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CONSENSO: NOÇÕES BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E ECOCÊNTRICA

4.2 A ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: CARACTERÍSTICAS BÁSICAS

A ética antropocêntrica vincula-se às relações existentes entre os homens e a

Natureza em geral, com a preocupação exclusiva de satisfação das necessidades humanas; avalia as políticas ambientais com observância na forma como elas afetam os seres humanos.

Por exemplo, na avaliação ética antropocêntrica da conduta de exploração de recursos naturais, tal como a exploração de minerais em florestas onde vivem tribos indígenas, levar-se-á em conta todos os seres humanos envolvidos, incluindo os índios, os produtores, consumidores e usufrutuários da floresta que serão beneficiados ou prejudicados pela exploração mineral. Não são levados em consideração os animais e os vegetais lá existentes como atores, também, prejudicados por essa exploração.

Deve-se destacar, por outro lado, que a ética antropocêntrica, em si, já ampara e protege o meio ambiente, requerendo, em muitos casos, mais proteção ambiental do que a existente atualmente. O grau de proteção ambiental, nessa ótica, mostra-se relevante e presente e é, pois, crítico à situação de degradação vigente.

A destruição indiscriminada dos recursos naturais e a modificação de destinação de áreas naturais em áreas agrícolas ou urbanas, por exemplo para a ética antropocêntrica, são práticas reprováveis, pois, muitas vezes, ocasionam aumento dos malefícios em detrimento

dos benefícios para os homens em geral, principalmente quando as gerações humanas

futuras são lembradas.

Ainda assim, muitos ambientalistas verificam que a ética antropocêntrica é insatisfatória, porque ela não reconhece o direito das outras espécies de compartilhar o planeta. Além disso, a ética antropocêntrica considera, de forma reducionista, somente o valor da Natureza para os seres humanos.

A ética ecocêntrica procura corrigir essas deficiências, permitindo atribuirem-se

valores para criaturas não-humanas. Os homens têm direito sobre o meio ambiente;

entretanto, não se pode esquecer que as outras espécies também o têm. O espectro de atores sociais é alargado, com a correspondente dificuldade para a busca do consenso.

No caso apresentado anteriormente referente à exploração mineral em uma floresta, deveriam ser levados em conta não só a população indígena, os produtores e consumidores, como também as espécies animais e vegetais que serão notoriamente prejudicadas pela extração do minério (BARKDULL, 2000, p. 362).

Assim, mesmo que a não utilização do minério acarrete problemas no desenvolvimento de uma determinada cidade (desemprego, falta de lazer, falta de recursos financeiros), isto não cancela a prerrogativa ética dos animais de potencialmente continuarem a viver no seu habitat.

A divergência doutrinária sobre o pressuposto de que só os animais (almas sensitivas e motoras) têm essa prerrogativa de respeito ao seu meio ambiente ou se os vegetais (almas vegetativas) também o têm, varia de acordo com as diversas subteorias da corrente ecocêntrica.56

Todas as subteorias ecocêntricas, entretanto, consideram que os animais (dando-se destaque às suas almas sensitivas) têm certos interesses essenciais (notadamente à vida e à

integridade física) por serem criaturas capazes de sentir emoções e dor.

O conceito é rejeição implícita ao antropocentrismo corporificado, por exemplo, na

doutrina dualista ("animal-máquina") de Descartes,57 que afasta a possibilidade de os animais poderem ter "interesses" que os humanos devam respeitar.

Do ponto de vista filosófico, a questão dos direitos dos animais encontra raízes na teoria utilitarista de Bentham (apud SINGER, 1994, p. 83),que postulava no sentido de que, embora possam divergir do interesse do ser humano, os interesses dos animais devem ser igualmente respeitados.

Montaigne (2000, p. 369), ao discordar da relação de parentesco entre os animais e os homens, salienta, entretanto, ao tratar da crueldade, que:

Mas, ainda que tudo isso seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito , não somente pelos animais, mas também por tudo o que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens, devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede. Assim, também baseia-se na convicção de que os animais são seres sensitivos capazes de sofrer e de que há obrigações recíprocas entre homens e animais. Logo, os animais são fins em si mesmos (seres principais), e não simples meios (seres acessórios) para fins determinados pelo homem.58

Esses princípios foram expressos, mais recentemente, pelo filósofo australiano Singer (1991) em Animal Liberation.

56

Para a “deep ecology” de Arne Naess e para a “Teoria de Gaia” de Lovelock, todos os entes animados e inanimados possuem tais “direitos” e para algumas correntes protetivas dos animais (almas sensitivas), tal como a defendida por Peter Singer e Tom Regan, só os animais por sentirem dor possuem.

57

A filosofia cartesiana do dualismo distinguia estritamente entre espírito e matéria como duas espécies distintas de substância, a que pensa e raciocina e a que simplesmente ocupa espaço. Segundo Descartes, os

animais pertenciam à segunda categoria, eram objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer tipo de pensamento. A idéia de classes de substâncias mutuamente exclusivas deu origem ao problema corpo/espírito humano: como poderiam os dois interagir? A resposta de Descartes era que os dois se uniam

na glândula píneal do cérebro.

