• Nenhum resultado encontrado

2.6 Justiça Restaurativa em nível macro: a reconciliação

2.6.1 Ruanda

Os acontecimentos anteriores ao genocídio no Ruanda31 são extremamente complexos e não é possível retratá-los detalhadamente aqui. Em 2009, foram lembrados os 15 anos do genocídio, um dos maiores massacres da história da África, com a morte de aproximadamente 800 mil a um milhão de pessoas em apenas cem dias e o estupro de centenas de milhares de mulheres. A maioria das vítimas pertencia à etnia tutsi e a maioria dos acusados são hutus.

Para se situar no caso, em 1962, o Ruanda alcançou sua independência da Bélgica, já com lutas fortemente marcadas por acusações entre as etnias tutsi e hutu. Em 1990, houve uma primeira guerra civil com três anos de duração. O estopim da nova guerra civil foi a morte do presidente da maioria étnica hutu, Juvenal Haby Arinama, em abril de 1994, cujo avião foi abatido ao regressar da Tanzânia, após negociações de paz com rebeldes tutsis. Este ataque deu início a uma onda de violência que, poucas horas depois, se espalhou pela capital e por todo o país.

A guarda presidencial iniciou imediatamente uma campanha de vingança. Líderes da oposição foram mortos e tutsis e hutus moderados começaram a ser assassinados. Entre os primeiros organizadores do massacre estavam militares, políticos e homens de negócios. Encorajada pela guarda presidencial, formou-se uma milícia não oficial. Soldados e policiais encorajaram cidadãos comuns a participar, sendo que, em

31 Recorro principalmente ao trabalho de doutoramento em sociologia de Sandrine Schilling, na

Universidade de Zurique. Gegen das Verbrechen. Justiz, Wahrheitsfindung und Versöhunung nach dem Genozid in Rwanda durch Mechanismen transitional Justiz: Gacaca Gerichte, 2005.

alguns casos, os militares obrigaram civis hutus a assassinar seus vizinhos tutsis. Há indícios de que os autores dos crimes tinham a intenção de apagar a separação entre culpados e inocentes, orientando ataques coletivos para impossibilitar a responsabilização individual.

No ano de 2000, nas prisões do Ruanda havia cerca de 120 mil acusados de genocídio. Entre dezembro de 1996 e dezembro de 2006, os tribunais comuns conseguiram trabalhar com os processos de cerca de 10 mil suspeitos. Neste ritmo, seriam necessários mais de 120 anos para julgar todos os prisioneiros. Um meio mais rápido de atuação da justiça era imprescindível. Para acelerar as decisões, entre 2004 e 2005, cerca de 50 mil prisioneiros foram libertados (HUMAN RIGHTS WATCH, 2004).

Em 2001, entrou em vigor a legislação32 sobre os tribunais Gacaca33, que se referem a um método ruandês de resolução de conflitos, para tratar dos crimes cometidos durante a guerra. Tradicionalmente, o tribunal Gacaca trata de litígios interfamiliares ou intercomunitários. Quando normas sociais eram quebradas ou havia litígios – disputa por terra, danos de propriedade, litígio conjugal, direitos de herança, etc. – as partes lesadas eram convocadas para uma reunião. As sessões eram informais, não permanentes e presididas pelo conselho de anciãos. Sua principal meta era restaurar a ordem social, após a sanção ou violação dos valores partilhados, através da reinserção do(s) ofensor(es) na comunidade. Os infratores, cientes da transgressão das regras comunitárias e do desconforto que esta causara, com freqüência apareciam voluntariamente ante o conselho dos anciãos, o que era entendido como uma demonstração de seu desejo de reintegração na comunidade. O conselho de anciãos – os quais atuavam como árbitros judiciais – determinava as sanções que melhor servissem aos interesses da comunidade. As decisões se formavam consensualmente e representavam um compromisso entre interesses coletivos e individuais dos ofendidos.

Durante o período colonial, introduziu-se o sistema judicial ocidental, mas Gacaca manteve-se como parte integrante da prática habitual. Com a independência,

32 A Lei Orgânica nº 40/2000, de 26 de janeiro de 2001, instituiu as jurisdições de Gacaca para crimes

cometidos entre 1 de outubro de 1990 e 31 de dezembro de 1994. Entrou em vigor em 15 de março de 2001.

33 Entre 1963 e 1994, haviam sido publicados 10 livros sobre o sistema jurídico de Ruanda. Desde 1995,

este número aumentou para 94, predominantemente em inglês e também francês, o que mostra o interesse pela forma de tratar a questão da guerra.

Gacaca tornou-se mais institucionalizada, sendo que as autoridades locais, por vezes, assumiam o papel do conselho de anciãos frente às sessões deste tribunal comunitário.

