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A arte de (re)construir a verdade

3.4 Sobre a verdade

3.4.1 A arte de (re)construir a verdade

Nas últimas décadas, a criação de Comissões de Verdade (CV) ou Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR) em diversas partes do mundo59 tem sido um recurso comum na tentativa de (re)construir a verdade. Desde os anos de 1970, mais de vinte CV foram criadas em dez países da América Latina.

Diferente da abordagem judicial limitada às categorias de culpa e inocência, as CV analisam diversas versões dos acontecimentos do passado que aparecem como verdades narrativas e subjetivas, as comparam com as verdades fatuais e, no caso ideal, estabelecem uma versão do acontecido, num relatório final, escrevendo assim a história nacional que vai se agregando à memória coletiva. Por causa de sua existência temporalmente limitada, as CV só podem descobrir uma parte seletiva de todos os acontecimentos (SCHILLING, 2005).

A primeira condição e o primeiro passo do trabalho da CV é ouvir os relatos a partir de narrativas, as mais honestas possíveis. Nesta linha de reflexão, memória e

59 Por ordem cronológica: Uganda, 1974; Bolívia, 1982-1984; Argentina, 1983-1984; Uruguai, 1985;

Zimbábue, 1985; Uganda, 1986-1995; Nepal, 1990-1991; Chile, 1990-1991; Tschad, 1991-1992; África do Sul/ANC, 1992; Alemanha, 1992-1994; El Salvador, 1992-1993; África do Sul/ANC, 1993; Sri Lanka, 1994-1997; Haiti, 1995-1996; Burundi, 1995-1996; África do Sul, 1995-2000; Equador 1996-1997; Guatemala, 1997-1999; Nigéria, 1999-2000; Sierra Leoa, 2000-2001; Panamá, 2001- 2002; Peru, 2001-2003; Gana, 2002-2005; Marrocos, 2004-2005; Timor Leste, 2005-2008; Libéria, 2005-2009; Coreia do Sul, 2005-2010; Fiji, 2008- ; Canadá, 2008-2009; Salomon Ilhas, 2008-2009; Togo, 2009-2010. Fontes: <http://www.en.wikipedia.org/wiki/Truth_and_reconciliation_commission>. Schilling (2005).

construção da verdade talvez possam ser consideradas como sinônimos. Tomo emprestado os três pontos de reflexão de Flávia Schilling (2009) em relação ao título da coletânea – Memória para Armar – e faço analogia com a construção ou armação da verdade. A armação da memória pode ser entendida como sendo um quebra-cabeça, constituído por peças, fragmentos e pedaços. Cada um contribui com um pedaço, um fragmento. A memória (a verdade), embora sendo construção individual, somente pode ser constituída coletivamente, cada um colocando um fragmento em algo maior. Então, existe o lado individual e o lado coletivo nessa ideia de memória (e verdade) para armá- la como um quebra-cabeça.

Contudo, diferente da montagem deste, que faz aparecer algo coerente e completo, o resultado desta armação, com grande probabilidade, é algo incoerente, ilegível e absurdo, sugerindo a necessidade de um novo jogo de memória (e verdade) para armar. E, por fim, ainda há a possibilidade de que a memória (e a verdade) nos arme de algum modo, nos fortaleça para algum tipo de luta.

Seguindo esta analogia, a verdade – construção coletiva com resultados nem sempre coerentes e inteligíveis – pode ser um instrumento de defesa e resistência. Somente pode ser armada através do diálogo que possibilita reconstruir fatos. Os estudos de caso da África do Sul e Ruanda atestam que a reconstrução da verdade é uma base para nutrir o caminho da reconciliação.

Geralmente, as CV, diante da urgência de sua tarefa, não se detêm em aprofundar teoricamente os conceitos com os quais estão trabalhando. Uma exceção parece ser a do Peru, que, na introdução, definiu entender por verdade o relato fidedigno, eticamente articulado, cientificamente respaldado, contrastado de forma intersubjetiva, entrelaçada em termos narrativos, emocionalmente concernida com o acontecido no país nos vinte anos de vigência do mandato (COMISIÓN DE LA VERDAD Y RECONCILIACIÓN, 2003).

