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2.4 O desenvolvimento da Justiça Restaurativa

2.4.1 Em diversos países

Um primeiro modelo de aplicação da JR é o chamado Modelo Nova Zelândia, que acontece em espaços fora da instituição policial, normalmente sob responsabilidade do departamento público para crianças, adolescentes e suas famílias. Seu marco histórico está em 1989, com a elaboração da primeira legislação chamada New Zealand

Children, Young Persons and Their Families Act, criando a Family Group Conferencing

(BARTON, 2001, p. 9), que eu traduzo como Conferência do Grupo Familiar (CGF). Esta legislação prevê que o procedimento criminal somente pode ser utilizado quando não houver alternativa ao procedimento judicial disponível para atender aquele caso. É essencial que as medidas aplicadas fortaleçam o jovem, a união familiar e a capacidade da família para abordar o comportamento ofensivo. Os jovens devem ser mantidos em seu lugar de moradia, sua comunidade, o quanto possível. As sanções devem ser as menos restritivas possíveis. As sanções devem levar em consideração os interesses da vítima do crime. (IMMARIGEON, 2004).

A partir desta legislação, a responsabilidade primária pelas decisões sobre o que será feito com os jovens em conflito com a lei é estendida às famílias. O espaço para

tomar decisões deve ser a CGF, visando incluir todos os envolvidos e os representantes dos órgãos estatais responsáveis. Na maior parte dos casos, seus coordenadores são funcionários públicos e outras pessoas com formação em alguma área social.

Em 1990, a Austrália inaugurou, na cidade de Wagga Wagga, o assim chamado

Modelo Wagga, que são conferências restaurativas organizadas pela polícia. Este

modelo provocou debates intensos sobre a validade das práticas restaurativas executadas a partir da instituição policial. A história deste modelo é encontrada em diversas publicações (LIEBMANN, 2007; MCGRATH, 2004; BARTON, 2003; BAZEMORE; UMBREIT, 2001). O agente da polícia Terry O‟Connell, de New South Wales, desenvolveu e formalizou pela primeira vez uma Conferência do Grupo Familiar neste novo modelo, num programa para jovens ofensores. Até então era comum a prática JR tratar da restauração de danos. O‟Connell – imaginando que o acordo material era algo mais ou menos automático e óbvio de acontecer, uma vez que a ofensa ou o crime chegou aos departamentos públicos –, ampliou a atenção para o envolvimento emocional e a conciliação das partes. Ele defendeu a posição de que os principais participantes, vítima e ofensor, são as pessoas mais hábeis e indicadas para conseguir um acordo. Ao mesmo tempo, o encerramento do processo depende principalmente da capacidade destes saberem lidar com suas emoções. O‟Connell propôs então focar o encontro não somente nos fatos objetivos, mas incluir a dimensão emocional (lidar com a ferida, medo, raiva) tanto da vítima quanto do ofensor e ainda de seus respectivos familiares. O sucesso deste tipo de abordagem depende exatamente do envolvimento e do apoio da família mais ampla, além das partes envolvidas no conflito. Envolver e empoderar as comunidades que têm laços afetivos fortes e que são capazes de apoiar e cuidar de ambos, vítimas e ofensores, é a tarefa de conferências restaurativas. Este empoderamento é capaz de superar qualquer obstáculo que eventualmente possa aparecer no processo de restauração.

O‟Connell (2007) considera que o papel dos facilitadores é ajudar os indivíduos através da utilização de perguntas restaurativas que ele resume, de forma facilitada. Dirigindo-se aos ofensores ou infratores (ou os responsáveis por danos), as perguntas são: O que aconteceu? O que estava pensando no momento? O que você pensou desde então? Quem foi afetado pelo que você fez? De que forma? O que você precisa fazer para sanar, restaurar a situação?

