• Nenhum resultado encontrado

Os outros participantes: facilitador e comunidade

2.2 Justiça Restaurativa: sua prática

2.2.2 Os outros participantes: facilitador e comunidade

A partir das informações acima, já sabemos que, além da vítima e do agressor, há outros personagens importantes no processo restaurativo, quais sejam a comunidade e o facilitador ou facilitadora.

2.2.2.1 A comunidade de afeto

Quero denominar de comunidade de afeto as pessoas convidadas pelos sujeitos envolvidos diretamente no processo de restauração para acompanhá-los, dar-lhes suporte e apoio emocional. São “los cercanos”, nas palavras da filósofa Luisa Ripa (2008), os que me importam e para quem eu tenho importância. São os que carregam em sua memória os dois atos mais importantes de minha existência, os quais, no entanto, eu não posso carregar em minha memória – meu nascimento e minha morte. Mas o decisivo destes próximos é que aprovem minha existência, ainda que reprovem meus atos.

Estes próximos, chamados por Barton (2003) de comunidades de suporte, são as pessoas importantes na vida da vítima e do agressor e que merecem seu respeito e sua

confiança – família, amigos, colegas, vizinhos, professores. Não deve ser um grupo menor do que quatro ou seis pessoas para cada personagem principal. Barton considera como regra geral convidar todas as pessoas que foram afetadas de forma significativa pelo crime. Estas comunidades de suporte, equilibradas e empoderadas, são o fundamento para o sucesso, também para conter a vitimização ou revitimização dos envolvidos quando a negociação se tornar difícil. Especialmente em casos mais difíceis, o empoderamento comunitário de pessoas capazes de dar suporte aos principais envolvidos é de fundamental importância.

Rössner (2000) confirma ser importante fazer a diferenciação entre o ato e a pessoa. Se realizada com êxito, pode abrir ao ofensor a possibilidade de ele mesmo atestar e confirmar esta diferença. Esta diferenciação pede a ele responsabilizar-se pelo crime e, ao mesmo tempo, distanciar-se dele através de seu engajamento a favor da restauração em relação à vítima e à comunidade. Caso isso aconteça ao vivo, na presença da comunidade, a responsabilidade moral é muito maior do que se o ofensor der um informe escrito sobre seu arrependimento ou compromisso.

No parecer de Winter (2004), a comunidade ainda pode ser o contexto social mais amplo, uma vez que a restauração é um processo de justiça curativa no qual cada sujeito tem sua contribuição. A comunidade tem forte importância no sentido de contribuir para a cura social, podendo tratar-se da comunidade de afeto assim como da comunidade mais ampla do contexto local dos sujeitos. A comunidade tem que propiciar uma estrutura protetora para a vítima, pois tem certa noção de que o mal que se manifestou no crime é o mal que está potencialmente em cada natureza humana. Todos os participantes da comunidade humana estão sendo atraídos e repelidos por esse mal, imaginando ser capazes de dominá-lo dentro de si, ao mesmo tempo em que não tem absoluta certeza em relação a essa capacidade. O ofensor é um ser humano que se tornou diferente de todos os outros e, ao mesmo tempo, continua tão igual a todos; tão igual àquilo que todos podem vir a ser.

Consequentemente, a partir desta condição humana, a comunidade tem a responsabilidade de ajudar a vítima a vencer e integrar o acontecido. Ao mesmo tempo, tem que colocar limites ao agressor, oferecendo-lhe uma estrutura confiável. Publicamente, isso acontece, por exemplo, no momento de fazer um Boletim de Ocorrência ou na instauração de um processo judicial. Após explicitar claramente sua

lei aos agressores, e estes a aceitarem, devem ser acolhidos pela comunidade e receber

comunidade tem que ajudar o ofensor a evitar a tendência de diminuir a gravidade do ato ou até isentar-se de sua responsabilidade. Ajudar a vítima a superar a autoculpabilização e aceitar sua responsabilidade, caso existir a possibilidade de compensação e restauração, favorece a confiança na própria capacidade construtiva. Concomitantemente, cada comunidade, com fundamento humanista, tem que garantir que o ofensor não seja excluído dela, evitando a criação de subcomunidades ou subgrupos que podem vir a constituir um perigo para a própria comunidade.

Em um relato sobre a experiência brasileira em São Caetano do Sul (SP), a promotora Caravellas (2006) fala da participação dos apoios, levados pelas partes, que podem ser familiares, amigos, vizinhos, advogados, professores, psicólogos, enfim, qualquer pessoa em que a vítima e o ofensor confiem e que considerem importante participar na discussão do problema. Interessante é que esta promotora ainda sugere a participação de grupos de suporte – como organização de mulheres, idosos, negros, homossexuais –, de tratamento para alcoólatras, drogados, ou de controle da raiva, que podem estar presentes, caso as circunstâncias do fato guardem relação com seu campo de atuação. O sentido da participação da comunidade de afeto e daquela mais ampla decorre do fato de que esta também é vitimada diante da sensação de insegurança gerada pelo crime. O processo de restauração pode alcançar também a reparação do dano e preservar ou melhorar a vida comunitária.

