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CONSENSO: NOÇÕES BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E ECOCÊNTRICA

5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO EVOLUCIONISMO

5.1 O DUALISMO NA VISÃO DE ANIMAL-MÁQUINA DE DESCARTES

A afirmação de que o mundo se compõe geral e fundamentalmente de duas

substâncias, denominadas espírito e matéria - ou de que haja mundo físico e mundo espiritual

foi objeto de trabalho de Descartes na sua obra Discurso do Método e Meditações.

O dualismo teve sua primeira expressão na oposição entre o bem e o mal que servia de base ao mito da criação da religião de Zoroastro, fundada por volta de 1000 a.C. A batalha entre o bem e o mal, Deus e Satanás, aparece em muitas tradições religiosas. A seita maniqueísta, por exemplo, fundada na Pérsia do século II, encarava a existência como luta entre as trevas (o corrupto mundo material) e a luz (o reino espiritual), e os profetas religiosos como mensageiros enviados para libertar a luz, que estava aprisionada na matéria corrupta (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 100).

O choque entre o bem e o mal nas crenças religiosas é o paradigma da maioria dos sistemas filosóficos dualistas. O dualismo implica polaridade e conflito, e não dialética (a tese e a antítese não se amalgam na síntese).

Os dois lados geralmente estão em desequilíbrio; um deles, considerado superior ou mais "real" do que o outro, assim como mais difícil de compreensão; na opinião de Descartes, por exemplo, o reino do espírito é muito mais complexo e sutil do que o reino da matéria.

Em sua filosofia, Descartes dividiu a criação em duas essências: a res cogitans (“coisa pensante”), seres que têm a faculdade da razão e a res extensa (“coisa extensa”), os entes físicos do mundo denominados pela sua característica essencial de só ocuparem espaço. (COTTINGHAM, 1995, p. 139).

A filosofia cartesiana do dualismo, portanto, distinguia estritamente entre espírito e

matéria como duas espécies distintas de substância, a que pensa e raciocina e a que

simplesmente ocupa espaço. Segundo Descartes, os animais pertenciam à segunda

categoria; eram objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer tipo de pensamento,

comprovada pela inexistência de uma linguagem dos animais.61

A primeira obra de Descartes publicada foi o “Discurso sobre o método de bem conduzir a razão e buscar a verdade nas ciências”. Na Parte IV, cerne metafísico da sua obra, usual e resumidamente denominada “Discurso do Método”, Descartes relata a busca pelas bases de sistema de conhecimento confiável; contém o famoso enunciado “penso, logo existo” (na forma latina cogito ergo sum).

61

O termo “animal” relaciona-se etimologicamente ao termo latino anima (“alma”), havendo nele, portanto vestígios da idéia escolástica de que as criaturas vivas distinguem-se das coisas não-vivas por serem “animadas” ou dotadas de alma. Provêm, também, da concepção biblíca de que as coisas vivas são animadas pelo “sopro da vida”, bem como da biologia aristotélica que distinguia os seres em uma hierarquia de faculdades chamadas de “alma” (vegetativa, motriz, sensorial e racional). Aristóteles partia da crença comum aos gregos que a alma é o princípio da vida. A forma básica de vida seria encontrada nas plantas, que simplesmente se alimentam, crescem, se reproduzem e morrem (alma vegetativa). No caso dos animais haveria um algo mais, a capacidade de percepção sensorial (alma sensorial) e, em alguns, a de se movimentar (alma motirz). Nos seres humanos, manifesta-se tudo isso, mais a razão (alma racional). Assim, as coisas

Para nosso trabalho, entretanto, o conteúdo a ser analisado é a Parte V, que esboça as concepções de Descartes sobre a física e a cosmologia, discute o tema científico específico da

circulação do sangue e apresenta um argumento baseado na linguagem para distinção radical entre os seres humanos e os animais.

Na Parte V do Discurso do Método, Descartes imprime bastante ênfase à capacidade exclusivamente humana de combinar as palavras e constituir um discurso, verbis:

[...] se pode conhecer a diferença que há entre os homens e os animais. Pois é uma coisa fácil de se notar que não há homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar nem mesmo os dementes, que não sejam capazes de combinar diversas palavras e de com elas compor um discurso no qual possam expressar seus pensamentos; e que, pelo contrário, não há outro animal, por mais perfeito e bem nascido que seja, que faça o mesmo (DESCARTES, 1996, p. 64). Por outro lado, destaca que as emissões vocais dos animais não podem ser consideradas como verdadeira linguagem. Os sons por eles emitidos (mesmo no caso de animais que imitam a fala humana como os papagaios) não passam de resposta mecânica a determinado estímulo.62

A conclusão que Descartes retira dessa capacidade humana é a de que a linguagem é “sinal fidedigno” da presença de entidade totalmente imaterial em nosso interior – a alma

racional. 63

A linguagem destaca-se, pois, das concepções cartesianas de explicação mecanicista para outras características fisiológicas que aproximam os homens dos animais, tal como a

circulação do sangue.

Descartes dedica espaço na Parte V à descrição do “movimento do coração e das artérias”. Mostra que o funcionamento do coração e do sangue não tem nenhum conteúdo metafísico, como tem a linguagem que diferencia o homem (alma racional) dos animais (almas irracionais).64

Com efeito, no século subseqüente ao da morte de Descartes, os seus seguidores tornaram-se célebres pelo tratamento cruel que davam aos animais no curso da pesquisa experimental em fisiologia. O próprio Descartes, para chegar às conclusões sobre a

circulação do sangue, praticava a vivissecção com aparente serenidade (COTTINGHAM,

1995, p. 21).

62

“E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que expressam as paixões e podem ser imitados tanto pelas máquinas quanto pelos animais; nem pensar, como alguns autores antigos, que os animais falam, embora não entendamos sua linguagem. Pois, se fosse verdade, já que eles têm vários órgãos correspondentes aos nossos, poderiam fazer-se entender tanto por nós como por seus semelhantes” (DESCARTES, 1996, p. 65.)

63

“E isto não prova somente que os animais têm menos razão que os homens, mas que não têm absolutamente nenhuma. Pois vê-se que basta muito pouca razão para saber falar; e visto que se observa desigualdade tanto entre os animais de uma mesma espécie quanto entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que os outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, mesmo um dos mais perfeitos de sua espécie, se igualasse nisso a uma criança das mais estúpidas ou, pelo menos, a uma criança de cérebro perturbado, se a alma deles não fosse de uma natureza completamente diferente da natureza da nossa” (DESCARTES, 1996, p. 65).

64

“[...] quero adverti-los de que este movimento que acabo de explicar resulta tão necessariamente da simples disposição dos órgãos que podem ser vistos a olho nu no coração, e do calor que pode ser sentido com os dedos, e da natureza do sangue que pode ser conhecida por experiência, quanto o movimento do relógio

resulta da força, da situação e da configuração de seus contrapesos e rodas” (DESCARTES, 1996, p. 56–

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