Para aqueles que foram prejudicados (vítimas e também as famílias dos infratores) as perguntas são: O que você pensou quando você percebeu o que tinha

acontecido? Que impacto teve este incidente sobre você? Qual foi a coisa mais difícil para você? O que você acha que tem que acontecer para fazer sanar, restaurar a situação?

A chave para uma facilitação eficaz tem a ver com fazer perguntas simplesmente. Este estilo ajuda outras pessoas, através de conversas restaurativas, a desenvolver sua própria capacidade de dar sentido e significados ao acontecido, o que é importante para elaborar o caminho da restauração, pois permite aos envolvidos desenvolver e colocar para fora o que tem de melhor neles. Esta prática não necessariamente precisa da participação em conferências restaurativas, mas pode ser utilizada em qualquer relação de ajuda.

A partir de 1993, surgem em todos os territórios australianos legislações que incorporam a CGF, dando preferência para o modelo extrapolicial da Nova Zelândia, como um componente dentro de um leque de possibilidades para responder à criminalidade juvenil. Em outras partes do mundo – por exemplo, os Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e o País de Gales em 1999 –, foi adotado o Modelo Wagga (DAYLY; HAYES, 2001).

Na Alemanha, o desenvolvimento da JR se deu desde o princípio dos anos de 1980, através da colaboração entre o direito e as ciências sociais. Entre 1984 e 1987, iniciaram-se os primeiros projetos-modelos em varas de juventude e no direito penal. Em ambas as áreas foram excluídos delitos de importância menor que, de qualquer forma, tem como consequência o arquivamento do processo, assim como os casos em que não há identificação da vítima. No direito penal, também não foram tratados delitos graves (RÖSSNER, 2000; TAUBNER, 2008).

Em dezembro de 1990, entrou em vigor a modificação da lei juvenil, que salienta que o empenho para alcançar uma restauração com a vítima é uma razão especial para abster-se da aplicação da lei penal. Em 1999, foram incluídas as modificações processuais, de tal forma que a promotoria e a justiça têm o dever de considerar a possibilidade dos procedimentos da JR em todos os estágios do processo. Os dois autores, Rössner e Taubner, são ligados ao centro de JR da cidade de Bremen12, que participou, em 1993, da elaboração do um padrão de qualidade, registrado sob o nome de Herbsteiner Erklärungen.

Quanto ao desenvolvimento da denominação que, traduzida do alemão, pode ser algo como “equilíbrio entre vítima e agressor”, esta conseguiu impor-se em detrimento

de outras como “restauração do dano”, “regulação de conflitos” ou “mediação de conflitos” (TAUBNER, 2008). A JR é interpretada por Taubner como uma forma de mediação na justiça penal, sendo a facilitação na negociação de duas partes através do suporte de um terceiro, não envolvido e neutro. Ainda que não haja concordância sobre o que são as técnicas de mediação, após anos de controvérsia na Alemanha se chegou a certo consenso de que o método de elaboração para a JR é um procedimento de mediação. Existe a expectativa de que as partes abram mão de sua posição inicial hostil para aproximar-se de uma postura de cooperação visando a um resultado no qual não existam perdedores, uma vez que a mediação é um processo de ganha-ganha.

O Tribunal da Juventude da Bélgica instalou um projeto-piloto entre os anos 2000 e 2003, tendo como modelo a CGF da Nova Zelândia. Tratava-se de delinquências graves, como roubo com circunstâncias agravantes, agressões, assaltos à mão armada e furto de carros. A partir desse projeto, o Ministro da Justiça formulou uma proposta de lei, votada em junho de 2005, para reformar o direito juvenil, visando à implementação de práticas restaurativas (FRAECHEM; WALGRAVE, 2000).

