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3.1 Sobre a justiça justa

3.1.4 O justo e a punição

Entendo como punição fazer sofrer alguém intencionalmente, impor algo desvantajoso, oneroso. A punição, em muitos casos, é uma resposta social e política a uma conduta considerada não desejada, ofensiva ou criminosa. O conteúdo da punição é sempre uma escolha indesejada, caso o sujeito possa optar livremente. É uma imposição que faz do punido, naquele momento, um sujeitado a uma vontade alheia. Por causa desta imposição, desta submissão, é difícil aceitar a punição como um meio capaz de reforçar a responsabilidade de sujeito e sua cidadania. Creio que a JR é um convite para buscar alternativas à punição, na busca de instaurar o justo.

Como já vimos no primeiro capítulo, também nas sociedades democráticas, a punição pode ser vista como um direito da vítima, representada pelo Estado, de impor

um castigo sobre quem a prejudicou. Pune-se o ato criminoso na proporção do crime. Eis a lei da justiça que retribui em forma de pena e punição na devida proporção: a cada um, o que lhe deve. É um caminho de reconhecer publicamente a vítima como ser ofendido e humilhado, excluído do regime da reciprocidade por aquilo que o crime lhe fez. Ao mesmo tempo, a vítima pode seguir um percurso mais íntimo, ligado à autoestima, restabelecendo algo como honra, reputação, autorrespeito. E ainda, contribui para o trabalho de luto, de elaboração dos acontecimentos dolorosos, com o qual a alma ferida se reconcilia consigo mesma. Ademais, a punição deixa claro quem é o agressor (RICOEUR, 2008).

Já vimos que a JR opera com uma mudança na consideração da ofensa e do crime. Se, na noção da justiça retributiva, o crime é considerado uma ação contra o Estado, que se responsabiliza pela punição, na JR é percebido como um prejuízo nas relações sociais. A JR tem interesse na infração penal e busca por uma resposta, pois também se interessa pelos elos entre as pessoas envolvidas, pela comunidade, pelos danos causados, pelas emoções e sentimentos desencadeados e ainda pelos pensamentos e compreensões subjacentes. Em muitos casos, a vítima, em primeira instância, não espera pela punição do ofensor, e quase sempre nem a deseja. Quer o reconhecimento de ter sido vítima e a restauração material e/ou imaterial. Creio que este reconhecimento e a restauração são as maiores contribuições da JR, uma vez que, no sistema tradicional, a vítima não tem um lugar de destaque.

No entanto, a questão da punição, como já mencionado anteriormente, continua sendo uma discussão entre os defensores da JR: é necessário punir? Quanta punição é adequada aos procedimentos restaurativos?

Devido ao envolvimento de muitas pessoas e a complexidade da situação, parece impossível estabelecer um julgamento definitivo e aplicar uma punição a um comportamento desviante. Ao contrário, parece apenas ser possível aplicar ou atribuir normas e valores através de e após longas discussões (BAUER, 1997).

A prática da JR mostra que as discussões prolongadas, num primeiro momento, são sobre a construção coletiva de uma narrativa aceita pelos envolvidos; num segundo momento, são sobre uma pena ou solução restaurativa. Parece claro e de consenso que os procedimentos da JR devem ajudar o ofensor a assumir sua responsabilidade. Através da abordagem psicanalítica relatada no primeiro capítulo, fica evidenciado que nenhuma intervenção ou punição faz sentido se o ofensor não conseguir a introspecção, no sentido psicológico, da capacidade de culpa. Na ausência desta, qualquer intervenção

contra o agressor, mais do que evitar a reprodução da violência, favorece a desintegração psíquica e/ou social.

Mas será que precisamos da ameaça da punição para alcançar estes benefícios? Quais podem ser as alternativas?

Barton (2003) pondera ser um erro pensar que elementos punitivos debilitam o potencial restaurativo, uma vez que, nas sociedades ocidentais, a punição para ofensores é uma necessidade socialmente construída.

Já apontei que o aparecimento da JR responde a uma crise social que chama por mudanças na forma de lidar com o desviante. Embora a punição seja uma tradição cultural amplamente divulgada, socialmente aceita, neste momento histórico, ela não produz o fruto de pacificação social desejado. A punição é incapaz de satisfazer a expectativa sociocultural da convivência pacífica e, portanto, existe uma crise que convida para uma avaliação de nossas respostas.

Se a punição é uma necessidade socialmente construída, parece-me possível pensar que ela pode também ser desconstruída socialmente. Meu entendimento é que a confrontação com os próprios atos é uma possibilidade saudável na tentativa de responsabilização e autorresponsabilização dos envolvidos em ofensas e crimes. Imagino que a confrontação como possibilidade de reafirmar as regras da sociedade, a persuasão do ofensor para assumir seu lugar social de convívio e colaboração entre humanos, pouco a pouco, possa substituir a punição.

