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Em comunidades tradicionais

2.4 O desenvolvimento da Justiça Restaurativa

2.4.3 Em comunidades tradicionais

Existem muitos textos que documentam que as tradições espirituais – seja o budismo, cristianismo, confucionismo, hinduísmo, islamismo ou judaísmo – promovem valores que são cruciais para as práticas restaurativas, como, por exemplo, o respeito mútuo, a compensação, o pedido de desculpas e o perdão. Não parecem existir dúvidas de que os valores morais que fundamentam estas práticas são enraizados em sabedorias antigas. Ainda que a apropriação de aspectos de antigas culturas no mundo moderno seja problemática, podemos aprender algo de sua forma de tratar questões de justiça e injustiça, em muitos casos, orientada através de encontros, envolvimentos comunitários e o conceito de reparação. (WALGRAVE, 2008).

As práticas das comunidades indígenas, em geral, são fundamentadas na noção de que cada membro é importante para a sobrevivência do grupo; sendo assim, as divergências têm que ser solucionadas por uma via que possa reforçar os laços do grupo. Para esta fundamentação, a punição, a exclusão e a humilhação não satisfazem à necessidade do grupo de se manter unido. Um comportamento inconveniente é um sinal da necessidade de educar e curar, sendo que os processos de cura e integração recorrem frequentemente a rituais e objetos, sagrados ou não, que refletem sua origem tradicional (WALGRAVE, 2008; LIEBMANN, 2007).

13 Conta-se que Zaqueu era chefe dos publicanos, cobrador de impostos e rico. Para ver Jesus, ele subiu a um

sicômoro. Jesus o chamou, dizendo que queria ficar na casa dele, sem levar em consideração o que os outros diziam dele e o que ele tinha feito. Este acolhimento foi suficiente para Zaqueu tomar consciência de seus atos e despertar nele a vontade de restituir a quem havia roubado (Lucas 19,1-10).

Embora não seja possível confirmar, com absoluta certeza, quem detém a originalidade das práticas restaurativas, através das diversas bibliografias, é possível identificar sua aplicação em diversas comunidades nativas, tanto da Nova Zelândia quanto da América do Norte, da África do Sul ou Ruanda. Nas referências bibliográficas que consultei, não foi possível encontrar nenhum texto que refletisse sobre as semelhanças e diferenças ou até tensões entre os diversos modelos de JR de comunidades indígenas ou das primeiras comunidades da América do Norte.

Segundo o professor de criminologia australiana Cunneen (2004), existem vozes críticas dizendo haver certa pretensão de defensores da JR que avaliam esta prática como sendo um bem em si. Partem de um pressuposto acrítico de que o Estado é um representante legítimo para todos os habitantes do território nacional. Nestes defensores há pouca noção sobre o fato de que um programa de JR proposto e iniciado pelo próprio Estado pode legitimamente ser visto com desconfiança por grupos que foram, durante muito tempo, colonizados, isto é, desclassificados e violados, em seu direito de existir, por esse mesmo Estado. A atual situação das comunidades nativas deve ser interpretada como um resultado de intervenções históricas e políticas da sociedade dominante ocidental. Assim sendo, a imposição de práticas restaurativas pelo Estado pode ser entendida como uma violação e uma forma de controle imposto a comunidades que lutam para manter sua própria forma de governança e suas iniciativas para fazer acontecer a justiça. Há estudos que mostram, por exemplo, que jovens de grupos aborígenes da Austrália, que foram abordados pela polícia, eram menos favoráveis à utilização de práticas restaurativas do que os que não pertencem a essas comunidades. O exemplo da Austrália sugere que o entrincheiramento de um tratamento desigual e de racismo no sistema de justiça criminal poderia ser exacerbado através de programas de justiça restaurativa (CUNNEEN, 2004).

Uma contribuição interessante a este respeito vem do Maori Matt Hakiaha (2004) da Nova Zelândia. Este autor percorre a relação histórica entre as comunidades tradicionais de seu país com a coroa inglesa, apontando como os diversos tratados do século 19 – que, teoricamente, deveriam garantir a autonomia dos primeiros – nunca foram colocados em prática. A nova constituição de 1975 decidiu incorporar algumas afirmações de autonomia Maori e, na legislação juvenil de 1989, foram adjuntados também alguns aspectos da sua filosofia. De qualquer

maneira, ainda que o governo continue desenvolvendo políticas que impactem os Maori, de forma positiva ou adversa, estes não foram consultados sobre este assunto.

