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3 ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA AMBIENTAL

3.3 MACROÉTICA AMBIENTAL: UMA ÉTICA SOCIAL QUE BUSCA EVITAR A INFELICIDADE DA COLETIVIDADE

3.3.1 Macroética: uma ética de agrupamentos sociais

Quando falamos em "macroética", referimo-nos aos sistemas de reflexão sobre a experiência ética da coletividade, uma ética de responsabilidade. Nesse sentido, a reflexão tem tipicamente natureza filosófica como na ética de Aristóteles, de cunho individual, já analisada, só que agora adquire cunho coletivo.

Apel (1994, p. 164) usa o termo “ética de responsabilidade” em contraponto à noção tradicional de ética, que busca a resolução de problemas individuais. Por outro lado, refere-se à “orientação ético-política fundamental” para designar o papel de uma ética de

responsabilidade solidária da humanidade, verbis:

Meu questionamento filosófico, em face da atual crise do sistema planetário da humanidade, é, por conseguinte, a questão sobre a possibilidade de uma orientação ético-política fundamental. E, quando a isso, não é nada evidente que uma tal orientação normativa de base seja realmente possível em sentido filosófico. Isso porque já se discute, hoje em dia, se é realmente possível, ante os conflitos de nossa época e as correspondentes controvérsias ideológicas, fundamentar algo como uma ética de responsabilidade solidária. Na idade da ciência, Apel questiona como não enfocar a necessidade de uma fundamentação objetiva e racional da ética. A partir do risco de destruição pela guerra e pelas técnicas modernas, verifica-se a necessidade de construção de uma ética que transponha os campos individuais e que se direcione para a humanidade como um todo. A técnica industrial, conforme já visto, conduz a uma problemática universal, posto que toda ecoesfera humana está ameaçada. É, doravante, em escala planetária que se põem, na sua urgência, os problemas éticos, ligados a uma responsabilidade coletiva.

Enfatizando a importância da construção de uma ética de responsabilidade envolvendo a questão ambiental, em face das conseqüências tecnológicas atuais, destaca Apel (1994, p. 193) que:

[...] tanto o perigo da guerra nuclear como também a crise ecológica atingem a humanidade como um todo. Aqui, pela primeira vez na história mundial transcorrida até agora, se torna visível uma situação,

na qual os homens, em face do perigo comum, são desafiados a assumir coletivamente a responsabilidade moral.

O movimento ambientalista nesse sentido, também, pode ser considerado como macroética, “não no sentido de fundamentação teórica, mas no de motivação imediata de práticas de ação de agrupamentos sociais, tendendo a constituir verdadeiras ‘atmosferas morais coletivas’ protetivas do meio ambiente” (VIEIRA, 1998, p. 160).

A grande crise ecológica da civilização técnico-científica desperta a construção de teoria ética ecológica. Tal como a ética do discurso49, que surge com nossos dias, como

proposta inovadora de construção de ponte entre a teoria e as questões cruciais da humanidade, a ética ecológica almeja iluminar a relação atual homem/natureza.

Conforme destaca Russ, o próprio Apel abre o debate atual sobre a ética do discurso, desenvolvida, notadamente, por Habermas. Apel, em ensaio de 1967 – “O a priori da comunidade comunicativa e os fundamentos da ética” – a partir da ética, analisa as aporias e dificuldades contemporâneas de fundar racionalmente uma macroética, válida para a sociedade humana no seu conjunto. Conclui que o cientifismo repele o problema do direito (dever ser) e pretende se ater aos fatos (ser), razão pela qual visualiza o aparente paradoxo

da necessidade e da impossibilidade da macroética.

Buscando resolver este paradoxo, Apel demonstra que a lógica e a ciência se referem implicitamente a uma ética, como condição a priori de sua existência. O argumento científico, na sua validade lógica, remete sempre a uma comunidade de pensadores que chegam a uma compreensão intersubjetiva. Todo cientista, mesmo considerado na sua investigação solitária, submete, potencialmente, sua argumentação ou sua demonstração a uma coletividade, à qual, ao menos em potência, ele se refere. Sua linguagem privada não o põe em condições de construir a ciência: é preciso que ele recorra a uma argumentação racional comum a todos.

Apel reintroduz a linguagem comum no próprio seio da ciência, que se pretende

unicamente fiel ao fato, mas se refere a valores e não se mostra, pois, axiologicamente

neutra, como aparenta o cientista de visão obtusa (RUSS, 1999, p. 80-84).

Buscando provar a argumentação de Apel da posição axiológica da ciência por meio da comunicação intersubjetiva da comunidade científica, pode-se citar o Relatório Meadows na sua estrutura científica e mensagem valorativa. Recentemente, conforme previsto no Relatório Meadows,50 evidenciou-se, por mecanismos argumentativos, que a ecosfera planetária apresenta conjunto de recursos limitado. Tal concepção contradizia com o que até então se imaginava do controle tecnológico humano.