Uma diferença em relação ao período anterior é que os Tribunais Gacaca pós- genocídio não lidam com conflitos locais, mas com um extermínio organizado e implementado, também, por autoridades do Estado. A nova jurisdição foi criada, executada e coordenada pelo Estado, através de uma comissão instituída por decreto presidencial, que preparou, organizou e supervisionou a eleição dos juízes populares Gacaca e das assembleias. A supervisão geral dos tribunais Gacaca está sob o controle de um departamento dentro do Supremo Tribunal e do Ministério da Justiça. Portanto, a autoridade estatal – não o consenso local – é o modus operandi da jurisdição Gacaca. A tradição oral foi substituída por registros escritos. Há dias prefixados, de forma que a comunidade tem que se ajustar ao calendário estabelecido. A liberdade e responsabilidade dos anciãos para responder ao contexto local e suas necessidades foram substituídas pelo fundamento no direito, com suas regras processuais de legislação nacional (SCHILLING, 2005). Assim, uma possível fragilidade deste procedimento pode estar em seu suposto embasamento em um contexto comunitário, cooperativo, que confere e cobra a vivência de valores morais comunitários que não teriam sobrevivido ao genocídio. (AMNESTY INTERNATIONAL, 2002).

Outra fragilidade tem a ver com o fato de que, em muitos casos, o governo impôs a participação da população, assim como o enquadre mínimo legal, tentando garantir a punição e superando a sensação de impunidade. A reconciliação não podia ser presumida como um fato dado ou necessariamente desejado por todos, mas precisava ser gerada no coração dos ruandeses como uma vontade de construir um futuro em comum. O governo estava em uma posição delicada e qualquer decisão era arriscada. Mas o processo Gacaca parece que favoreceu a justiça para as vítimas e a comunidade; ao perpetrador, possibilitou sua participação igualitária, o que na justiça institucional é incomum.

2.6.1.1 O funcionamento do tribunal Gacaca

Em julho de 1994, no Ruanda havia 19 operadores do direito. Com a operação Gacaca, foram criadas, em todo o país, 11 mil instâncias judiciais. A população escolhia

homens ou mulheres34, não importando sua origem ou religião, reconhecidos por sua moralidade, honestidade, integridade e amor à verdade, para formar os comitês locais de cinco membros. Estes operadores leigos receberam uma formação cuja duração variou entre algumas semanas e meses. Mais tarde, também se criou a categoria dos defensores judiciais que recebem uma capacitação de seis meses para defender os acusados de primeira instância. Os encontros do tribunal Gacaca são públicos e na língua local. O projeto Gacaca fez do Ruanda um país no qual aproximadamente 1% da população35 adulta tinha o posto de juiz popular (AMNESTY INTERNATIONAL, 2002).

O objetivo de Gacaca era e é reintegrar o perpetrador de crimes na sociedade, recorrendo a elementos de JR. Um de seus elementos inovadores, em relação ao sistema europeu de direito, é o procedimento da confissão. Presos confessam e pedem perdão e com isso podem receber reduções drásticas nas penalidades. As reduções são maiores para quem confessa antes de iniciar o processo, seja na prisão ou no início do processo, quando explicitamente é perguntado se quer confessar. As reduções são menores para quem confessar somente durante o procedimento. Para aqueles que não confessam, e são considerados culpados, as sanções ficam inalteradas. Além disso, até a metade da pena de todos os condenados pode ser transmutada para serviços à comunidade, cujas modalidades foram determinadas por leis complementares. Para beneficiar-se do serviço à comunidade, o acusado tem que pedir perdão publicamente.

Finalmente, a lei Gacaca pode simplificar muito o processo de reparação dos sobreviventes, pois são listados detalhadamente seus danos sofridos: destruição de propriedade, dano físico ou perda de familiares. Quando o procedimento for completo, os reclamantes recebem uma declaração de suas perdas, que pode ser usada, teoricamente, para receber indenizações a partir de um fundo público criado para essa finalidade.

A lei estimulou a participação popular, facilitando assim sua aceitação. O processo de confissões, com a exigência de confissão completa, incluindo os nomes de

34 Segundo o cientista político, Peter Uvin (2003, p. 120) sem um esforço especial, a participação das

mulheres no processo de Gacaca poderia ser mínima. Na eleição dos juízes, em outubro de 2001, o resultado variara de um terço de todos os juízes em nível celular sendo mulheres, para apenas um quinto em nível provincial. Souza (2009) indica que esta situação está dentro de certa normalidade, quando comparado, por exemplo, à situação de Portugal, onde dos 1.970 juízes de primeira instância, 1.040 são mulheres, ou seja, quase 53%. Nos tribunais superiores, existem apenas 66 juízas desembargadoras face aos 231 do sexo masculino. Cury (2009) informa que na segunda instância do tribunal de justiça de São Paulo, de 360 desembargadores, apenas 13, ou 3,6%, são mulheres.

