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A RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA: EVOLUÇÃO DE SUJEITO PASSIVO PARA ATIVO

1 O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA

1.1 A RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA: EVOLUÇÃO DE SUJEITO PASSIVO PARA ATIVO

1.1.1 A modificação do meio ambiente: evolução

Conforme destaca Carson (1994, p. XV), a história da vida na Terra caraterizou-se sempre pela interação entre os seres vivos e o seu ambiente. Entretanto, somente a partir do século XX, uma das espécies – o ser humano – adquiriu tamanho poder de modificar o meio ambiente.21

Do mesmo modo, Thomas (1988, p. 21-25), ao tratar da visão inglesa da Natureza nas dinastias dos Tudor (1485-1603) e Stuart (1603-1714), séculos XV e XVIII, ressaltava a absoluta superioridade do homem em relação aos outros seres animados e inanimados, o que fundamentaria a sua relação de senhor da natureza, destacando:

[...] a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades [...] A natureza não fez nada em vão, disse Aristóteles, e tudo teve um propósito. As plantas foram criadas para o bem dos animais e esses para o bem dos homens. Os animais domésticos existiam para labutar, os selvagens para serem caçados

[...] Os vegetais e minerais eram considerados da mesma maneira, Henry More pensava que seu único propósito era estender a vida humana. Sem a madeira, as casas dos homens não passariam de “uma espécie maior de colméias ou ninhos construída de gravetos e palha desprezíveis e de imunda argamassa”; sem os metais, os homens teriam sido privados da “glória e pompa” da batalha, ferida com espadas, armas e trombetas; em vez disso, haveria somente “os uivos e brados de homens pobres e nus espancando-se uns aos outros [...] com porretes, ou brigando tolamente aos murros” Até mesmo as ervas daninhas e os venenos tinham seus usos essenciais, notava um herbanário: exercitavam “o engenho humano em eliminá-los [...] Não tivesse ele nada contra que lutar e o lume de seu espírito estaria em parte extinto.

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Neste livro, considerado um clássico da proteção ambiental norte-americana e mundial pela novidade de sua abordagem protetiva da natureza, publicação original (1962), a autora retrata, de forma detalhada e poética, a destruição da natureza pelo homem. Na sua edição mais recente, o, então, Vice-presidente Al Gore, em emotiva e exaltadora introdução à autora, destaca que: “Writing about Silent Spring is a humbling experience for an elected official, because Rachel Carson’s landmark book offers undeniable proof that the power of an idea can be far greater than the power of politicians. In 1962, when Silent Spring was first published, ´environment´ was not even an entry in the vocabulary of public policy. In a few cities, especially Los Angeles, smog had become a cause of concern [...] Silent Spring came as a cry in the wilderness, a deeply felt, throughly researched, and brilliantly written argument that change the course of history” (CARLSON, 1994, p. XV).

Entretanto, a relação do homem com a natureza modificou-se ao longo da sua existência. Durante milhares de anos, desde a Pré-história até o Período Neolítico, a relação entre o Homem e o meio ambiente que o rodeava caracterizou-se pela resignação do Homem aos fenômenos naturais.22

Havia passividade do ser humano com relação à natureza. Os principais problemas ambientais com os quais o Homem se defrontava, eram as catástrofes naturais, como tempestades, terremotos ou inundações, a que estava sujeito e que via suceder incompreensível e incontrolavelmente.

A força dos fenômenos naturais inspirou no Homem um temor reverencial profundo pelas manifestações da Natureza, por não conseguir explicá-las a contento.

Conforme afirma Aragão (1997, p. 17) “Numa tentativa de compreensão, antropomorfizou os elementos naturais que o rodeavam e transformou as suas manifestações em ‘estados de espírito’ da Natureza”.