Desde 1997, iniciou-se, nas prisões da Bélgica, o projeto Pedras angulares para

uma política de Justiça Restaurativa coerente, orientada para a vítima, sob observação

das Universidades de Louvania e Liège. O sucesso foi tanto que o Ministério da Justiça ordenou que cada prisão desenvolvesse seu programa de implantação de práticas de JR, com dois principais objetivos: introduzir uma cultura de respeito dentro da prisão e possibilitar uma comunicação direta e/ou indireta entre ofensor e vítima. Também existe um caixa solidário, administrado por uma entidade não governamental, para ajudar as vítimas cujos ofensores não tem recursos financeiros para a restituição ou compensação. Neste projeto, os ofensores encarregam-se de trabalhos comunitários pelos quais são pagos, sendo o dinheiro repassado para as vítimas, através da ONG. Hoje existem assessores de JR praticamente em todas as prisões da Bélgica (LIEBMANN, 2007).

Na América Latina, onde há uma mistura flexível dos sistemas judiciais norte- americanos e europeus, as reformas na justiça incluíram a fundação e regulamentação de centros para mediação e arbitragem, a partir do início dos anos de 1990. O governo argentino desenvolveu um plano de mediação nacional concentrado em volta de casos civis e comerciais (PARKER, 2005).

Em 1996, incentivada pelo Ministério da Justiça, acontece uma experiência do modelo de JR através do Centro de Formação Profissional da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA). Profissionais e estudantes do serviço de

assistência jurídica gratuita começaram a resolver conflitos da área penal, mediante a adoção de práticas restaurativas, como a mediação penal. Este movimento em direção à JR na América do Sul fez parte do movimento de reforma da sociedade civil, de advogados e juízes, chamado Justiça em mutação, que teve origem em dezembro de 2000. Uma das diferenças em relação aos países do Norte, onde existe um quadro para a participação da comunidade no sistema de justiça, é o desafio de envolver as pessoas da comunidade na justiça, quando isso até então não é comum.

Como fruto destas reformas, em três províncias da Argentina, foi aprovada uma legislação que define ou exige a mediação entre ofensor e vítima em certos tipos de casos e a disponibiliza para outros. Em decorrência desta, os operadores que trabalham no sistema de justiça criminal, tais como juízes, mediadores, promotores nacionais e regionais, professores de direito e áreas afins começaram a ser treinados em mediação. A partir de 2007, a matéria de JR começou a ser ensinada em programa de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de JFK, em Buenos Aires (PRICE, 2008).

Em decorrência das experiências em diversas partes do mundo, o Conselho Econômico e Social da ONU elaborou a Resolução nº 2.002/12 – Basic principles on

the use of restorative justice programmes in criminal matters. Este Conselho convidou

os Estados-membros a implantar pesquisas, capacitações e atividades que possibilitassem a divulgação e a efetiva implementação de práticas restaurativas em diversos níveis e ambientes da sociedade (PRUDENTE, 2008).

Em novembro de 2009, aconteceu em Lima, Peru, o I Congresso Mundial de Justiça Restaurativa Juvenil, organizado pela Fondation Terre des Hommes, a

Associacíon Encuentros – Casa de la Juventud, o Ministério Público do Peru e a

Pontifícia Universidade Católica do Peru. O evento foi uma oportunidade para realizar trocas de experiências práticas, intercâmbios e propostas futuras para impulsionar este modelo de justiça, como “[...] resposta à atual corrente neo-retribucionista, e precisar sua natureza, alcances e aplicações concretas em diferentes contextos culturais e jurídicos” (CONGRESSO MUNDIAL DE JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL, 2009).

Segundo minha avaliação, existem duas datas marcantes no desenvolvimento da JR no cenário jurídico legal internacional. A primeira é o ano de 1989, com a elaboração da primeira legislação em relação a jovens na Nova Zelândia, e a segunda, o ano de 2002, com a Resolução nº 2.002/12, da ONU, convidando os Estados-membros a

implantar pesquisas, capacitações e atividades que possibilitem a divulgação e implementação de procedimentos restaurativos. São marcos norteadores do desenvolvimento da JR no mundo, citados em quase todos os estudos sobre JR.