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A METODOLOGIA ECOCÊNTRICA DA AUTOPOIESE DE MATURANA: O ORGANISMO E O AMBIENTE COMO INTERCONSTITUINTES

6 FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DE UMA ÉTICA ECOCÊNTRICA E A PERSONALIDADE JURÍDICA

6.3 A METODOLOGIA ECOCÊNTRICA DA AUTOPOIESE DE MATURANA: O ORGANISMO E O AMBIENTE COMO INTERCONSTITUINTES

A noção de autopoiesis constitui-se em elemento basilar para compreensão da teoria do biólogo chileno Maturana.

Autopoiesis (do grego poiein: gerar, produzir) conduz à caracterização dos seres

vivos em oposição aos não vivos.

A autopoiesis expressa a capacidade autônoma da vida de conduzir a própria preservação e desenvolvimento e, inclusive, de gerar a si própria (autoproduzir-se).

Maturana chegou ao conceito por volta de 1963, ao estabelecer a hipótese de que o DNA participa da síntese das proteínas do citoplasma da célula, ao mesmo tempo em que as proteínas participariam da síntese do RNA. Ou seja, as produções moleculares seriam

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O termo paradigma utilizado por Thomas Kuhn associa-se a sua teoria do progresso científico no livro “A estrutura das revoluções científicas (1962)”. Nele Kuhn (1994) refuta o conceito tradicional de conhecimento científico, interpreta o conhecimento científico como aquele fundamentado em paradigmas predominantes – teorias aceitas que expressam e confirmam certas opiniões estabelecidas. Kuhn nos dá um exemplo do paradigma de Ptolomeu do Universo, com a Terra no centro, circundada pelo Sol, pelos planetas e pelas estrelas, que prevaleceu durante séculos, até ser refutado por observações astronômicas e pela teoria heliocêntrica Copernicana do sistema solar. O progresso científico, segundo Kuhn, não é incremental, mas

progride em saltos por meio da mudança de paradigma, quando um paradigma é superado e substituído por outro. Assim, quando uma teoria se depara com inúmeras anomalias, as teorias concorrentes

ganham estatura e a superam, o que promove o progresso científico porque proporciona uma plataforma para novos métodos de pesquisa.

processo circular e recorrente. Em outras palavras, o que a célula produz é, justamente, o que produz a célula; ou, ainda, não apenas as células reproduzem-se, mas reproduzem também a própria capacidade de reproduzir-se. Algo não vivo, fruto do engenho humano, como a fábrica, por exemplo, é produzido por algo externo a si (materiais trazidos pelo homem) e produz coisas que serão também utilizadas externamente (mercadorias destinadas ao consumo de outros seres).83

Formulação mais consistente da autopoiese surgiu ao longo dos estudos sobre a percepção visual das cores, quando Maturana procurou compreender a atividade das células da retina em termos da percepção da cor pelo sistema nervoso, ao indagar como se poderia correlacionar a atividade da retina com o nome da cor. Verificou que a diferentes estímulos espectrais (“azul claro”, “azul marinho”, “azul escuro”) havia a mesma identificação de cor (azul). Assim, verificou-se haver aparente desvinculação da atividade das células do estímulo cromático exterior (porque então já se sabia que o sistema nervoso acaba por atribuir idêntica percepção, ou seja, idêntico "nome" para a cor, quando estimulado por situações espectrais bastante diversas. O que seria, então, o nome dessa cor? Seria estado do sistema nervoso do

indivíduo e não atributo externo ao ser (MATURAMA, 1997, p. 18).

Destarte, relacionar a atividade da retina com o nome da cor seria relacionar a atividade da retina com outro estado de atividade neuronial, vinculado ao nome dado à cor; quer dizer, é o sistema nervoso relacionando-se consigo próprio, operando em circuito fechado. Em última análise, o que o sistema nervoso faz é estabelecer referências a padrões de variação (externos) que expressem o seu próprio modo de organização (interno). É a estrutura da retina, e não o estímulo externo, o que determina a atividade da retina.