35 Como esta função era exigente, consumindo muito tempo, foi difícil ser conciliada com outra

atividade profissional. Em certos casos, houve ameaças por agentes do governo, caso os indicados não aceitassem sua função.

todas as outras pessoas envolvidas no crime, desencadeou uma avalanche de confissões, implicando, através destas informações, mais pessoas. Este movimento despertou importantes debates comunitários: sobre o conteúdo das explicações e razões apresentadas, o aparecimento de outros implicados, a contextualização dos eventos.

Os crimes foram classificados em quatro categorias, cada uma com seu tipo de penalidade correspondente. O tribunal Gacaca tinha jurisdição sobre três categorias: crime contra a propriedade; atos criminosos ou cumplicidade em ataques graves, sem a intenção de causar a morte e causando a morte; autoria e coautoria em homicídios intencionais ou ataques graves que causaram mortes e ataques com intenção de matar, causando ferimentos ou outros tipos de graves violências, mas sem realmente causar morte. Eram excluídos os planejadores, organizadores, instigadores, os supervisores do genocídio (UVIN, 2003; SCHILLING, 2005).

******

O caminho que Ruanda percorreu ou está percorrendo é um caminho próprio, inédito até hoje na transformação desta intervenção brutal em todo território nacional, provocado através da afirmação e exploração política de diferenças de características etnicossociais construídas socialmente. Este caminho confirma as palavras de Desmond Tutu, que cada país tem que encontrar seu caminho, e parece que este foi o caminho próprio e único de Ruanda.

Como é possível continuar como país? Parece que o sentimento de unidade, de pertencimento solidário a um mesmo país somente pode ser almejado como um fim e não como condição para o processo de reconciliação nesse país. Ao mesmo tempo, parece-me que este caso evidencia a necessidade de afirmar o que existe de comum humano no outro, como possibilidade de nos religar, reconciliar com o outro humano, embora inimigo, embora socialmente se afirmasse fortemente, ao longo das últimas décadas, a diferença entre estes dois grupos humanos.

O procedimento Gacaca, certamente, produz mais verdade do que o sistema formal de justiça é capaz de conseguir. Favorece encontrar novas versões de fatos, faz aparecer novas narrativas que podem dar sentido a outros fatos. E ainda pode fazer aparecer provas que permitam encerrar incertezas angustiantes. Assim, contribui para ir colocando algumas peças no grande quebra-cabeça de fatos obscuros, que ajudam a montar e enriquecer as versões da verdade.

Parece evidenciar também que um verdadeiro arrependimento por parte dos perpetradores, ainda que isso seja difícil de acontecer, pode contribuir com a reconciliação no sentido de mover-se de um passado dividido para um futuro partilhado.

Através das verdades produzidas ao longo dos procedimentos, os tribunais tentaram individualizar a culpa e estabelecer a responsabilidade penal individual. Isto pode ser crucial em dois sentidos: a individualização da culpa e consequente responsabilização individual pode contrapor-se à impressão generalizada de total desresponsabilização dos criminosos, que evoca nas vítimas uma total impotência. Além disso, erradica a percepção perigosa de que a comunidade como um todo seja responsável pela violência e atrocidades (os hutus, os tutsi) e, portanto, ninguém pode ser responsabilizado. Essa ideia de culpa coletiva pode ser fonte de afirmação de estereótipos negativos, o que pode, por sua vez, provocar mais violência.

Embora esta responsabilização individual tenha certamente seus problemas num país no qual a democracia europeia foi importada e cujo fundamento relacional é a afirmação do coletivo e do comum mais do que o individual, a individualização da culpa pode, neste caso, fazer sentido nos termos de Arendt (2004), que delineia uma distinção entre responsabilidade coletiva, que é política, e a culpa, que é moral e legal. Quando somos todos culpados, ninguém o é, pois, a culpa é estritamente pessoal e refere-se a um ato pelo qual a pessoa apenas pode ser culpada caso tenha mérito em sua efetivação. A culpa não trata de intenções ou potencialidades. Portanto, culpado somente pode ser aquele que efetivamente participou na ação. Culpa somente pode ser aplicada ao indivíduo e não à coletividade.

O governo de Ruanda tomou a iniciativa de responder ao genocídio com a iniciativa ruandesa do tribunal Gacaca. Entretanto, nada consta sobre outras iniciativas estruturais para promover os direitos humanos, superar a pobreza e nem elaborar a questão étnica a partir de certa profundidade, o que os especialistas entendem ser necessariamente uma condição para o sucesso deste processo. Nada se fez para o contexto geral poder facilitar os indivíduos e a coletividade a passarem por este momento da história, para um futuro um pouco mais confortável e promissor.

Talvez seja possível dizer que Ruanda esteja escrevendo uma nova história, com erros e acertos, como qualquer outra história, através deste exercício nacional do diálogo, capaz de restaurar o justo e instaurar o direito, a partir de sua experiência singular daquele momento e daquela situação específica.