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Em relação à psicanálise

2.4 O desenvolvimento da Justiça Restaurativa

2.4.4 Em relação à psicanálise

A abordagem psicanalítica nas práticas de JR parece muito interessante e importante e talvez receba ainda pouca atenção no Brasil. Endo (2008), que está começando a fazer esta reflexão, afirma que os círculos restaurativos constituem um procedimento, longo e trabalhoso, nos quais podem ser identificados os processos constitutivos e inconscientes que fazem perdurar a dicotomia entre vítimas e agressores. Ao promover e provocar o encontro entre vítima e agressor, o círculo restaurativo pode ser o início do processo, um perturbador desta dicotomia que o direito penal, no limite, consagra quando impõe que aquele que agrediu seja também agredido, penalizado ou violentado. A JR recoloca o potencial agressivo agora nas mãos da vítima. Todos os participantes do processo, de alguma forma, são corresponsáveis de, através do

ambiente linguageiro, reconduzir os ideais culturalmente cristalizados de vingança,

retaliação e violência a novos patamares.

A psicanalista alemã, Svenja Taubner (2008), parte do pressuposto de que o comportamento criminoso é fruto de um fracasso no processo de desenvolvimento individual e que, em muitos casos, falta uma capacidade de introspecção referente à culpa. Frente a esta incapacidade de culpa, no sentido psicológico, a punição, ao invés de ser integrativa, constitui mais um dano para o indivíduo em questão, reforçando a desintegração psíquica ou social e convertendo-se em um potencial provocador de nova violência. No caso de infratores violentos, é extremamente importante discernir que tipo de sanção aplicar, para evitar e/ou reduzir futuras violências. Esta distinção é ainda mais importante em casos de infratores adolescentes e jovens, pois um comportamento violento pode marcar o desenvolvimento de uma personalidade danificada ou pode converter-se num processo de desenvolvimento favorável através de uma intervenção psicoterapêutica e pedagógica.

A partir da prática psicanalítica, a autora considera ser pouco provável que a simples confrontação do ofensor com seu ato seja capaz de favorecer a compreensão. Antes, trata-se de fazer a conexão entre o fato, a introspecção e a possibilidade desta ser uma prevenção para a violência. A parcialidade dos envolvidos, sua pouca clareza ou até incerteza sobre os fatos e suas resistências não são impedimentos, mas partes constituintes do processo, a serem superados através de conhecimentos baseados em psicologia. Mais do que impor proibições, o desafio é entender o comportamento dos

jovens e ajudá-los a abrir o espaço interior para se olharem, possibilitando uma maior elaboração e identificação de suas motivações. Contudo, este caminho necessita de tempo para alcançar mudanças estruturais mais profundas. É importante o estabelecimento do vínculo, possibilitando um contato voluntário do jovem com o facilitador, uma relação de confiança que tem um potencial transformador. Ao longo deste processo, é também possível identificar os casos de estrutura deficiente de personalidade, que não se encaixam na delinquência juvenil passageira e necessitam de outro tipo de abordagem. Outro objetivo é a integração do ato criminoso, em sua dimensão social e psicológica, a restauração do dano, possibilitando ao ofensor uma reintegração na sociedade.

A arte da JR parece estar no confronto do ofensor com seu ato, para fazer aparecer os padrões de justificação e as contradições, e desconstruir estes padrões. A compreensão somente é possível se sustentada emocionalmente e conectada com a percepção e a sensibilidade dos envolvidos, sendo o resultado de um processo de uma estrutura dialógica. A exploração dos sentimentos e pensamentos sobre um conflito é o caminho apropriado para influenciar positivamente a capacidade de compreensão dos jovens. E o reconhecimento das emoções alheias pressupõe uma relativização e uma reavaliação das próprias.

Um bom procedimento parece ser capaz de ultrapassar a superficialidade dos fatos, fazendo aparecer, de forma visível e sensível, os danos e as perdas das vítimas e os motivos do perpetrador. A consequência é o fortalecimento da vítima e uma compreensão do próprio comportamento por parte do agressor, sua responsabilização pelos seus atos, o que pode levar a uma mudança comportamental. O encontro com a dor da vítima pode despertar nos jovens processos que favorecem o aparecimento de uma sensibilidade social e um desenvolvimento moral.

Este conceito de compreensão ou introspecção é promovido através da experiência, e não através de um ensinamento. Isso permite aos agressores se sentirem mais livres de culpa e terem maior compreensão das consequências de seus atos, abrindo a possibilidade de elaborar o fato. Os efeitos de ressocialização e desistência do mundo do crime estão ligados ao conceito da compreensão. A competência reflexiva é avaliada como condição para alcançar a compreensão, ainda que os diversos tipos de personalidade aproveitem, de forma diferente, dos procedimentos da JR. Estes pedem um grau de ajustamento e submissão que uma personalidade mais autônoma dificilmente é capaz de aceitar. Ao mesmo tempo, o processo de JR pode criar uma

situação de “forced compliance”, um consentimento ou cumprimento forçado (TAUBNER, 2008, p. 285), o que está em oposição aos ideais da JR. Na visão subjetiva dos ofensores, somente lhes resta a possibilidade de ajustar-se às exigências estruturais do processo, o que significa consentir com a oposição ofensor-vítima, reconhecer-se autor do ato criminal, mostrar arrependimento e dispor-se para a restauração.

Taubner está mais preocupada com o ofensor e sua introspecção, enquanto Endo (2008) está mais focado no trabalho da vítima com sua dor, intransferível, que, no limite, funda o território do irreparável. Esta dor se torna mais leve se livre de culpa e do imperativo da vingança, livre da obrigação de ter de eliminar aquele que ofendeu, magoou ou feriu.

Creio que exista, entre psicanálise e JR, um campo a ser explorado, que certamente beneficiará a instauração da justiça justa para todos os envolvidos em relações de crimes e ofensas.