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CONSENSO: NOÇÕES BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E ECOCÊNTRICA

5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO EVOLUCIONISMO

5.2 ALGUMAS OBJEÇÕES AO DUALISMO ANTERIORES E POSTERIORES À DESCARTES

A objeção tradicional ao dualismo - considerando que duas espécies de realidade de ordens completamente distintas não devem conseguir se comunicar ou interagir, gerou diversas reações contrárias, sejam anteriores a Descartes, sejam posteriores a ele.

Aristóteles já postulava que forma e matéria se unem na substância. Ao contrário de Platão, que poderia ser enquadrado como dualista, como bem destaca sua “Alegoria da Caverna”, na qual haveria dois mundos: um real e outro fictício (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 53).

Aristóteles tentava classificar tudo o que há no universo em categorias, sendo a

substância a primeira categoria. Enquanto Platão via a matéria como representação

imperfeita das formas ideais, Aristóteles postulava o hilomorfismo (forma e matéria unindo- se na esfera terrestre para formar a substância). Por exemplo, a "forma" do corpo humano material é a alma; corpo e alma, juntos, configuram um ser vivo. Aristóteles também classificou os seres segundo seus atributos comuns e suas qualidades distintivas; os seres humanos, por exemplo, são animais, que se distinguem dos outros animais pela faculdade da razão.

Um dos problemas da teoria das formas ideais de Platão era o de que os objetos naturais crescem e se modificam, razão por que não eram imutáveis. Aristóteles, procurando superar a doutrina platônica e explicar a mutação sofrida pelas substâncias, trabalha com a noção de potência. Afirma, por exemplo, que a semente do carvalho não é um carvalho maduro, mas contém o potencial de tornar-se um carvalho completo.

A forma, portanto, seria o teor inato de alguma coisa, que evolui até atingir seu potencial completo por meio da enteléquia, a realização do potencial inato (o carvalho maduro), ou por meio de atos de um agente: a árvore é, em potência, uma pilha de tábuas que poderá ser uma embarcação.

A idéia de potência está vinculada à identificação aristotélica de quatro causas:

material (matéria), formal (forma), eficiente (ação) e final (finalidade). A causa eficiente é o motor que a leva à "causa final", aquilo a que o ser se destinava - o crescimento de uma

semente até se transformar em uma árvore adulta. Nesse complexo de relações de causas e efeitos, Aristóteles conclui que deve haver um "Primeiro Motor", uma "causa não-causada" que é pura forma totalmente realizada: Deus.

Para Solomon; Higgins (1996, p. 68), Platão e Aristóteles, com suas idéias e estilos distintos, influenciaram toda a filosofia ocidental. Na filosofia cristã, por exemplo, Agostinho seguiria Platão, já Tomás de Aquino seria discípulo de Aristóteles. Nos tempos modernos, os “racionalistas” seriam platônicos, na busca da razão como instrumento metafísico por excelência; os “empiristas” seguiriam Aristóteles, o cientista, o observador atento, sempre pronto para um novo repensar da realidade.

Spinoza (apud HAMLYN, 1990), nesse diapasão também, refuta o dualismo; em sua teoria do monismo, expande as colocações aristotélicas, não obstante, também, nela se baseie.65

Em sua obra mais importante, a Ética, imaginava o mundo como expressão de uma única substância, que identificava como Deus ou natureza. Considerava, pois, que Deus e tudo são uma coisa só, em outras palavras “Deus é tudo e tudo é Deus”.

Embora unitária, a substância (Deus) tem infinidade de atributos dos quais só conseguimos perceber dois, espírito e matéria (pensamento e “extensão”), duplos aspectos da substância universal (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 186).

Para Rosen (apud SPINOZA 1987, p. 456), faz-se o estudo da estrutura da substância, e a conseqüente relação entre a existência humana e a ordem eterna.

A consideração de Spinoza, de que o mundo expressa uma única substância tem reflexos na ética ecocêntrica, notadamente na “hipótese de Gaia”, expressão holística da ética ambiental.

