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Os contatos com a Justiça Restaurativa

4.1.1 Uma história do CDHEP

O CDHEP65, fundado em 1982, sempre articulou e articula ações e reflexões para a superação da violência e o acesso à justiça.

No final de 2002, participei de um seminário66 no Rio de Janeiro em que foi apresentado um processo de educação popular chamado Escola de Perdão e

Reconciliação, iniciado pela Fundación para la Reconciliación67, em Bogotá, Colômbia, que tentava aplicar os conceitos de perdão e reconciliação no mundo público.

Inicialmente, bastante cética em relação à novidade, principalmente do perdão fora do espaço religioso, continuei minha busca. Durante a campanha do desarmamento, apareceu outra vez o tema do perdão. O desarmamento vem sendo discutido na sociedade brasileira pelo menos desde 1997. O Congresso aprovou o Estatuto de Desarmamento, que foi sancionado em dezembro de 2003. Em maio de 2005, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou a realização de um referendo sobre a comercialização de armas de fogo no Brasil, marcado para outubro desse mesmo ano.

Para o CDHEP, a aprovação do Estatuto foi um convite para priorizar a temática do desarmamento ao longo daquele ano. Organizou inúmeras oficinas em escolas e faculdades, com grupos ligados à saúde, educação popular, terceira idade, comunidades religiosas, entre outros. Aproveitou a oportunidade para apresentar as mudanças na lei, esclarecer sobre a possibilidade de entregar armas sem que a polícia pudesse fazer perguntas a respeito de sua procedência e preparar para a votação do referendo. Em geral, os grupos eram muito receptivos ao tema e se mostravam dispostos a refletir sobre o mesmo.

65 Sua missão é: formar e articular sujeitos sociais e processos políticos atuando na construção de uma

sociedade justa e solidária, de pleno exercício da cidadania, à luz dos princípios fundamentais dos Direitos Humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.

66 “Solidariedade, Mediação e Cidade: construindo alternativas para a paz e a justiça social no Rio de

Janeiro”, sob coordenação do sociólogo e padre Leonel Narváez e do psicólogo Jairo Diaz, de Bogotá, Colômbia.

Contudo, este clima mudou bruscamente após o início da campanha obrigatória na mídia. Em poucos dias, o que antes era um diálogo esclarecedor, converteu-se em argumentos de defesa de pontos de vista, um lado não querendo ouvir o outro. Cada vez mais, as falas se carregavam de emoção. De repente, não eram as armas que causavam medo, mas a possibilidade de proibir sua venda. Sob influência do pensamento liberal, o direito individual foi se tornando o argumento dominante em duas vertentes de direitos: não podemos proibir a liberdade/direito de comprar o que se quer ter; e não se pode negar o direito à legítima defesa. Até os adolescentes falavam em direito adquirido e que qualquer outra coisa seria um retrocesso.

O clima final de disputa era intolerante às reflexões sobre o potencial dos conflitos. Contudo, desde o início, percebeu-se que o desarmamento, a entrega de armas, era apenas uma pequena parcela de um trabalho muito mais amplo e demorado que deveria ser feito, dialogando com a cultura violenta e o autoritarismo estrutural brasileiro. O resultado do referendo foi o esperado, pois decidiu pela manutenção do comércio de armas e munição.

Quando nós, educadores do CDHEP, percebemos que o resultado ia ser a favor da continuidade do comércio de armas, sem nada mais a perder, retomamos a afirmação de Leonel Narváez, naquele seminário de 2002, baseado na experiência colombiana de desarmamento: “Não se pode desarmar uma nação, sem desarmar o coração.” (BOONEN, 2005).

Assim, começamos a inserir nas oficinas sobre o desarmamento, inicialmente de forma tímida, a questão do perdão. O receio era de não sermos entendidas e até sermos rechaçadas por ser um discurso considerado piedoso. Contudo, imediatamente, percebemos o silêncio dos grupos, a escuta profunda, sinalizando certa concordância, talvez não tanto com a possibilidade de perdoar, mas sim com a necessidade de aceitar o limite humano de errar. Não havia dúvida, estávamos pisando em um terreno profundamente humano, cuja necessidade estava sendo confirmada pelo balançar das cabeças e pelo silêncio.