Na evolução da interação entre homem e natureza, grande marco foi a capacidade humana de lidar com o fogo. Constituiu mecanismo de atuação do homem sobre a natureza para moldá-la em seu benefício. Também foi a primeira extração química de energia. 23

Outro passo evolutivo relevante foi a prática agrícola, em que ocorre, talvez, a mais expressiva modificação da situação de passividade do homem em relação à natureza. Nesse sentido, Roberts (2000, p. 17) ensina:

Os primeiros assentamentos agrícolas tiveram vida curta; os primeiros lavradores talvez ainda fossem cultivadores razoavelmente instáveis e talvez praticassem a chamada agricultura do “corta e queima” [...] Escolhe-se uma área de floresta (é provável que o solo seja bom por causa do húmus acumulado pelas folhas e pelos detritos decompostos) e as árvores são abatidas a corte [...] Depois de alguns anos a vegetação rasteira torna-se novamente espessa demais [...] Durante muito tempo toda a agricultura foi feita assim.

Observa-se, também, que a origem da agricultura ocorre junto com a domesticação de animais; é atribuída ao período neolítico, indicando afastamento da vida nômade do caçador-coletor. Está associada à vida sedentária, ao desenvolvimento dos assentamentos permanentes e à aparição dos primeiros recipientes de barro para cozinhar e armazenar alimentos (MORAES, 1996, v. 1, p. 45).

Contudo, à medida que o Homem foi adquirindo conhecimentos científicos, que lhe permitiam explicar a complexidade dos fenômenos naturais do meio ambiente, foi perdendo o respeito religioso pela Natureza. Os meios técnicos que dominava, contudo, eram ainda escassos e demasiadadamente rudimentares para que conseguisse vencer a Natureza, controlá- la ou pô-la ao seu serviço.

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“Esse seria o panorama dominante até o Neolítico, durante o qual o homem se tornou sedentário e passou a se dedicar à agricultura. Começaram, então, a ser mais diferenciadas e especializadas as funções” (MORAES, 1996, p. 45). No mesmo sentido, Huberman (1986, p. 3), ressalta que a estratificação social de funções torna- se possível com a agricultura: “Também alguém tinha que fornecer alimentação e vestuário para os clérigos e padres que pregavam, enquanto os cavaleiros lutavam. Além desses pregadores e lutadores existia, na Idade Média, um outro grupo: os trabalhadores”.

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“Imediatamente significou calor e luz, a conquista do frio e da escuridão [...]. As famílias podiam sobreviver mais do que antes em regiões mais frias e podiam habitar zonas temperadas com um pouco mais de

Conforme enfatiza Jonas (1995, p. 26), em visão integradora da civilização, da urbanização e da ação humana no meio ambiente:

[...] el hombre construye uma morada para su propria humanidad, a saber: el artefacto de la ciudad. La profanación de la natureza y la civilización de sí mismo van juntas. Ambas se rebelan contra los elementos; la primera, por cuanto em el refugio de la ciudad y sus leyes erige um enclave contra ellos. El hombre es el creador de su vida como vida humana; somete las circunstancias a su voluntad y necesidades y, excepto ante la muerte, nunca se encuentra inerme.

Inicia-se já entretanto, o uso econômico dos bens da natureza que, inclusive, apresentavam-se como instrumentos de troca, conforme ensina Gilissen (1986, p 44):

Os bens de consumo corrente, sobretudo os alimentos, parece terem sido alienados relativamente cedo, mas sobretudo sob a forma de troca, uma vez que a moeda ainda não existia. Certas formas entre as mais curiosas são o comércio dito “mudo” e o potlach.

No comércio mudo, um grupo depõe num dado lugar, em que sabe que outro grupo passará os bens que deseja trocar, e depois abandona o lugar; o outro grupo examina o que lhe é oferecido, põe outras mercadorias ao lado, e depois retira-se [...].