Posteriormente Maturana concluiu ser o próprio ser vivo um sistema fechado, constituído pela circularidade de seus processos e concebeu representação do ser vivo por meio de seta circularmente voltada sobre si mesma (MATURAMA; VARELA, 1972).

Para Maturana, a cognição é fenômeno puramente biológico. Nesse contexto, a percepção da realidade exterior, ou seja, o fenômeno do conhecer é exatamente o próprio fenômeno do "viver", ou seja, é o operar (interior) adequado ao ambiente (exterior), ou, ainda, nas palavras de Maturana (1997, p. 41), verbis:

Para entender o ser vivo, o que temos que encarar é o que o faz, o que o constrói. Eu dizia: “Qual é a tarefa, ou o

propóstio da mosca?” Mosquear, ser mosca. O

interessante é que esta resposta: “O propósito da mosca é mosquear” coloca a caracterização do ser vivo no ser vivo, não a coloca fora do ser vivo.

O conhecer passa a ser, para esse biólogo, fenômeno do operar do ser vivo em consonância com a circunstância. Procurando melhor compreender o conhecer, Maturana (1997, p. 152) percebeu ser o “sistema vivo um sistema fechado cujo objetivo último é o de preservar sua organização (interna), conservando sua adaptação à ‘circunstância”84 (externa).

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“A verdade é que eu descobri a autopoiese por volta de 1963 conversando com um amigo microbiólogo, Guilhermo Contreras, sobre uma pergunta da genética molecular importante na época. Discutíamos se a informação fluía do citoplasma para o núcleo, ou somente do núcleo par o citoplasma [...] ‘Veja, o que ocorre é que o DNA participa da síntese das proteínas, e as proteínas participam da síntese do DNA’” (MATURANA, 1997, p. 31-32).

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O modelo tradicionalmente aceito de conhecimento biológico percebe o sistema nervoso como um sistema aberto, que capta informações por meio dos cinco sentidos e com elas constrói uma representação interna de

Assim, “viver é conhecer, conhecer é viver”, no momento em que cessa o conhecer, ou seja, em que o organismo deixa de estar em harmonia com sua circunstância, morre e deixa de ser um sistema auto-referente.

O “viver” de um ser vivo é, portanto, processo permanente de interações recursivas entre o organismo e o ambiente, que ocorre, naturalmente, sem estar submetido a qualquer direcionamento externo; organismo e ambiente são sistemas estruturalmente determinados, mas operacionalmente independentes um do outro.85

É esse caráter sistêmico da relação entre o ser vivo e o ambiente que faz com que o ser vivo, enquanto estiver vivo, fique sempre e espontaneamente em "coincidência estrutural” com o meio ambiente. Quando tal coincidência acabar, o ser morre.

Mais que interdependentes, o organismo e o meio são interconstituintes. O indivíduo só é indivíduo porque social, e o social somente é social porque composto por indivíduos. Nesse sentido, Maturana (1997, p. 42) afirma, verbis:

Os biólogos enfatizaram o fato de que o ser vivo não é independente de sua circunstância. Mas, ao mesmo tempo, não encaram o indivíduo como uma coisa legítima em si mesma – porque o encaram como parte desse processo evolutivo. Mas, no momento em que atribuo importância ao indivíduo, em que pertenço a essa história que dá importância aos indivíduos e respeita sua legitimidade, quando vejo as bordas, os limites, não nego as circunstâncias. Quando digo que conhecer é viver, e viver é conhecer, o que estou dizendo é que o ser vivo, no momento em que deixa de ser congruente com sua circunstância, morre. Ou seja, quando acaba seu conhecimento, morre. É um conjunto que é uma unidade em sua circunstância. Mas ele é como é, segundo sua história com sua circunstância. E sua circunstância é como é, segundo a história de sua dinâmica.