Hakiaha prenuncia que enquanto não for honrado o tratado de Waitangi (1840), que garante a proteção dos costumes, valores culturais e do direito de possuir e controlar o que lhes pertence, os Maori continuarão marginalizados, lesados e, provavelmente, continuarão alienando-se de sua terra e seus costumes. O resultado é a continuidade da sobrerrepresentação de Maori nas prisões do país. Somente uma parceria entre iguais, entre os valores da comunidade nativa e do sistema ocidental, pode garantir uma justiça justa, o que se refere especialmente a três pontos: consultas, recursos e prazos adequados. A justiça da comunidade tradicional, em vez de se orientar pela cabeça (head

thinking) é orientada pelo coração (heart feeling). Também é um processo que envolve

membros da comunidade genealógica que podem morar a certa distância, o que aumenta as necessidades para recursos e prazos maiores. Esta visão inclusiva é importante, pois, para os Maori, os indivíduos não são seres isolados, mas pertencentes à whanau (família extensa), à hapu (sub-tribo) e à iwi (tribo). Apesar de suas limitações, os resultados deste tipo de processo podem revelar-se eficazes e importantes para todos os interessados (HAKIAHA, 2004, p. 360).

A única chance para diminuir a população Maori encarcerada é considerar seus valores culturais, pois, apesar da influência negativa da colonização, esta população tem conseguido manter uma dignidade, graças a seu sistema próprio. Assim sendo, a manutenção de laços fortes entre a família extensa é a garantia da saúde social e pessoal. Portanto, o Estado central e as comunidades Maori necessitam continuar o diálogo em vistas da melhoria do sistema criminal que está falho com os Maori. O Estado precisa avançar no reconhecimento e na validação dos processos próprios da cultura Maori como imperativos culturais e dar-lhes o controle sobre suas decisões e ainda provê-los com recursos adequados.

Como contraponto a esta voz mais crítica, Liebmann (2007) informa que, no Canadá, as assim chamadas primeiras nações ou comunidades indígenas desenvolveram um sistema bastante eficaz para encarregar-se da violência doméstica, a partir de uma abordagem integral. Norteados pelo entendimento de que essa violência costuma ser a ponta do iceberg, foram incluídos no processo de JR que trata dessa violência: tratamento de álcool, aconselhamento de casais, oficinas de atendimento familiar que incluem os filhos, muitas vezes, testemunhas da violência entre os adultos.

Também para abusos sexuais, estas comunidades criaram um método através da

Community Holistic Circle Healing, a cura em círculo, holística e comunitária. Inclui

diversos passos, tais como o contrato do tratamento, que é a sentença e uma cerimônia de purificação que comumente dura ao menos dois anos. Antes de um caso ir para a justiça, dois representantes da comunidade conversam com a pessoa que abusou e oferecem ajuda. Em contrapartida, a pessoa tem que fazer um esforço para aceitar sua responsabilidade e o processo da cura. Se recusar, o processo corre na justiça comum. Se aceitar, ela é acompanhada para o distrito policial para fazer sua confissão de culpa. São organizados círculos de cura com a participação de todos os afetados pelo crime: vítima, ofensor e familiares de ambos. Quando o caso vai para a corte, toda a comunidade está reunida, havendo momentos de orações e celebrações. Após ouvir os presentes, que também expressam o que esperam do ofensor e o que precisa ser feito para restaurar a situação, o juiz dá a sentença baseada nas expectativas da comunidade e a sessão é encerrada com oração. Ao longo do ano 1995-1996, de um total de 48 casos de abuso sexual, 43 aceitaram e completaram o processo da Community Holistic Circle

Healing. Algumas vezes, o encontro é encerrado com uma refeição comunitária

(LIEBMANN, 2007).

Nas bibliografias sobre JR, é bastante comum o reconhecimento de que sua origem está nos povos tradicionais, com muitas referências ao povo Maori. Mas é pouco comum ouvir alguém do grupo fundador fazer a crítica de que a justiça ocidental, que se inspirou nessa tradição, ainda não conseguiu ser justa para com essa etnia que originou o método, e tampouco com outras comunidades tradicionais. Nesta denúncia pode ser percebida a necessidade de alargarmos nossa visão e entendimento sobre a justiça justa, que pede a inclusão de toda humanidade como comunidade, como aldeia global, para reconhecer o outro como igual a mim, ainda que este seja um dos mais longínquos de mim, geográfica ou culturalmente. Pede também que repensemos o justo, quando se trata da apropriação de patrimônios culturais alheios. Um dos fundamentos da JR é que os principais envolvidos têm as melhores condições de superar os impasses. Parece que a comunidade Maori ainda tem que ser ouvida sobre a apropriação de seu modo histórico e cultural de fazer justiça, por outros espaços culturais que estão em busca da restauração do justo para que a justiça possa ser restaurada.