Barton (2003), assim como Taubner (2008), afirma que a confrontação com o próprio ato não tem o efeito da aprendizagem quando se tratar de psico ou sociopatas. Estou ciente de que também existem agressores que, apesar de sua boa capacidade racional, não conseguem respeitar os direitos de outros e as leis da sociedade civil. Talvez estes possam e devam ser tratados com a alternativa da punição, para a sociedade deixar claro que não concorda com sua atuação e lhe impõe limites, sem esperar, contudo, alguma mudança favorável em seu comportamento futuro.

Quero dialogar com a possibilidade de um cenário político e público que tem a punição como alternativa e a responsabilização como opção primeira. Embora mais à frente eu venha a tratar da temática do perdão e de sua importância no mundo público, entro brevemente nesta temática para introduzir uma alternativa ao punir. Arendt (2008) considera que o perdão é uma alternativa à punição; de forma alguma é seu oposto. Perdão e punição se opõem à vingança, ação sem liberdade e criatividade, que é uma

reação a uma transgressão original. Perdão e punição tem em comum o fato de tentar pôr um fim a algo que, sem interferência, pode continuar infinitamente.

Se perdão e punição são alternativas para colocar um fim a uma ação indesejada, creio que são atributos do sujeito capaz, a quem se atribui a capacidade de ser agente de suas ações, pressuposto do conceito ético-jurídico de imputação, essencial à atribuição de direitos e deveres (RICOEUR, 2008).

Talvez o sujeito capaz permita que se coloque ao alcance de sua escolha ética tanto o perdão quanto a punição e ainda a alternativa da responsabilização. Neste sentido, assumir a responsabilidade pelos atos humanos e oferecer a outros esta possibilidade é um imperativo de quem é ou quer ser justo. É uma pena desejada no sentido de despertar o desejo de fazer parte da humanidade, ser tratado como um igual e não impor uma punição que o sujeito não deseje livremente. Creio que uma tarefa da educação é ajudar os humanos a assumir seus atos.

Os teóricos de JR, McCold e Wachtel (2003), desenvolveram a Janela de

Disciplina Social, que combina controle, limitando ou influenciando os outros, e apoio,

que cuida, encoraja ou assiste. Classificam as combinações em alto e baixo. A delimitação clara de limites e a imposição de padrões de comportamento caracterizam um alto grau de controle social. Padrões vagos ou fracos de comportamento e regulamentos permissivos ou inexistentes caracterizam um baixo controle social. A assistência ativa e preocupação pelo bem-estar coletivo caracterizam o alto apoio social. A falta de encorajamento e uma provisão mínima para necessidades físicas e emocionais caracterizam o baixo apoio social. Combinando um nível alto ou baixo de controle com um nível alto ou baixo de apoio, a Janela de Disciplina Social define quatro abordagens à regulamentação do comportamento, resumidas em quatro palavras.

Figura 1 – Janela de Disciplina Social, de McCold e Wachtel

A abordagem punitiva ou retributiva, com alto controle e baixo apoio, tende a estigmatizar as pessoas, rotulando-as de forma negativa. As respostas são reações ao transgressor, punindo e reprovando, mas permitindo pouco envolvimento ponderado e ativo do mesmo.

A abordagem permissiva ou reabilitadora, com baixo controle e alto apoio, tende a proteger as pessoas das consequências de suas ações erradas. Faz tudo pelo transgressor, pedindo pouco em troca e criando desculpas para as transgressões.

A abordagem negligente é de baixo controle e baixo apoio, caracterizada pela indiferença e passividade e nada faz em resposta à transgressão.

A abordagem restaurativa, com alto controle e alto apoio, confronta e desaprova as transgressões e afirma o valor intrínseco do transgressor que é encorajado pela comunidade a envolver-se conscientemente com a mesma, participando diretamente do processo de reparação e prestação de contas.

Esta janela expõe a resposta a uma transgressão, a punição na ótica da JR, como um processo de assunção de responsabilidade para com o próximo e a comunidade, o que tem a ver com a ética do reconhecimento e da responsabilidade, como veremos a seguir.

Creio que, se substituímos a palavra punição por responsabilização e restauração, é mais fácil alcançar a sensação de reconhecimento também do ofensor, ou a quem foi imputada uma culpa. Através do reconhecimento, que pode levar à

responsabilização, mais do que da punição, é possível aproximar-se do ideal de uma sociedade que fortalece os laços de solidariedade. É o que pretendo abordar a seguir. Creio que uma tarefa da educação seja ajudar os humanos a assumir seus atos.