O potlach, conhecido sobretudo dos Índios da América, mas também dos Berberes, e sob o nome de Kula entre ao Polinésios, é a dádiva pública e ostentatória de bens, de riquezas, ou até escravos, por um grupo a outro. É uma espécie de desafio, porque o outro não pode recusar; ele deve reagir aceitando, e entregando ao primeiro grupo de bens do valor pelo menos igual. A operação está assim impregnada de um certo misticismo, ligando as coisas aos homens e, ao mesmo tempo, de uma certa ostentação de poder sem obrigar ao combate. Até a Revolução Industrial, a utilização econômica dos recursos naturais não conduziu à exaustão os recursos finitos e manteve a capacidade de auto-regeneração dos recursos renováveis; também não gerou poluição. Porém, a passagem da economia de subsistência para a economia de mercado e o avanço verificado nos conhecimentos científicos e técnicos, após a Revolução Industrial, representaram salto qualitativo nos meios ao dispor do Homem para controlar e utilizar economicamente os recursos naturais. Dá-se crescimento exponencial da intensidade e da extensão de exploração econômica dos recursos ambientais.24 Para o homem, a Natureza é “reservatório de bens disponíveis”. No primeiro tratado sobre o governo, Locke (1998, p. 299) afirma que os homens têm direito, inclusive, à destruição da propriedade:

A propriedade, cuja origem se encontra no direito que tem o homem de utilizar qualquer uma das criaturas inferiores para a subsistência e conforto de sua vida, destina-se ao benefício e vantagem exclusiva do proprietário, de forma que este poderá até mesmo destruir, mediante o uso, aquilo de que é proprietário, quando o exija a necessidade [...] Para o homo economicus, surgido com o liberalismo, a Natureza é um bem comum, sujeito à apropriação pelo trabalho individual. No segundo tratado sobre o governo, Locke

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Pesquisa divulgada pela revista Science revela que as ações humanas contra o meio ambiente tem origem na Idade da Pedra. Os povos da antigüidade, portanto, antes da Revolução Industrial, já causavam expressiva degradação ambiental (AGRESSÃO À NATUREZA É ANTIGA, 2001, p. 17).

(1998, p. 409-410) afirma que os homens têm direito à própria preservação e a tudo quanto a natureza lhes fornece para a subsistência; por meio do trabalho, torna-se propriedade

privada daquele que a explora:

[...] Aquele que se alimenta das bolotas que apanha debaixo de um carvalho ou das maças que colhe nas árvores do bosque com certeza delas apropriou-se para si mesmo. Ninguém pode negar que o alimento lhe pertença. Pergunto então quando passou a pertencer-lhe: Quando o digeriu? Quando o comeu? Quando o ferveu? Quando o levou para casa? Ou quando o apanhou? Fica claro que, se o fato de colher o alimento não o fez dele, nada mais o faria. Aquele trabalho imprimiu uma distinção entre esses frutos e o comum, acrescentando- lhes algo mais do que a natureza, mãe comum de todos, fizera; desse modo, tornaram-se direito particular dele.

Destaca-se, pois, na visão de Locke, que a propriedade do comum torna-se privada com a exploração da natureza. Portanto, incentiva-se, por meio da exploração da natureza, a aquisição da propriedade de coisas até então comuns. O trabalho do homem permite o “toque de midas” na transformação do público (de todos) em privado.25

Ressaltando o marco da revolução industrial na história da proteção ambiental, Aragão (1997, p. 19-20) assinala:

Com a revolução industrial, os papéis inverteram-se e agora é a Natureza que carece de proteção contra a ação humana.

Os problemas ambientais com que o Homem moderno se defronta já não são as catástrofes naturais de outrora, mas os efeitos nefastos, e quantas vezes irreversíveis, que derivam de rupturas graves do equilíbrio ecológico pela acção do Homem.