A ênfase na participação de pessoas próximas parece variar segundo os países e a orientação dos facilitadores. Enquanto nos países de tradição anglo-saxônica parece ser um imperativo, os autores alemães apenas reconhecem esta participação como não sendo inconveniente. No Brasil, teoricamente, se percebe um valor significativo na participação da comunidade na restauração, mas ainda existem poucos exemplos que comprovem isso na prática.

2.2.2.2 Os facilitadores

A tarefa do facilitador ou da facilitadora é o que seu nome atribui: facilitar o processo de restauração. Conforme Barton (2003), facilitar pode significar ajudar os participantes a ter voz, delegando o direito à fala; preparar as vítimas para expressar o que sentem e pensam sobre o acontecido; convidar a mistura equilibrada em quantidade

e diversidade de apoiadores para os dois lados; pedir o apoio da comunidade para vítima e ofensor, em momentos adequados, e perguntar por seus pontos de vista em questões cruciais como, por exemplo, sobre o dano, responsabilidade, punição, desculpas, perdão e reparação. Assim, o facilitador cria um ambiente seguro, razoável e de confiança, permitindo que os assuntos mais difíceis também possam ser abordados. Quando bem treinados e experientes, podem prevenir muitas falhas ao longo dos procedimentos e elaborar ações preventivas. Na ausência das comunidades de suporte, o percurso se torna mais pesado e é mais comum que os facilitadores abandonem sua neutralidade na tentativa de auxiliar uma das partes. A comunidade deve participar das discussões sobre as causas e consequências do incidente em questão. Isso somente é possível na mesma medida em que os facilitadores sejam capazes de abandonar seu papel institucional – caso eles tenham uma função no Judiciário, por exemplo – e sustentar as partes em sua responsabilidade de assumir os fatos, conforme façam sentido para eles. Em assuntos cruciais, uma decisão consensual entre vítima e agressor deve ser construída junto com suas comunidades de afeto, pois estes ajudam a assumir o ônus desta decisão.

Para Bazemore e Umbreit (2001), os facilitadores devem ser formados em mediação e habilidades de resolução de conflitos, para compreender as experiências e necessidades das vítimas e dos agressores, além de ter noção sobre as questões éticas e culturais que podem afetar os participantes do processo. Após a formação, voluntários ou assalariados, dependendo de sua eficácia nos processos restaurativos, podem melhorar a vida dos participantes e o bem-estar geral da comunidade. Para garantir um quadro de facilitadores capazes, estes devem receber um apoio financeiro para coordenar e fornecer apoio logístico, estabelecer vínculos com instâncias públicas e privadas e representantes da comunidade.

Jansen e Karliczek (2000) consideram que, em geral, os facilitadores são muito engajados para conseguir uma atitude positiva, isto é, uma motivação a ponto de os sujeitos concordarem com a continuidade dos procedimentos restaurativos. A agilidade do facilitador é fundamental para motivar, facilitar, possibilitar e garantir a comunicação entre vítima e agressor(a) e, ao mesmo tempo, impedir uma intromissão exagerada dos familiares presentes. Sua responsabilidade é criar uma base de comunicação que permita a elaboração do acontecido pelos sujeitos envolvidos, para serem capazes de assumir sua responsabilidade. Esta pesquisa afirma que todos os envolvidos estão convencidos da necessidade da presença do facilitador para motivar ou coordenar o encontro. A ele se delega confiança na medida em que se reconhece sua

experiência em lidar com conflitos e na medida em que as vítimas reconhecem nele certa proteção. Um ponto frágil é sua dificuldade – e, em alguns casos, incapacidade – de apoiar equitativamente as partes, o que configura uma fonte de insatisfação. Como prevenção e superação desta debilidade, é muito importante os facilitadores submeterem seu trabalho a um processo permanente de supervisão e reflexão crítica para conseguir reconhecer, o mais cedo possível, um comportamento inadequado. Mesmo assim, estes autores perguntam se e o quanto os facilitadores estão preparados para tirar o máximo de proveito a favor dos procedimentos restaurativos.

Catão (2009), analisando mediadores em tribunais de São Paulo, faz observações que podem servir também para os facilitadores de JR. Afirma que estes podem sofrer pressões, por exemplo, de advogados ou dos próprios sujeitos da mediação, quando insistem em manter o jogo da produção da verdade dos fatos, a despeito da mediação em andamento. No lugar dessa produção de verdade, a função dos mediadores é propor às partes em mediação retomar, cada uma, a posse de sua própria experiência e tomar em suas próprias mãos o governo da transformação do conflito comum. Quando o juiz encaminha um processo judicial para a mediação, de certa forma, está suspendendo sua atuação, passando o processo para um mediador que não está investido de autoridade na estrutura judicial. Sua função é orientar, sem interferir no curso, convidando as partes em conflito a aceitar o processo de mediação. Embora o conflito e as relações de poder persistam, há um “[...] deslocamento de uma relação de poder vertical para uma relação de poder horizontal – entre as partes e das partes consigo mesmas.” (CATÃO, 2009, p. 150).