A partir desta experiência, para mim estava claro que o perdão é uma necessidade humana, ainda que ausente da pauta pública. Talvez, de alguma forma, o perdão pudesse contribuir para interromper a reprodução da violência. No final de um destes encontros, após deter-me sobre a entrega de armas e o referendo sobre o comércio de armas para a sociedade civil, abordei brevemente o tema do perdão, no sentido de nos libertar e libertar outros de atos do passado. Terminado o encontro, um senhor, visivelmente impactado,

aproximou-se e disse: “Hoje você acaba de evitar uma desgraça. Eu ia fazer uma besteira. Ia matar alguém, mas, após ouvir sua colocação sobre o perdão, vou desistir. Faz tempo que estou planejando o que iria fazer esta noite e você me fez desistir. Obrigado.” Assim como aquele senhor ficou impressionado com minhas palavras sobre o perdão, eu fiquei com as dele que até hoje ressoam em mim.

4.1.2 Relação do CDHEP com a Justiça Restaurativa

Em 2004, participando do curso de mediação de conflitos na PUC de São Paulo, assistindo a aula do Dr. Daniel Issler, Juiz das Varas Especiais da Infância e da Juventude de Guarulhos, escutei pela primeira vez falar sobre o conceito de Justiça Restaurativa.

Em janeiro de 2005, durante o 3º Fórum Social Mundial em Porto Alegre, ouvi o Dr. Leoberto Brancher, Juiz de Direito e professor da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, em uma conferência junto com Marshall Rosemberg, criador da Comunicação Não Violenta (CNV). Posteriormente, em conversa particular, Dr. Brancher avaliou aquele momento como sendo o ponto zero da JR em Porto Alegre, pois foi aí que se estabeleceu a parceria com a Secretaria da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça.

No mesmo ano, alguns membros da equipe do CDHEP foram formados pela Escola de Perdão e Reconciliação (Espere) que também tratava dos conceitos de JR, embora ainda de maneira um tanto superficial. Em 2006, a equipe ofereceu um primeiro curso Espere.

Em 2007, Joanne Blaney, norte-americana, cientista política, mestra em educação e formação em mediação e práticas restaurativas nos Estados Unidos, juntou- se à equipe do CDHEP, que foi aprofundando os conceitos da JR e integrando-os de forma mais incisiva no programa do curso. Pouco a pouco, o círculo de interlocutores foi crescendo e a extensão do curso foi se configurando em 48 horas, a ser oferecido em diversas modalidades.

Trabalhando com os educadores de crianças e adolescentes, apareceu a necessidade de traduzir o conteúdo dos adultos para um público mirim. Criou-se uma equipe que foi desenvolvendo dinâmicas e ajustando textos. Durante dois anos, essa

equipe aplicou o material a diversos grupos de equipamentos socioeducativos. Organizou encontros mensais de supervisão e visitas para identificar as dificuldades, ao mesmo tempo em que refinava as dinâmicas e adaptava os processos de formação.

Em fins de 2009, foi possível publicar o livro didático68 Uma arte de viver e

conviver. Escola de Perdão e Reconciliação (BLANEY; BOONEN, 2009). Esta obra

oferece aos espaços educacionais os temas do perdão, da reconciliação e da JR, para ser um estímulo à reflexão e inspirar novas respostas aos velhos apelos do cotidiano da vida.

E ainda, em fins de 2009, como proponente junto à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) de Brasília, o CDHEP iniciou o projeto Novas Metodologias

de Justiça Restaurativa com Adolescentes e Jovens em conflito com a Lei, junto com as

Varas de Infância e Juventude de São Caetano do Sul e de São Paulo.

