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Na condição de corpo incircunscrito

3.2 Sobre o reconhecimento

3.2.5 Na condição de corpo incircunscrito

Quando se trata de procedimentos da JR, todo cuidado me parece pouco em relação ao falso reconhecimento em termos de status de subordinação. Como fazer para que a restauração (na realidade brasileira) de relações sociais muito desiguais não seja ditada ou entrincheirada pelas noções e valores social, cultural e institucionalmente hierarquizados (por exemplo, o próprio sistema de justiça ou escolar) e, portanto, produtores e reprodutores de injustiças? Como formar os facilitadores para que tenham o distanciamento necessário que permita a crítica capaz de introduzir esta vertente refletiva e ajudar os participantes na desconstrução dos falsos consensos, subjacentes às diferenciações de status existentes?

Já vimos que uma possibilidade de falso reconhecimento é a coerção, que pode ser em forma de força sobre o corpo para a manutenção do poder, como, por exemplo, o patriarcalismo, o militarismo, a ditadura. No contexto brasileiro pode ainda ser interpretado como um tipo de dominação tradicional em que não se diferenciam nitidamente as esferas do público e do privado, quando o poder é utilizado por elites políticas para legitimar sua atuação, uma vez que o País se caracteriza por uma ordem política em que os indivíduos ou são basicamente governantes ou são governados, nos dizeres de Faoro (WOLKMER, 2006).

Outro cuidado é com a política afirmativa de um grupo específico. Em tese, posso concordar com o reconhecimento baseado no modelo de estatuto, que evita afirmar a política de identidade, por entender que precisamos não da afirmação de uma identidade específica de um grupo, mas de uma política que afirme o estatuto individual dos seus membros, parceiros de pleno direito na interação social. Mas, quando dialogo com a realidade de grande parte do Brasil, assim como Caldeira (2000), percebo que prevalece uma noção incircunscrita do corpo e do indivíduo. Independentemente do regime político, é sobre os corpos incircunscritos dos dominados que as relações de poder se estruturam, que os significados circulam e que se tenta construir a ordem. No entanto, os direitos civis parecem depender da circunscrição do corpo e do indivíduo, e do reconhecimento de sua integridade.

O Brasil tem uma democracia disjuntiva que é marcada pela deslegitimação do componente civil da cidadania: o sistema judiciário é ineficaz, a justiça é exercida como um privilégio da elite, os direitos individuais e civis são deslegitimados e as violações dos direitos humanos (especialmente pelo Estado) são rotina. Essa configuração específica não ocorre em um vácuo

social e cultural: a deslegitimação dos direitos civis está profundamente enraizada numa história e numa cultura em que o corpo é incircunscrito e manipulável, e em que a dor e o abuso são vistos como instrumentos de desenvolvimento moral, conhecimento e ordem. Essa configuração específica nos permite sugerir que a lógica cultural e política que cria corpos incircunscritos não é a mesma lógica que gera o indivíduo circunscrito na tradição liberal de cidadania. (CALDEIRA, 2000, p. 375).

Possivelmente, a JR tem mecanismos de equilibrar este hiato entre direitos liberais e realidade brasileira. Quiçá, a estratégia de ampliar a presença da comunidade de afeto – aquelas pessoas próximas às vítimas e aquelas próximas ao ofensor –, para apoiar-se enquanto corpos incircunscritos, possa ser um caminho para formar um corpo com maior circunscrição. Talvez este corpo coletivo circunscrito seja capaz de favorecer a justiça justa através dos encontros de restauração, uma vez que muitos dos participantes são cidadãos, conforme o entendimento político da lei, mas não indivíduos, sujeitos autônomos. Possivelmente, o fortalecimento do corpo coletivo possa ser um caminho de afirmação dos direitos individuais, pois:

[...] o corpo incircunscrito não tem barreiras claras de separação ou evitação; é um corpo permeável, aberto à intervenção, no qual as manipulações de outros não são consideradas problemáticas. Por outro lado, o corpo incircunscrito é desprotegido por direitos individuais e, na verdade, resulta historicamente da sua ausência. No Brasil, onde o sistema judiciário é publicamente desacreditado, o corpo (e a pessoa) em geral não é protegido por um conjunto de direitos que o circunscreveriam no sentido de estabelecer barreiras e limites à interferência ou abuso de outros. (CALDEIRA, 2000, p. 370).

Reforçar o indivíduo, quando este tem que assumir uma posição, de certa forma, pública, por ter sido vítima ou agressor, pode ser um caminho para a inclusão e o fortalecimento do coletivo, também através do reconhecimento deste coletivo. Se uma agressão ou crime é uma ofensa não ao Estado, mas às pessoas que pertencem a uma determinada comunidade, a resposta deve estar alocada no bojo desta mesma, onde cada um tem uma importância e, ao mesmo tempo, uma responsabilidade para o bem-estar coletivo. Reconhecer e empoderar a comunidade pode ser um caminho para estabelecer barreiras e limites ao abuso de outros, seja quem for.

Com os procedimentos da JR estamos situadas em um tempo de transição entre modelos. A partir do entendimento do direito moderno, vítima ou agressor, enquanto necessitar de um coletivo para equivaler a um corpo circunscrito, está em desvantagem na sociedade que parte do princípio de que todos são indivíduos, cidadãos plenos em direitos e deveres. Devido à cultura de subordinação, existe ainda um caminho a percorrer para que o corpo, mesmo que seja o coletivo, entre nos procedimentos de JR

suficientemente empoderado, como personagem capaz de dialogar sobre a desigualdade e reivindicar estruturas e direitos emancipados.

Durante os pré-círculos, os personagens em posição de desvantagem têm que ser preparados para fazer suas contestações valerem e tencionar para o justo acontecer na preparação e na realização do círculo restaurativo. Creio que é um campo a ser explorado na formação dos facilitadores de JR.

Nos EUA, onde a aplicação da JR já ocorre há muitos anos, Enns e Myers (2009) observaram que o desnível de poder é um assunto tão complexo e difícil de abordar que os facilitadores preferem ignorá-lo, por não se sentirem capazes de levá-lo em consideração durante os procedimentos restaurativos. Obviamente, o desnível de poder influencia negativamente no processo, como se pode averiguar mais à frente, no subcapítulo sobre a reconciliação.