoli afirma que, para continuar maltratando sua vítima, é necessário desumanizá-la, classificá-la como pertencente a outra categoria, castigá-la e infligir-lhe culpabilidade, fazendo aparecer a categoria de subgente, subcidadãos. Se chegar à consciência de que a vítima eventualmente é um igual, dificilmente é possível continuar os maus-tratos.

Uma fonte que autoriza este comportamento parece ser o preconceito que usurpa o lugar do próprio juízo e se impõe como razão absoluta. Muitas vezes, o caráter rígido do preconceito faz predominar a irracionalidade, podendo desencadear violência.

Como fazer desaparecer ou diminuir estes preconceitos? Parece ser necessário voltar às questões que originaram o fato, refletir sobre as mesmas e fazer um novo julgamento. O desaparecimento dos preconceitos significa perder as respostas em que nos apoiávamos de ordinário, quase que automaticamente, sem perceber que, originariamente, elas constituíam respostas a questões (ARENDT, 1997). Desconstruir preconceitos parece pedir um afastamento crítico das respostas ordinárias e exige reflexão.

O sujeito que desumaniza está afetado em diversas capacidades do ser humano e uma delas é o pensar criticamente, além de comunicar-se com veracidade, pois perdeu a capacidade de tolerância e flexibilidade. Também sua sensibilidade frente ao sofrimento alheio e sua capacidade de sentir esperança foram afetadas. A libertação de um preconceito generalizado em um determinado grupo exige um julgamento crítico e condições cognitivas que permitam à pessoa desafiar o estabelecido e adotar um marco alternativo. Estas condições abrem a possibilidade de diferentes tipos de respostas, o que não é impossível no caso do sujeito que desumaniza. O preconceito inibe as faculdades críticas do Eu. O pensamento, dominado apenas pela afetividade, abre espaço para a irracionalidade invadir o campo da vida psíquica. Além do mais, a vinculação dogmática com uma autoridade implica uma carência do exercício enriquecedor da introspecção (POZZOLI, 2006).

No primeiro capítulo, retratei como, durante os procedimentos da JR, a competência reflexiva permite a autocompreensão e alarga o entendimento da alteridade. A competência reflexiva pode ajudar na relativização de seu próprio entendimento e se opõe à absolutização da própria percepção. Isso permite aproximar-se da complexidade dos significados dos atos humanos, dos próprios e dos outros. Ademais, o pensar, o refletir pode abrir a possibilidade de emitir um julgamento próprio que faz parte do sujeito capaz. E ainda possibilita a cada ser humano adulto assumir

conscientemente seu lugar singular no mundo. O contrário, não refletir e não julgar nenhuma situação são impedimentos para posicionar-se na coletividade e, sem posicionamentos, estamos mortos para a vida do mundo.

Se a capacidade de distinguir o certo do errado tiver alguma coisa a ver com a capacidade de pensar, então devemos ser capazes de “exigir” o seu exercício de toda pessoa sã, por mais erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida que se mostre. (ARENDT, 2004, p. 231).

Aqui, creio tocar em uma questão particularmente importante para a população das periferias geográficas e sociais que, ao longo da história, dificilmente foi convidada a participar efetivamente do espaço público. Assim como o corpo incircunscrito, que pede complementação e intervenção – o que precisa ser levado em conta nos procedimentos restaurativos –, a incapacidade ou a recusa de pensar é um tema a ser pensado, pois a JR supõe a participação efetiva e emancipada de todos. Muitas vezes, a conformidade e obediência em relação à autoridade são vistas como uma obrigação que faz o indivíduo submeter-se, sujeitar-se a uma ordem, explícita ou não, procedente de uma autoridade, legítima ou não. Esta autoridade pode estar presente fisicamente ou internalizada. Numa sociedade que incorporou este tipo de submissão, que opera no eixo assimétrico de domínio versus subordinação, a cooperação entre cidadãos com paridade de status não é possível quando existe subgente, subcidadãos (temática esta que pretendo abordar a seguir).

Antes, contudo, quero abordar um tema bastante comum nos países pioneiros da JR e que, ao que tudo indica, ainda é estranha no Brasil63: será que a vergonha afeta a restauração da cidadania? E se for, em que sentido?