Para Maturana, há, pois, responsabilidade entre o mundo animado e o mundo

inanimado, razão por que pode ser caracterizado como autor que se filia à ética ecocêntrica

para a problemática homem/natureza. Para esse biólogo chileno, todos os seres podem ser vistos como conjunto de sistemas autopoiéticos unidos por circunstâncias comuns.

Todo sistema determinado pela estrutura (autopoiético) existe em um meio, ou seja, surge em um meio ao ser distinguido ou trazido, à mão, pela operação de distinção do observador. Essa condição de existência é, também, necessariamente, condição de

complementariedade estrutural entre o sistema e o meio em que as interações do sistema são apenas perturbações.

A complementariedade estrutural, necessária entre o sistema e o meio, é o que Maturana chama de acoplamento estrutural.

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Os sistemas autopoiéticos não transforma nenhum input do ambiente em output para o ambiente, exceto no sentido de estarem transformando a si próprios em si próprios (ainda que para isso sejam estruturalmente abertos, pois importam insumos e exportam resíduos). Em outras palavras, o produto do sistema é o próprio sistema. Tudo o que ele fizer será sempre no sentido de autoproduzir-se. Enfim, dizer que o ser vivo é operacionalmente independente é o mesmo que afirmar que eles são auto-organizantes ou auto-referentes ou autopoiéticos.

A interação também existe entre dois sistemas autopoiéticos como dois seres humanos ou o ser humano e o animal. Tratando da Biologia do Fenômeno Social, Maturana (1997, p. 208) esclarece a existência de co-responsabilidade entre os seres, afirmando que:

A natureza é, para o ser humano primitivo, o reino de Deus, o âmbito onde encontra à mão tudo aquilo de que necessita, se convive adequadamente nela. Para o ser humano moderno a

sociedade é a natureza, o reino de Deus, que deve configurar o âmbito onde encontrar à mão tudo o que gera seu bem estar como resultado de seu conviver nela. Isso, em geral, não ocorre, impedido pela alienação que o apego e o desejo de posse geram, alienação essa que transforma tudo, as coisas, as idéias, os sentimentos, a verdade, em bens adquiríveis, gerando um processo que priva o outro do que deveria estar, para ele ou ela, à mão, como resultado de seu mero ser e fazer social. No apego, no desejo de posse, negamos o outro e criamos com ele ou ela um mundo que nos nega (grifo nosso).

É preciso também abordar a questão da linguagem nesse contexto. Esta tem por objetivo chegar a algum acordo, construir consenso a respeito da sinalização de algo entre dois indivíduos que se encontram em acoplamento estrutural mútuo. Nesse sentido, Maturana (1997, p. 38) ilustra com exemplo de “interação de orientações”86 entre uma menina (ser humano) e um cachorro (animal):

Eu era estudante na Inglaterra e, um dia, estava no Hide Park, em Londres, e vi uma menina com um cão e um bastãozinho. Ela ia caminhando com o bastão e tomava do bastão e o enterrava no chão, e prosseguia caminhando uns 50 metros, o cão ao seu lado. Ela então parava, olhava para o cão e dizia “Vá buscar o bastão”. O cão saía, e ia buscar o bastão. E a rotina se repetia enquanto ela andava. Isso me parecia fascinante porque era uma coordenação muito especial com o cão. Então, eu pensava que o que ela conseguia era que o cão se

orientasse não para ela, mas sim para sua orientação sobre o bastão. Ela punha o bastão no chão, e quando dizia ao cão: “Vá

buscar o bastão”, o cão não se orientava para ela mas para a orientação dela sobre o bastão. Embora aí não fosse visível que era uma coordenação de coordenações de ações, porque eram dois momentos tão separados, esse era exatamente um jogo de coordenação de coordenações de ação (grifo nosso).

Assim, para Maturana, o bastão da menina indicado ao cachorro é um símbolo.

Coisas que orientam o outro, não para si, mas para outra coisa. Para Maturana, a menina,

ao apontar com o dedo o bastão, orienta o cão para onde a mão aponta.