Assim, a própria linguagem remete ao consenso, ao acordo, à comunicação transparente, à escolha esclarecida de um conjunto de indivíduos que dialogam. Então, a idéia de consenso vai marcar a investigação ético-moral coletiva.

Nesse sentido, Apel (1994, p. 167) afirma que:

[...] durante muito tempo se esteve habituado à concepção de que controle científico-tecnológico do homem sobre a natureza tinha sido definitivamente atingido e de que só era necessário complementá-lo

49

Ao falar da ética do discurso (“discourse ethics”), não se pode esquecer de Habermas. Na sua famosa publicação da “Teoria da ação comunicativa”, ao estudar a linguagem, a hermenêutica e a verdade, constatou que a compreensão do processo hermenêutico leva ao raciocínio de que a verdade só pode ser alcançada quando se busca um consenso em uma com unidade limitada de intérpretes (OUTHWAITE, 1994, p. 38-39).

50

O Relatório Meadows constitui-se em um trabalho realizado em abril de 1968, pelo chamado Clube de Roma, que visava “examinar o complexo de problemas que afligem os povos de todas as nações: pobreza em meio à abundância, deterioração do meio ambiente”, dentre outros (Meadows et al., 1973, p. 10).

pelo controle do homem sobre o homem, no social engineering (na engenharia social); em nossos dias, porém, fica claro, aos pouco que a relação do homem com a natureza ainda inclui problemas bem diversos do que a mera exploração tecnológica de nosso conhecimento das leis causais (do anorgânico) para a realização de fins subjetivos de ação humana.

Assim, na obra Estudos de moral moderna, coletânea de trabalhos anteriores, foram publicados dois importantes trabalhos de Apel que destacam a busca de ética de

responsabilidade solidária, valorativa, em face da crise ecológica da civilização técnico-

científica: “Os conflitos de nossa época e a exigência de orientação ético-política fundamental” e a “Situação do ser humano como problema ético”.51

Apel oferece argumentos robustos da possibilidade e necessidade de ética para a relação do ser humano com a natureza, com tal argumentação correlaciona o mundo do ser (científico, dos fatos) com o mundo do dever ser (ético-jurídico, das condutas aprovadas).

No ensaio “Os conflitos de nossa época e a exigência de orientação ético-política fundamental”, Apel (1994, p. 164) afirma:

Em face das ameaças que pairam atualmente sobre a bio ou ecosfera humana, por causa dos problemas de superpopulação, de escassez das reservas energéticas, de destruição do ambiente, etc.; em síntese, em face da crise ecológica e da problemática abordada pelo `Clube de Roma', no sentido da moderna teoria sistêmica, é possível perguntar pela correlação entre os conflitos humanos e a ameaça da biosfera humana; e aqui emerge, de fato, a questão: por acaso se exige algo semelhante a uma modificação de sistema em medida planetária? E nesta correlação, é possível levantar a questão ético-política: o que devemos fazer?

Conforme destaca Baracho Júnior (1999, p. 202):

Apel afirma que o potencial tecnológico da ciência teve como resultado o risco das atividades humanas atingirem uma

amplitude assombrosa. Valendo-se da ilustração feita por Lorenz

sobre os problemas etológicos e éticos que decorrem desse fato, Apel compara o homem do paleolítïco, armado com um machado, com o piloto que transportou a bomba atômica lançada sobre Hiroshima (grifo nosso).

Ressaltando a problemática contemporânea da destruição do meio ambiente e

fazendo referência à lógica aristotélica e à ética discursiva, Kaufmann (1999, p. 522), no

mesmo diapasão, entrevê a necessidade da busca de novos paradigmas filosóficos:

Desde Aristóteles hasta hoy se esfuerza la ética por presentar reglas de conducta para el caso normal. Esto también es directamente válido para la ética discursiva. Pero nuestra actual situación no es normal. El presente está ante la siguiente alternativa: tendrá la humanidad um futuro o va hacia su destrucción? (grifo do autor).

Kaufmann (1999, p. 522), também, apresenta, pois, a necessidade de ética da civilização técnica. Destaca, nesse sentido, trabalho desenvolvido por Jonas: “Nadie se há

empeñado más por una ética de la civilización técnica que Hans Jonas, por una ética que no tiene reglas para todo sino una ética para el estado de necesidad.”

Como destaca Mancini et al. (2000, p. 28), a obra de Jonas, filósofo alemão de origem hebraica, que morreu em 1993, representa uma passagem obrigatória para a pesquisa da macroética da humanidade. A importância da sua contribuição deriva, fundamentalmente, da retomada da categoria da responsabilidade com o destino da humanidade futura no âmbito do mundo tecnológico contemporâneo.

