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A nova percepção dos profissionais

2.1 Justiça Restaurativa: definições e debates

2.1.4 A nova percepção dos profissionais

A mudança na percepção do direito e das regras jurídicas pede, aos profissionais do direito, reconsiderar seu papel. A partir da ótica da JR, a função de preservar direitos, aprendida ao longo de sua formação acadêmica, impregnada pela tradição conservadora, pede para ser problematizada.

Acredito que vale a pena registrar duas experiências pessoais para ilustrar a que estou me referindo. Por ocasião de meus primeiros contatos com a JR, muito empolgada, partilhei meus novos conhecimentos com um amigo promotor de justiça – ele, assim como eu, ligado a uma entidade dos direitos humanos. Assustado, colocou a mão na cabeça e me respondeu: “mas isso é contra os direitos humanos!”. Posso entender esta exclamação como uma reação a situações históricas de injustiças e impunidades contra as quais organizações de direitos humanos lutaram e continuam lutando. Esta reação pode apontar para um entendimento, comum e equivocado, de proximidade entre restauração e impunidade.

Outra situação é uma conversa entre dois juízes da Vara de Infância e Juventude: um estava propondo um estudo de alguns casos de aplicação de práticas restaurativas naquela Vara. O outro verificou os seguintes três itens antes de aceitar a proposta: a pessoa hierarquicamente superior a eles estava ciente e de acordo com a proposta; estava certo que não se tratava de algo que contrariava a lei; averiguou que não estava se introduzindo o abolicionismo e que a punição continuava concomitante às práticas restaurativas. Confirmado nestas três condições, a proposta de fazer um teste com alguns casos foi aceita.

Estas situações mostram como a concepção do direito único, do monopólio do Estado, da visão hierárquica nas funções, cuja resposta é o padrão da punição, está encarnada nos operadores do direito. Estas reações espontâneas podem ser indicadores do tamanho do desafio para conseguir aliados para as possibilidades de aplicação da JR entre os operadores do direito.

Por ocasião do lançamento da política pública Redes de Mediação, no ano de 2007, o Secretário de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, indicou a necessidade de se inserir novos conhecimentos na formação dos bacharéis de direito, através de cursos aos operadores jurídicos:

A idéia é operar com perspectiva diversa da cultura forjada pelo bacharelismo e mesmo pelo mercado de trabalho do profissional do Direito no Brasil,

centrada na lógica da guerra e da beligerância, e não da paz e da composição de interesses. O profissional da guerra em que se constitui o bacharel em Direito, com base formativa altamente dogmática e positivista, tem se projetado diretamente para o tecido social, fazendo com que as relações intersubjetivas e interinstitucionais se judicializem em proporções agudas, com uma perspectiva de litigância desmesurada. Poderia, em vez disso, trabalhar com a solução pacífica e negociada – portanto, mais preventiva do que curativa – dos problemas que surgem em qualquer comunidade de interesses múltiplos e diversos. O problema aqui é realmente de aculturação à composição de conflitos, que, por óbvio, não depende tão-somente do Estado-juiz, mas de todos os agentes envolvidos numa relação jurisdicional, o que demanda um processo de reeducação dos sujeitos de direito. É com tal perspectiva que o projeto Redes de Mediação quer propor a estruturação de um processo de formação à pacificação social no âmbito das lides – judicializadas ou não. (FAVERETO, 2007).

Contudo, o Brasil não é o único país que se defronta com a necessidade de mudança de cultura dos operadores de direito, para possibilitar que a JR tenha espaço entre estes. Barton (2003), defensor da coexistência da prática punitiva e restaurativa, afirma categoricamente que, em relação a seu universo de pesquisa, no mundo anglo- saxão, o exclusivo uso de acordos alternativos não tem chance de ser uma prática aceita na justiça criminal. O monopólio das decisões judiciais importantes, nas mãos dos profissionais do direito, é a marca registrada do status quo na justiça criminal. Uma questão muito séria é o silenciamento das pessoas mais bem posicionadas para tomarem decisões, isto é, os próprios envolvidos no processo. O atual sistema é responsável por muitas decisões inapropriadas. Uma das razões é o interesse de muitos operadores em atenderem às prioridades típicas de um sistema burocrático, muitas vezes, não condizente com as necessidades básicas e os interesses dos principais envolvidos.

Diversos autores reconhecem ser comum entre os profissionais – mesmo entre os treinados em práticas restaurativas – a falta de clareza sobre a pedagogia da JR, que estabelece que estes profissionais não sejam os personagens principais nestes procedimentos. Se assim for, os casos correm como processos comuns em um tribunal qualquer.

Outras autoras, principalmente da área de psicologia, levantam a dúvida se a vertente da mediação entre vítima e ofensor dentro do sistema judicial é adequada para originar uma compreensão transformativa tanto da percepção quanto da personalidade ou se é vivenciado mais como obrigação e penalização por parte do ofensor e se os profissionais têm formação suficiente para enfrentar a situação neste espaço (TAUBNER, 2008; CATÃO, 2009).

Assim como na JR no âmbito da instituição justiça, também no escolar aparece a confusão sobre os papéis específicos de cada envolvido. A JR pede aos professores uma

mudança de atitude, pois muitas vezes entendem que o manejo de conflitos é uma de suas atribuições e somente o delegam aos alunos por falta de condições de trabalho ou por falta de tempo. A JR e a mediação também não podem ser interpretadas como se fossem um fator estranho, ou pior ainda, como se atrapalhassem ou ameaçassem os educadores, mas precisam tornar-se parte da estrutura escolar democrática. É necessário inserir treinamentos para lidar com conflitos como parte oficial e obrigatória na formação dos pedagogos e professores (SCHUBARTH, 2004).

Uma pesquisa sobre a aplicação de JR numa escola municipal de Porto Alegre constatou que os círculos restaurativos estavam sendo aconselhados pela equipe diretiva que fez a formação para a JR. A proposta não partia dos envolvidos, principalmente quando se tratava de conflitos entre alunos. Avalia que esta estratégia poderá ser aplicada num primeiro momento para a divulgação da nova proposta, mas será inadequada e/ou insuficiente por não sensibilizar ou estimular os alunos a serem os protagonistas do processo. Também aponta que a proposta da JR como princípio para resolução de conflitos poderá significar o questionamento das relações de poder e saber vigentes na escola. A proposição de compartilhar a palavra e buscar a justiça poderá dar visibilidade a tensões que poderão ser fortemente reprimidas dentro da escola, fazendo com que ela muitas vezes tenha suas relações organizadas por professores que falam para os alunos e não com os alunos. E, ainda, sinaliza a necessidade de contemplar as práticas de JR dentro de um trabalho coletivo coerente e sistemático da instituição, não sendo aceitável sua restrição a indivíduos isolados que mudaram suas representações (ARAÚJO, 2010).

Concluindo estas considerações sobre os profissionais que recorrem a práticas restaurativas, intuo que esta nova aproximação para compor aquilo que é justo e adequado para cada situação pede aos profissionais de direito e da educação resistirem à tentação de recorrer ao poder dominador para impor-se durante os encontros restaurativos; pede para não focar em assuntos legais, não querer estabelecer a única verdade daquela situação, libertar-se de seus papéis tradicionais e estender a responsabilidade de encontrar uma solução satisfatória para com todos os envolvidos, propiciando inclusão e empoderamento.

Desde que as práticas e os acordos não ofendam a lei e/ou o interesse público, as soluções alcançadas pelos participantes e entre eles, certamente, são as mais adequadas àquela situação.