58

Ilustrativa a retrospectiva de Montaigne (2000, p. 369-370) sobre os povos e o cuidado com os animais: “Os turcos possuem estabelecimentos em que recolhem os animais e hospitais em que os tratam. Os romanos alimentavam a expensas do tesouro os gansos que tinham salvo o Capitólio. Os atenienses haviam decidido que as mulas e os burros empregados na construção do templo de Hecatompedon seriam deixados em liberdade e pastariam onde quisessem sem que ninguém os pudesse impedir. Os agrigentinos tinham por costume corrente enterrar cerimoniosamente os animais queridos, cavalos dotados de alguma qualidade rara, cães e pássaros úteis ou simplesmente divertidos [...]”

Para Singer (1991, p. 5), o “princípio da igualdade” (na sua concepção de não

discriminação) dos seres não se restringe aos humanos; trata-se de obrigação de como

devem se tratar os seres em geral como merecedores de iguais preocupações.

Exemplificando, Singer (1991, p. 7) afirma que constitui uma conseqüência do princípio da igualdade o fato de que devemos nos preocupar com os outros, considerando os seus interesses independentemente das habilidades ou de como eles são, devendo ter “interesses” todos aqueles que possuam a capacidade de sofrer. Da mesma maneira, que não deve haver racismo nem discriminação em função do sexo, não deve haver “speciescism”.59

Os interesses dos seres sensitivos (humanos ou não-humanos (animais)) devem ser sempre considerados. Portanto, o que está sujeito a variações são os tipos de interesses que devem ser considerados. Exemplificando, Singer (1991, p. 5-7) comenta que, para as crianças de certa idade, a educação para a leitura constitui interesse a ser alcançado; para o bem-estar dos porcos, entretanto, basta que fiquem com os outros porcos em local adequado e com comida para poderem viver livremente (“direitos” de liberdade).

Em resumo, para Singer (1991, p. 9) há paralelo entre o racismo, a discriminação

sexual e o antropocentrismo,por isso sua obra está centrada na “libertação dos animais da

dominação humana”:

Os racistas violam o princípio da igualdade ao darem maior peso aos interesses dos homens da sua própria raça quando em choque com os interesses dos de outra raça. As pessoas que discriminam os outros pelo sexo violam o princípio da igualdade por favorecerem os interesses do seu próprio sexo. De forma análoga, os antropocêntricos permitem que os interesses da sua própria espécie suprimam os interesses fundamentais dos membros das outras espécies. O paradigma de comportamento, portanto, é o mesmo.

Assim, a visão ecocêntrica ampara os defensores dos “direitos” dos animais a oporem-se à exploração e ao abuso de animais em condutas tais como: a vivissecção, a criação para abate e o entretenimento em circos e rodeios.

Nesse sentido, Singer (1994) afirma que o uso de animais em experiências clínicas e em testes de produtos constitui contradição lógica: julgamos aceitável sujeitar os animais a experiências dolorosas que não infligiríamos aos seres humanos porque os animais não são iguais a nós, mas, por outro lado, consideramos essas experiências cientificamente válidas porque os animais são iguais a nós. 60

A doutrina dos interesses dos animais tem, pois, relação umbilical com os movimentos ambientalistas e com a macroética da responsabilidade de Apel e Jonas, que afirmam que a superioridade intelectual humana e o domínio da tecnologia, apesar de nos

59

No primeiro capítulo de sua obra “All animals are equal...”, o autor desenvolve a argumentação de que o princípio moral da igualdade necessita ser estendido aos animais. Utilizando-se de argumentos de Thomas Jefferson e Bentham sobre a necessidade de respeito a liberdade das pessoas independente de seus talentos ou de suas características, esse filósofo australiano contemporâneo afirma que : “a capacidade de sofrimento é a característica fundamental que fornece a um ser o direito de ser tratado com consideração”, com respeito a determinados direitos inalienáveis. Desse modo, os animais, pelo menos, teriam direitos de primeira geração (vida, liberdade e respeito a sua integridade física) (SINGER, 1991, p. 7).

60

“[...] pois os que fazem tais experiências quase sempre tentam justificar a sua realização com animais com a alegação de que as experiências nos levam a descobertas sobre os seres humanos; se assim for, essas pessoas devem concordar com a afirmação de que os seres humanos e os animais são semelhantes em aspectos

proporcionarem a capacidade de explorar o mundo natural, não nos dão o direito de fazê-lo de forma indiscriminada.

Assim, não há dúvida de que a teoria ecocêntrica seja mais exigente quanto ao grau de proteção do meio ambiente, quando comparada com a teoria antropocêntrica.

Deve-se destacar, também, que alguns autores mencionam a existência de terceira teoria – a teoria biocêntrica (BARKDULL, 2000, p. 362-363).

A diferença entre a teoria ecocêntrica stricto sensu e a biocêntrica está na colocação de uma ética que vincula-se só aos seres animados (vegetais e animais) – teoria ecocêntrica

strito sensu, em contraposição a uma concepção, mais ampla, que vincula todos os entes

físicos e biológicos, sejam eles entes inanimados ou seres animados, sejam vistos como um todo (teoria de Gaia) ou isoladamente – teoria biocêntrica (BARKDULL, 2000, p. 362-363).

No âmbito deste trabalho, adotar-se-á classificação binária, estando a teoria biocêntrica contida na teoria ecocêntrica, aqui utilizada lato sensu em oposição à visão antropocêntrica.

5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO

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