Kant, ao tratar dos deveres dos homens para com os animais, mesmo adotando posição stricto sensu antropocêntrica de que os animais são meros instrumentos e não fins em si mesmo, afirma que a natureza animal pode ser análoga à natureza humana e, cumprindo nossos deveres com os animais, indiretamente cumpriremos nossos deveres com a

humanidade.

Assim, se um homem atira em um cachorro pelo simples fato de que este animal não é mais capaz de servi-lo, ele não fere diretamente um dever para com o animal (que não deve ser considerado moralmente, pela sua incapacidade de universalizar situações concretas, na terminologia kantiana não é um “ser moralmente racional”), entretanto, seu ato é desumano e provoca dano nele mesmo, pois tal conduta é lesiva para a humanidade. Nossos deveres para com os animais, indiretamente são deveres para com a humanidade, pois a maneira como os tratamos pode ser descaracterizada como favorável à humanidade, não podendo ser realizada à luz do imperativo categórico (KANT, 1997, p. 313).

Singer (1991, p. 10-11) critica, também, a visão de Descartes de que o animal é um autômato, um robô, uma máquina. Afirma que, se o cachorro, sem anestesia, for apunhalado no estômago, sentirá dor. Procura, em seguida, demonstrar que sentir dor “não é privilégio” da espécie humana, demonstrando que, não obstante seja uma experiência particular (“pain is

a state of consciouness”), pode-se inferir tal experiência de outros seres por inúmeras

indicações externas, tais como as demonstradas por outros seres humanos e outros animais. Assim, afirma que a dúvida da existência de dor dos animais reside na mesma razão que nos permitiria ter dúvida da dor entre outros seres humanos, verbis:

De forma aproximada, todos os sinais externos que levam-nos a deduzir que outros seres humanos sintam dor podem ser vistos em outras espécies, principalmente as espécies mais próximas da nossa – as espécies dos mamíferos e das aves. Os sinais de comportamento incluem estocergar-se, contorcer seu rosto, gemer, ganir ou outras formas de chamar atenção para evitar a fonte da dor, ter medo da repetição da dor e assim por diante (SINGER, 1991, p. 11).

o espírito e a matéria são atributos de um única substância universal. “Spinoza é um completo monista no sentido em que admite a existência de apenas uma substância, uma única causa de si mesma que é a causa de tudo mais, na qual tudo mais é meramente uma modificação ou atributo dessa substância. A substância única é também infinita, com atributos e modificações infinitos. Não é de surpreender que a ela seja dado o nome de Deus”.

Tratando da filosofia do pragmatista Dewey e da noção de experiência e

pensamento reflexivo, GEORGE RÊGO, professor da UFPE, afirma que a filosofia

pragmatista, também, mostra-se contrária ao dualismo cartesiano:

[...] aliás, não há na filosofia de Dewey dualismos ou descontinuidades que estratifiquem conceitos, promovam cisões entre sujeito x objeto, separem homem x natureza. A filosofia Deweyana é um tipo de pan-naturalismo, análogo sob muitos aspectos, ao pan- logicismo hegeliano [...] E o conhecimento humano, desde suas estruturas mais incipientes até suas formas mais críticas e sofisticadas, é uma contínua tentativa em direção ao rompimento das hostilidades da natureza, tornando as experiências humanas mais estáveis e mais seguras (RÊGO, 2001, p. 120).

Hickman (1996, p. 51), analisando a diferença entre seres humanos e o resto da Natureza para Dewey, afirma que a diferença entre o homem e os animais não se relaciona

à comunicação como uma habilidade exclusiva da espécie humana, mas sim, que os homens são os únicos seres com capacidade de controlar o seu habitat.

Dewey (1958, p. 420), na sua filosofia pragmática, possui uma abordagem naturalística da relação do homem com a natureza como um todo, terminando com o isolamento do homem que passa a ser visto dentro da natureza. Nesta concepção, o homem é

parte da natureza, perdendo sentido a diferenciação cartesiana, verbis:

A fidelidade à natureza a que pertencemos como partes, embora fracas, exige que acalentemos os nossos desejos e ideais até termos submetido os mesmos à prova da inteligência, examinando os meios e modos pelos quais a natureza torna possível realizá-los (grifo nosso).

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