Jonas, na obra “O princípio da responsabilidade”, pode ser considerado como crítico da sociedade moderna tecnicista,52 não obstante o eixo fundamental desenvolva-se no âmbito de crítica à obra de Bloch, “O princípio da esperança” e ao utopismo marxista nela presente,

que levaria a um não-agir no presente na expectativa de um futuro promissor.53

Discípulo de Heidegger, Jonas analisa o marxismo, apreciando, com ponderação, os argumentos favoráveis e contrários, destacando, entretanto, que, sob o ponto de vista ecológico, o marxismo apresenta características maléficas.

Assim, sob o pano de fundo da visão marxista de exploração máxima dos recursos naturais, Jonas constrói a época de sua obra ética do “futuro” que poder-se-ia chamar de “contemporânea”.

De modo assemelhado ao raciocínio desenvolvido por Apel, das amplas dimensões da relação do agir humano com os outros homens e com o mundo em geral, Jonas (1995, p. 23) destaca a necessidade de nova ética distinta das éticas até hoje formuladas em razão da “modificação do alcance da ação humana”:

Todas las éticas habidas hasta ahora – ya adoptasen la forma de preceptos directos de hacer ciertas cosas y no hacer otras, o de uma determinación de los principios de tales preceptos, o de la presentación de um fundamento de la obrigatoriedad de obedecer a tales principios – compartían tácitamente las seguintes premisas conectadas enre sí: 1) La condición humana, resultante de la natureza del hombre y de las cosas, permanece em lo fundamental fija de uma vez para siempre. 2) Sobre esa base es posible determinar com claridad y sin dificultades el bien humano. 3) El alcance de la acción humana y, por ende, de la responsabilidad humana está estrictamente delimitado.

Assim, como há mudança no alcance da ação humana, deve haver maior preocupação com a responsabilidade decorrente dessa ação.

Essa preocupação com o alcance da lesão causada pela conduta humana, decorrente da quebra do preceito “neminem laedere”, já tinha sido objeto de preocupação no Direito Romano e continua sendo no Direito Moderno.54

52“La tesis de partida de este libro es que la promesa de la técnica moderna se há convertido em uma amenaza, o que la amenaza há quedado indisolublemente asociada a la promesa” (JONAS, 1995, p. 15).

53

“O pensamento utópico do século XX tem se baseado na idéia de progresso que o século XIX incorporou à utopia ao lado da ciência. A mais característica forma de utopia do século XX foi a idéia de socialismo, embora o liberalismo também tenha uma dimensão utópica. Apesar de seus protestos em contrário, o pensamento de Marx e Engels é profundamente utópico” (BURDEN, 1996, p. 788). Como destaca Mancini et al. (200, p. 40) e se deflui da obra de Jonas sobre o princípio da proporcionalidade, a utopia referida vincula- se a filosofia utópica de Bloch, “Nesta última concepção, o ser não está dado, mas está em devir, é um <<não- ser-ainda>> que chegará à sua identidade apenas no futuro de uma libertação total da humanidade e do mundo. Mas, para Jonas, pelo contrário, deve ser reconhecido o valor intrínseco daquilo que já é, em vez de reduzi-lo a uma simples prefiguração daquilo que ainda deve vir”.

54

Conforme Kaser (1999, p. 281): “Delictum(privactum) [...] é um facto antijurídico que lesa o INDIVÍDUO, a sua personalidade, a sua família ou o seu património. Só este delito privado pertence ao direito privado. Os crimina, os factos PÚBLICOS puníveis que causam uma grave injustiça à comunidade (como alta traição,

Assim, ao tratar da vulnerabilidade da natureza perante a ação humana, Jonas (1995, p. 26) menciona, mais uma vez, a necessidade da construção de uma nova ética:

[...] La naturaleza, em cuanto responsabilidad humana, es sin duda um novum sobre el cual la teoria ética tiene que reflexionar. Qué clase de obligación actúa em ella? Se trata de algo más que de um interés utilitário? Se trata simplemente de la prudencia que nos prohíbe matar la gallina de los huevos de oro o cortar la rama sobre la que uno está sentado? Pero, quén es esse <<uno>> que está em ella sentado y que quizás caiga al vacío? Y cuál es mi interés em que permanezca em su lugar o se caiga?

Portanto, para Jonas e Apel, a pretensão de mudar o mundo para construir o amanhã (homo faber) deve ceder lugar ao dever de proteger a vida e de preservar o futuro (ética

da responsabilidade como preocupação com a existência e qualidade de vida das gerações

futuras).

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