Os membros da equipe69 procuram participar das atividades formativas que aparecem, uma vez que a fomação em JR no Brasil ainda está muito restrita, e a maioria das atividades tem um caráter introdutório, o que já não é satisfatório para o atual conhecimento da equipe do CDHEP.

4.1.3 Público e interlocutores

Atendendo o convite da coordenação da Guarda Civil Metropolitana, o primeiro curso da Escola de Perdão e Reconciliação foi dado para a chefia e agentes da região Sul da cidade de São Paulo. Foi uma primeira experiência que nos confirmou ser perfeitamente possível propor vivências e reflexões a respeito destes temas.

68 Participaram, em vários momentos, desta elaboração: Ana Moraes Batista, Gessy Alves dos Santos,

Joanne Blaney, Martina Gonzalez, Priscila Dias Carlos, Rute Troleze da Silva, Sueli Maria Araújo.

69 Os espaços formativos que membros de equipe freqüentaram: I Seminário Internacional de Justiça

Restaurativa na Universidade do Grande ABC, São Paulo; I Seminário Brasileiro de Justiça Juvenil Restaurativa, em São Luís do Maranhão; Colóquio Internacional Brasil-Canadá “Justiça Restaurativa: Práticas do Norte e do Sul”, na Escola Paulista de Magistratura; Seminário Internacional “Justiça Restaurativa: da reflexão à ação. Experiências de aplicação em escolas, comunidades e no sistema prisional”; Curso Internacional “Círculos de Construção de Paz”, administrado pela Prof.ª Kay Pranis na Associação Palas Athena, São Paulo. Joanne Blaney fez o treinamento completo para capacitadores em JR do International Institute for Restorative Practices (IIRP), em Bethlehem, Pennsylvania, EUA, a primeira instituição no mundo com mestrado em Práticas Restaurativas. Também participou da 2ª Conferência Internacional de Práticas Restaurativas em Vancouver, Canadá (Simon Frazer University), onde fez a capacitação em intervenções com jovens em conflito com a lei (youth development and gangs: restorative circles).

Nos cursos seguintes, convidamos, principalmente, educadoras(es)70 de centros de crianças e adolescentes (CCAs), que atendem um público de 7 a 14 anos. A expectativa é de que apliquem este processo formativo em seus próprios equipamentos, o que, contudo, nem sempre acontece, por diversas razões: intensa rotatividade de funcionários em alguns equipamentos; ausência de educador substituto para liberar um educador para atividades-extras; falta de um espaço físico adequado em alguns centros. Até o final de 2010, 1.593 crianças e adolescentes de onze equipamentos socioeducativos da região sul da cidade e São Paulo percorreram o processo formativo da Espere.

Os educadores dos Núcleos de Proteção Psicossocial Especial71 (NPPE) que

acompanham jovens entre 12 e 21 anos em conflito com a lei era o segundo público de interesse do CDHEP. Alguns deles, após o curso Espere, intuindo sua importância, pediram supervisão para sua prática pedagógica, o que possibilitou ao CDHEP aprofundar algumas das partes teóricas do curso, principalmente as que abordam os temas correlatos à reconciliação/restauração.

E ao longo de 2010, junto com a Pastoral Carcerária Nacional, o CDHEP deu formação em Manaus, Porto Alegre, Recife e São Paulo. Foi uma oportunidade ímpar de disseminar os conceitos de JR, formando 125 agentes da pastoral carcerária, que são profissionais de diversas áreas de muitas cidades interioranas. Muitos desses ainda não conheciam a JR.

Além destes públicos focados (guarda civil, educadores e agentes da pastoral carcerária), há uma grande diversidade de participantes: donas de casa, aposentados, profissionais de ajuda (assistentes sociais, psicólogos), mas também professores e advogados. Também foram dados cursos ou palestras na Austrália, nos EUA, na Argentina e no Paraguai.

70 De 2007 até o final de 2010, 45 educadoras(es) de CCAs da região fizeram a Espere.

71 Até o final de 2010, o CDHEP formou 52 educadores de NPPEs da zona Sul e profissionais da área de