Os envolvidos estão sendo convidados a abrir mão de suas visões exclusivas e trabalhar na construção de uma nova forma de relação com o outro. O exercício de reflexão e ação é estimulado através de perguntas abertas, como, por exemplo:

Como posso olhar para essa mesma situação ou sentimento de uma forma diferente? Como posso me relacionar com essa questão de outro modo daquele a que estou acostumada/o? Como posso fazer comigo para gerar efeitos diferentes no mundo, no outro? Como será que o outro recebe aquilo que faço/digo? Quais serão os motivos/desejos do outro que o movem a fazer ou dizer isso ou aquilo? Como posso fazer para dar vazão a meus desejos e aos desejos do outro? Como podemos encontrar um denominador comum? (CATÃO, 2009, p. 150).

Estas perguntas buscam, por meio do conhecimento de si, incrementar o domínio de si, o governo de si – talvez, uma prática refletida da liberdade – e a constituição ética de um sujeito. Assim, a mediação – e imagino também, a facilitação do JR – pode ser a

organização da existência, tanto do eu quanto do outro, aprendida também através da ajuda destes profissionais.

Mas há outras vozes que não dão tanta importância nem ao papel nem à preparação do facilitador. Numa central de JR, em Amsterdã, são recrutados cidadãos

comuns, pessoas independentes, que não podem ter ligação com o conteúdo e a

implementação do processo restaurativo do grupo familiar ou outro. Caso contrário, ele ou ela podem ter interesses conflitantes em relação ao resultado, e a confiança do grupo no processo de decisão pode ser ameaçada. Estes facilitadores não podem ser empregados por instituições ou funcionários públicos. Sua formação é, propositadamente, mínima; normalmente, são três dias de capacitação, pois acredita-se que muito treinamento pode prejudicar a pureza e simplicidade do processo chamado de “decisões pelo próprio recurso” e reforçar as necessidades e o poder do coordenador, ao invés dos do grupo familiar (JENKINS, 2010).

Também Pranis (2010) afirma não precisar de treinamento formal para ser facilitador de CP, ainda que as questões mais complexas não dispensem um treinamento mais intenso. Diferente de outras técnicas de resolução de conflitos ocidentais, o papel do facilitador do CP não é de neutralidade, pois participa do processo enquanto pessoa e oferece seus pensamentos, ideias e histórias.

Em diversas partes do mundo, a pessoa do facilitador é vista como uma das mais valiosas chaves para um procedimento exitoso da restauração, ao mesmo tempo em que pode ser o ponto de muitas armadilhas capazes de corroer o mesmo. Como já foi assinalado, um ponto nevrálgico é a renúncia a uma superioridade hierárquica para colocar-se em uma posição entre iguais, disponibilizando sua experiência e técnica a serviço dos participantes do processo restaurativo. O segredo é colocar-se no segundo plano para que os principais sujeitos do procedimento ocupem suas posições de destaque, uma vez que são os que vão saber encontrar a melhor saída para o caso, pois é seu caso. Esta postura, de certa forma humilde, no sentido de assumir o que se é – um humano ao lado e com posição igual ao outro –, pede que os facilitadores tenham clareza de sua posição e de seus interesses.

Para garantir este sucesso, os autores indicam a necessidade de uma preparação em diversas dimensões, embora também isso não seja consenso, como acabamos de ver pela experiência de Amsterdã. Arrisco citar alguns elementos que me parecem importantes: noções básicas de formação humana e psicológica para ser minimamente seguro de si e ter acesso aos significados dos posicionamentos alheios; escuta ativa e

comunicação assertiva; conhecimento e sensibilidade para o ambiente sociocultural dos participantes.

Quanto ao conhecimento jurídico, estou em dúvida se é uma exigência para os facilitadores, uma vez que não se trata de entrar na lógica do direito, que normalmente fecha o caminho da busca consensual para recorrer à lei e à razão preestabelecida que, nesta dinâmica, não ajudam na restauração dos laços e do dano. Certamente, a questão da formação dos facilitadores necessita ser pesquisada e desenvolvida continuamente, para obter os melhores resultados possíveis.

Uma controvérsia é a questão da remuneração. Como já vimos, em geral, no Brasil, estes profissionais são voluntários, enquanto na Alemanha pertencem ao quadro de funcionários de ONGs conveniadas com o Estado, e na Nova Zelândia são funcionários do Estado. O senso comum nos diz que quanto mais importante uma questão, tanto mais dinheiro é colocado a sua disposição. É uma questão a ser pensada para a realidade brasileira, uma vez que somente podem ser voluntárias as pessoas que têm suas necessidades básicas satisfeitas.