Antecedendo à Revolução Industrial, na Inglaterra dos séculos XV e XVIII, havia uma série de justificativas para a superioridade humana em relação à Natureza; conforme bem descreve Thomas (1988, p. 37), a busca do atributo diferenciador do homem em relação aos outros seres foi um dos mais sérios desafios enfrentados pelos filósofos ocidentais:

Assim, o homem foi descrito como animal político (Aristóteles); animal que ri (Thomas Willis); animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund Burke); e um animal que cozinha (James Boswell, antecipando Lévi-Strauss). Como observa o Sr. Cranium do romancista Peacock, o homem já foi definido como bípede implume, como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um bastão. O que todas essas definições têm em comum é que assumem uma polaridade entre as categorias

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Nesse sentido, o revogado Código Civil (Lei nº 3.071, de 1o

de Janeiro de 1916) dispõe nos seus arts. 592 a 610 sobre a ocupação, modo originário de aquisição de propriedade móvel, dos quais a caça e a pesca são espécies. Sob tal direção, significativo o teor do art. 593, verbis: “São coisas sem dono e sujeitas à apropriação: I - os animais bravios, enquanto entregues à sua natural liberdade; II - os mansos e domesticados que não forem assinalados, se tiverem perdido o hábito de voltar ao lugar onde costumam recolher-se, salvo a hipótese do art. 596; III - os enxames de abelhas, anteriormente apropriados, se o dono da colmeia, a que pertenciam, os não reclamar imediatamente; IV - as pedras, conchas e outras substâncias minerais, vegetais ou animais arrojadas às praias pelo mar, se não apresentarem sinal de domínio anterior”. O Novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 1o de Janeiro de 2002) continua dispondo sobre a ocupação no art. 1.263: “Quem se

“homem” e “animal” e que invariavelmente encaram o animal como inferior.

A superioridade humana, também, pode ser inferida da obra de Locke (1998, p. 408- 409), ao expor que a pessoa humana tem o poder, por meio de elementos intrínsecos a ela (“trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos”), de transformar em próprio o que originariamente era de todos os homens:

Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade.

1.1.2 A mutação do conceito de natureza

Godard (1997, p. 248-253) ressalta a evolução dos conceitos de Natureza, em face do enfoque dos discursos econômicos e da proteção do meio-ambiente, demonstrando a íntima correlação entre a natureza e os sistemas econômicos, bem como a subordinação desta ao

Homem, notadamente com o sistema capitalista na visão de Natureza mercadoria e Natureza industrial:

• a Natureza mercadoria (a Natureza é protegida porque e na medida em que é fonte de mercadorias);

• a Natureza industrial (a Natureza é protegida porque e na medida em que é “útil e funcional”, prestando serviços à indústria);

• a Natureza cívica (a protecção da Natureza traduz-se em garantir o acesso a ela do maior número possível de cidadãos: estabelecer a igualdade fundamental dos cidadãos face à Natureza. A Natureza é valorizada por uma boa administração pública);

• a Natureza do renome (a Natureza só é protegida quando e na medida em que se encontre incorporada em figuras mobilizadas pelos mass media: um <<monumento>>, a <<paisagem>>, o <<turismo cultural>>, e sobretudo se estiver sujeita a ameaças de tipo <<catastrófico>>. A importância da Natureza depende dos índices de notoriedade demonstrados em sondagens de opinião);

• a Natureza inspirada (a Natureza é o meio simbólico de acesso ao que está para lá do Homem, e aquilo que põe limites à sua acção identificando-se muitas vezes com uma visão religiosa);

• a Natureza doméstica (a Natureza está organizada segundo a clivagem selvagem/doméstico segundo uma hierarquia de proximidade à “casa”, A Natureza é o suporte simbólico da identidade de um grupo social e traduz-se na categoria de <<patrimônio natural>>).

A classificação de Olivier (apud ARAGÃO 1997, p. 20) destaca que:

[...] a consciência social da importância dos problemas ambientais não foi imediata, também a reacção da própria comunidade científica, nomeadamente da Ciência Econômica, a este estado de coisas, foi diferida e paulatina.

1.2 A CONSCIENTIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE NO MUNDO

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