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Sensibilização de ofensores em relação às vítimas

2.7 A restauração em casos específicos

2.7.5 Sensibilização de ofensores em relação às vítimas

São cursos ou encontros que possibilitam aos ofensores que, de alguma forma, queiram entender o que se passa com suas vítimas e compensar ou restaurar a dor ou o dano causado. A prática mostra que entender o que seu ato causou ajuda a evitar a reincidência.

As técnicas utilizadas são a exibição e discussão de vídeos, exercícios de empatia para com a vítima, discussões sobre experiências próprias de ser vítima, dramatizações, escrever uma carta para a vítima, ainda que esta nunca seja enviada. Muitos ofensores e criminosos foram, em algum momento, também, vítimas e a possibilidade de refletir sobre esta experiência pode ajudá-los a serem mais atentos e conscientes sobre a situação daquelas. Eventualmente, primeiro terão que ter ajuda em relação a seus próprios traumas, antes de serem capazes de enfatizar os de terceiros.

Também pode fazer parte deste treinamento um encontro com vítimas que relatam sua experiência, ainda que os ouvintes não sejam os seus próprios ofensores. Há experiências de encontros entre vítimas e ofensores de crimes semelhantes. Objetiva providenciar um espaço seguro para as vítimas se expressarem sobre os efeitos do crime em suas vidas, podendo ser, para os ofensores, uma aprendizagem sobre seus efeitos na

vida de outras pessoas. Este momento pode vir a ser um espaço de libertação para a vítima, quando ela perceber que a dor dela foi acolhida por pessoas que cometeram crimes: “Eles entenderam minha dor, e olharam minha alma. Eles me devolveram minha fé na espécie humana.” (LIEBMANN, 2007, p. 209).

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Terminando o delineamento sobre procedimentos de JR, passo para o segundo capítulo. Motivada pelas possibilidades práticas, debruço-me sobre teorias da filosofia, sociologia e antropologia, que podem ser o fundamento para a educação e a prática da JR.

3 CAPÍTULO II – CONCEITOS FUNDANTES DA JUSTIÇA

RESTAURATIVA

Neste segundo capítulo, abordo questões teóricas de alta complexidade: política, justiça, verdade, cidadania. A partir de meu entendimento e minha reflexão sobre a JR, construo uma abordagem possível, ciente de ser aleatória e incompleta. Ao mesmo tempo, é um exercício de liberdade para pensar os conceitos que fui identificando nas leituras sobre JR de diversas partes do mundo.

Iniciando, quero chamar a atenção para duas preocupações que estão no fundamento desta reflexão: são as preocupações que dizem respeito ao justo e à política. Inspirada em Ricoeur, entendo que o justo pode ser aplicado a pessoas, ações e instituições. É possível atribuir vários significados a este predicado: o do bom, relativo ao outro; o do legal; e, no plano em que se exerce um julgamento, o do equitativo. O conflito e, de certo modo, a violência são uma ocasião para a intervenção também da instituição da justiça, o Judiciário. Mas instaurar o justo não necessariamente depende desta instituição. Quero mostrar que o justo precisa da tensão, da dinâmica e da disputa. Em alguns casos, esta disputa e a violência podem ser elevadas ao nível de processo jurídico, que também é centrado num debate de palavras. No Judiciário se faz o esforço de transferir a violência real ou potencial para o nível da linguagem, objetivando dominar a violência através da palavra e do direito (RICOEUR, 2008).

Nesta tensão entre palavras, argumentos, necessidades e desejos, às vezes, tentando domar a violência, se localiza a possibilidade e a dinâmica de realizar o justo. Muitas vezes, tenho dito que trabalhar com a JR no Brasil é, antes de qualquer coisa, “[...] instaurar o direito para depois restaurar o justo [...]”48 (informação verbal). Trata-

se de instaurar aquilo que é bom, legal e equitativo.

O segundo conceito é o da política. Inspirada em Arendt, creio poder afirmar que o ponto central da justiça está na preocupação com o mundo e não com o homem em singular. O nosso mundo já existia antes de nós e está destinado a sobreviver aos que nele vivem; assim, simplesmente, não se pode dar-se ao luxo de conferir primeiramente sua atenção às vidas individuais e aos interesses a elas associados em particular. O âmbito político contrasta com nosso domínio privado.

“Em política, não a vida [privada], mas sim o mundo está em jogo.” (ARENDT, 1997, p. 203).

O ponto central da política se baseia na pluralidade dos humanos e trata de possibilitar a convivência entre diferentes, organizando, de certa forma, este caos absoluto e a consequente tensão que a pluralidade gera. A política surge no espaço entre os humanos e sua “[...] tarefa e objetivo é a garantia da vida no sentido mais amplo.” (ARENDT, 2007, p. 46).

Também na JR estamos tratando do convívio humano e não de anjos. Portanto, é necessário criar espaços onde este humano possa se confrontar com o outro, igualmente humano. Considerando que no mundo moderno e contemporâneo desapareceram gradativamente as referências – autoridade, religião, tradição – que sustentavam as decisões e julgamentos, agora estamos desamparadas. Urge a necessidade de reinventar a política também como espaço de instaurar o justo.

Retomo a linda metáfora do deserto e do oásis à qual Arendt (2007) se refere. Trata-se de tentar conter o avanço do deserto, que é o oposto do mundo humano, o deserto entendido como a perda crescente de mundo em comum, o desaparecimento do espaço entre-dois, o deserto como mundo em que se cortaram ou banalizaram as relações. Ou ainda, como o espaço politicamente desorganizado pela dominação totalitária, pela democracia de massa, pelo mundo pós-totalitário, tecnológico, uniformizante e massificante onde os oásis de filosofia e arte, amor e amizade podem desaparecer, quando se tenta, somente, ajustar-se às condições de vida do deserto ou esquivar-se do deserto para os oásis.

A proposta da política é viver a tensão do entre. Entendo que a preocupação da JR pode ser descrita com a metáfora de tentar conter o avanço do deserto, rearticular o mundo em comum e organizar a tensão inevitável. Portanto, para nos capacitar a viver esta tensão do entre, tento identificar alguns conceitos que precisam ser trabalhados na educação para fundamentar tanto a percepção e os conceitos quanto a ação desta justiça capaz de restaurar.

Ao mesmo tempo, o campo da JR me faz levantar perguntas: Em relação à política e ao justo, como possibilitar e garantir a sobrevivência deste mundo em constante perigo de nele espalhar-se o deserto, oposto do mundo humano? Como favorecer o justo através da política que visa à mudança, conservação ou fundação do mundo? Como garantir uma justiça social com reconhecimento e cidadania para todos os do mundo, sem exigir que abandonem sua singularidade, sua ação espontânea, sua capacidade de criar algo novo? Como permitir e

favorecer experiências singulares de restauração após uma transgressão? Como articular a coragem daqueles que tentam converter o deserto em oásis, sem abrir mão da singularidade, uma vez que abrir mão da individualidade seria adaptar-se ao deserto desta sociedade? Uma completa submissão ou adaptação ao existente, a renúncia ao ser sujeito é a total ausência de experiências singulares, capazes de provocar uma resposta imprevista, uma resistência ao deserto (cf: ALMEIDA, 2009).

São algumas das questões que estão no subtexto deste capítulo.