Logo, a linguagem, para Maturana (1997, p. 39), é “interação de orientações”, em que a segunda orientação não era sobre o orientador, mas sim sobre a orientação. Os signos,

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“Minha primeira visão sobre a linguagem, expressa no ‘Neurophysiology of cognition’, é a de ‘interações de orientação’. Apontar não ao que aponta, mas sim apontar ao apontar do que aponta. E eu pensava que, na medida em que eu podia fazer isso, efetivamente, iam aparecer os símbolos, porque os símbolos são justamente algo criado pelo que aponta fora de si mesmo. São coisas que orientam o outro, não para si, mas

nesse aspecto são secundários “porque as regras, os signos e símbolos são resultados desse operar”.

Verifica-se que a associação da linguagem ao fenômeno biológico, afasta a alegação de Descartes, já analisada, de que só o ser humano é capaz de “interagir sobre orientações” com os outros seres. O que pode mitigar a noção cartesiana de alma racional como exclusiva dos seres humanos, “únicos” capazes, para o cartesianismo, de acoplamento estrutural mútuo. Interessante observar que o caminho de Maturana passa pela análise do ser animado sensorial para depois chegar ao ser animado humano. Verifica, ao contrário de muitos, identificação do humano com o animal para, a partir desse momento, avaliar o humano. Para Maturana (1997, p. 46), a origem do humano, sua ontogenia passa:

[...] pela história dos primatas bípedes à qual pertencemos, com a origem da linguagem. E a linguagem se origina em uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual esses nosso antepassados conviviam compartilhando alimentos, na sensualidade, em grupos pequenos, na participação dos machos na criação das crianças, no cuidado com as crias, nas coordenações de ação que isso implica. E ali

surge a linguagem como um domínio de coordenações de coordenações consensuais de conduta. Mas é o fundamento básico do emocionar-se do mamífero e do primata que torna essa convivência possível. A emoção que torna possível

essa convivência é o amor, o domínio de ações que constituem o outro como legítimo outro na convivência (grifo nosso).

Logo, não só as suas conclusões como a sua própria metodologia de trabalho é

ecocêntrica. A intimidade do viver cotidiano permitiu o acoplamento estrutural mútuo, que

enseja a linguagem, domínio de coordenações consensuais de conduta que, nos primatas e mamíferos, destaca-se pela capacidade de ter emoções e de amar.

Nesse sentido Maturana (1997, p. 47) afirma:

Isso é particularmente central na epigênese, a história de desenvolvimento da criança. Quando essas coisas se alteram e a criança não cresce no amor, sua fisiologia se

distorce, surgem problemas de desenvolvimento,

problemas de relação, problemas fisiológicos,

psicológicos. Quando isso ocorre altera-se também seu ser social. Se não cresce no amor, altera-se sua fisiologia e, com isso, sua configuração de mundo. Porque o mundo

em que a criança vive é uma expansão de seu ser corporal e, portanto, de como ela vive sua corporalidade. A corporalidade

pode ser vivida no respeito por si mesmo e no respeito pelo outro, que se dá na confiança, uma confiança sincera, não hipócrita. Então, a criança que não cresce no amor, não cresce como um ser social (grifo nosso).

Maturana (1997, p. 47) destaca o homem, entretanto não pela suas diferenças com os animais, mas pelo grau de acoplamento estrutural com os outros seres pelo amor. “Nós temos

fisiologia dependente do amor. E isso se nota em como se altera a fisiologia quando se interfere com o amor”.

Aqui, Maturana aproxima-se da conclusão de outro biólogo e filósofo clássico, cuja ética já estudamos neste trabalho, Aristóteles.

Para Aristóteles, como para Maturana, o homem é animal político.87 Entretanto, é político, para Maturana, não só na sua interação com os outros homens, mas, também, na sua interação com todos os seres.

6.4 DIFICULDADES DE TRANSPOSIÇÃO DA ÉTICA ECOCÊNTRICA PARA A CIÊNCIA JURÍDICA: A

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