Não se trata desta espécie de verdade que consiste em, simplesmente, contar cronologicamente os acontecimentos ou confirmar publicamente danos e feridas ou reivindicar a responsabilidade moral em relação a estes. A arte da construção da verdade está na armação dos fatos, em, pouco a pouco, entrelaçar as narrativas, superar as versões que competem entre si para chegar a um entendimento de uma narrativa, a mais coerente possível, capaz de ser aceita pela coletividade.

A (re)construção da verdade, embora dolorosa, parece ser uma medicina sem a qual a sociedade continua envenenada do passado, o que, sem dúvida, influencia o

presente e o futuro. A eficácia da CV parece vir de sua capacidade em atribuir responsabilização e reconhecimento, além de sua habilidade de gerar uma nova narrativa aceitável para todos os lados (OLINER, 2008).

Um mínimo de empatia que permita sentar-se na mesa de diálogo junto com o outro, ofensor, agressor, ou criminoso de guerra, parece ser uma condição para esta (re)construção da verdade. Parece-me que aqui podemos ver um resultado ou uma condição da assim chamada empatia que aparece e reaparece nos autores da JR e nos da reconciliação. Será que a ausência da empatia dificulta ou até impede a construção de uma narrativa coletiva?

A palavra empatia origina-se do termo grego empátheia, que significa a tendência de sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e nas circunstâncias experimentadas por outras pessoas. Significa entrar no sentimento, ser receptivo aos outros e, simultaneamente, à nossa totalidade interior; estar disposto a conhecer tanto os outros como a si mesmo (FERREIRA, 1975).

O estado de empatia ou entendimento empático consiste ainda em perceber corretamente o marco de referência interno do outro, com os significados e componentes emocionais que contém, como se fosse a outra pessoa, porém sem perder nunca essa condição de como se. Implica, por exemplo, sentir a dor ou o prazer do outro como ele o sentiu e perceber suas causas como ele a percebeu, porém sem nunca perder de vista que se trata da dor ou do prazer do outro. Sem esta condição como se, trata-se de um caso de identificação. Um mínimo de empatia parece ser precondição para o restabelecimento das relações e o surgimento da disponibilidade das vítimas ouvirem as razões do ódio e da violência daqueles que lhes causam dor. A empatia parece ser capaz de abrir para a compreensão dos seus atos, ao mesmo tempo em que permite aos agressores acolherem a raiva e amargura de suas vítimas.

O passo seguinte em direção à (re)construção da verdade parece ser ainda mais difícil: fazer os envolvidos assumirem a responsabilidade para os acontecimentos. A rejeição de culpa e da responsabilidade é muito comum, em parte, porque os acusados, de um lado, se consideram, e possivelmente são considerados, heróis. Após a ditadura de Pinochet, em Chile, este, convencido do valor da luta contra o demônio do comunismo, afirmou que “[...] o exército de Chile não vê, de certo, nenhuma razão para pedir perdão por ter participado em uma tarefa patriótica.” (LEFRANC, 2005, p. 61).

Em culturas políticas e jurídicas nas quais a impunidade foi dominante, como foi o caso em muitos países da América Latina, infratores se sentiram no direito de fazer o

que fizeram. Também é comum rejeitar a responsabilidade pelos seus atos com o argumento conhecido de que “estávamos apenas obedecendo a ordens”, o que fecha o

caminho de acesso a outras versões da verdade (HUYSE, 2003).

Colocar-se no lugar do outro parece ser um recurso importante nos procedimentos da JR, pois permite acessar a verdade, abrir para o diálogo, aumentar a capacidade de alteridade e reforçar a coragem para assumir seus atos.