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A abordagem ergológica: principais contributos na renovação de um património

CAPÍTULO I ENCONTROS SOBRE A “ACTIVIDADE”: OS CONTRIBUTOS

5. A abordagem ergológica: principais contributos na renovação de um património

É incontestável a relevância da abordagem ergológica na abertura conceptual a outras dimensões de análise da actividade, a partir de um património de saberes partilhado com a tradição científica da ergonomia da actividade. Poderíamos mesmo dizer, sob influência de Schwartz (2000a) que a ergonomia é uma “propedêutica à ergologia”45: na conceptualização da actividade, dando visibilidade a outras fontes de contradição e de conflitos a gerir; na compreensão e transformação das situações de trabalho; nas relações entre o que se passa na actividade e os níveis mais globais da vida social ou na inscrição do trabalho na dinâmica da história colectiva.

Podemos, mesmo assim, de forma sintética, identificar três importantes contributos da abordagem ergológica:

 Um contributo relativo “(…) ao drama próprio do agir humano” (Schwartz, 2010, p. 14, tradução livre), sob a forma de debates de normas e de valores e de dramáticas de uso de si46 (Schwartz, 1992).

A actividade é definida como um debate permanente entre normas antecedentes e tentativas de renormalização, renunciando portanto a uma estrita execução de normas heterodeterminadas, a um uso de si por outros. Tal não acontece, no entanto, como um desafio às relações de poder instituídas, pelo contrário, é mesmo uma condição de vida e de saúde ser-se, pelo menos parcialmente, autor de uma normatividade compatível com o que o encontro com o que o meio exige e com o que é possível a cada um. As normas antecedentes codificam o trabalho,

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Esta referência constitui, na verdade, uma adaptação do que Schwartz menciona numa alusão à ergonomia da actividade “(…) mais do que uma epistemologia da ergonomia, gostaríamos de desenvolver a ideia de que a ergonomia é talvez hoje uma propedêutica à epistemologia” (Schwartz, 2000a, p. 71, tradução livre).

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Se o trabalho convoca sempre um uso de si Schwartz (1992), “quem faz uso”? (p. 55, tradução livre). Segundo o autor, podemos falar, simultaneamente, de um uso heterodeterminado de si ou uso de si por outros, tendo em conta as normas e instruções de quem concebe o trabalho e o

neutralizando o hic et nunc47, mas a actividade é sempre um “encontro de encontros”, pelo que só se poderá antecipar o carácter irrevogavelmente transgressivo da actividade.

A noção de “resistência à mudança” encontra aqui os argumentos que evidenciam os seus limites na compreensão do real. É “impossível” estabilizar o meio, é impossível assumir que a actividade pode ser definida em heteronomia, em desaderência, mas viver submetido às exigências do meio é também invívivel. A iniciativa de cada um, no seio de um colectivo de trabalho, através das suas tentativas de renormalização, é o que irá permitir tornar a vida possível nesse contexto.

Os debates de normas e de valores que consubstanciam os processos de renormalização submetem também a actividade a “contradições”: relativamente ao que preconizam as normas antecedentes e ao que as renormalizações da actividade propõem. É esta também a proposta da abordagem ergológica de leitura e compreensão do que faz história, das crises e tensões que se vão registando (Schwartz & Durrive, 2003).

Mas, a história é igualmente representada pelo que Schwartz designa por “corps-

soi” (corpo-si ou corpo-pessoa): ele é o cerne de arbitragens na actividade e,

portanto, fonte da história, “história da vida, do género, da pessoa, é a história dos encontros sempre renovados entre um ser em equilíbrio mais ou menos instável e uma vida, social, com os seus valores, as suas solicitações, os seus dramas” (Schwartz, 2000a, p. 664, tradução livre). Esta história, mesmo que menos visível do que a história feita de grandes acontecimentos e desencadeada pelos grandes Homens, não é, contudo, marginal: ela retrata o que se passa a um nível considerado infinitesimal, mas que é também fermento da grande história. Negligenciá-la, deixá-la na penumbra, não só não a interrompe, como prefigura custos no conhecimento do seu devir.

 Um contributo também ao nível da proposta de compreensão e transformação das situações de trabalho, através da construção de “dispositivos dinâmicos a três pólos” ou de um espaço de “debate entre semelhantes” sobre o trabalho.

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Estes dispositivos traduzem um processo de “couplage” de diferentes actores e saberes, sem contudo obedecer a um modelo canónico. Assume-se que se trata de saberes comensuráveis e que os diferentes actores da actividade não podem ser desconsiderados na produção de conhecimentos sobre ela. A preservação das condições que tornam possível o diálogo entre estes dois pólos é mantida por um terceiro pólo – o pólo das exigências éticas e epistemológicas.

Uma das formas de intervenção preconizadas pela abordagem ergológica de DD3P consiste na construção de “Grupos de encontros do trabalho”48, ou seja, de um espaço de debate e de reflexão sobre a actividade, os seus constrangimentos, o que caracteriza a dialéctica do “impossível/invívivel” em cada contexto, as suas reservas de alternativas, enfim, dando voz ao que se mantém silenciado em contexto de trabalho. Segundo Nouroudine (2006), estes grupos de encontros

insuflam uma vitalidade ao dispositivo (dinâmico a três pólos) e permitem aos colectivos constituir-se para pensar e agir de forma concertada. Os encontros referidos criam interacções entre sujeitos, colectivos que veiculam todos saberes, valores… cuja circulação organizada conduz à produção de conceitos mesclados. Esta amálgama de conceitos obtida graças à mistura de saberes académicos e de saberes provenientes da experiência torna possível a correspondência entre o saber, a acção e a realidade. (p. 11, tradução livre)

A operacionalização de um “grupo de encontros do trabalho” não corresponde à aplicação de um modelo pré-definido e à distância das situações de trabalho em análise. Pelo contrário, essa operacionalização supõe uma posição de “imprentissage”, de impregnação da vida em contexto de trabalho, assumindo sempre uma postura de “desconforto intelectual”, ou seja, abandonando o “conforto” de modelos já concebidos e estabilizados. Mas, uma postura específica deve também ser assumida pelos protagonistas da actividade, no sentido de dar visibilidade ao que é, por vezes, considerado residual, ou o que no quotidiano se afasta do que se tornou habitual, e de permitir que uma certa conceptualização do seu trabalho não aprisione, no entanto, o seu permanente movimento. Não é, porém, evidente que estes saberes, cuja partilha é mediada pela linguagem, sejam susceptíveis de serem verbalizados à distância da actividade. Por esta

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Podemos referir como exemplos de processos de construção de “Grupos de encontros do trabalho” os que foram desenvolvidos, no âmbito do Departamento de ergologia, em parceria com a Agence Nationale Pour l’Emploi (ANPE) (Prévot-Carpentier, Wild, Ibar, Duranton & Regnaut,

razão, não se excluem momentos de análise do trabalho em contexto real, cuja orientação advém do legado da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, mesmo se estes “grupos de encontros do trabalho” se sustentam na linguagem como meio de acesso aos debates de normas e de valores que guiam a acção de cada um.

Mas, convém também ressalvar que o objectivo destes grupos não é o de se reduzir a uma mera partilha de conhecimentos, no seio de um colectivo, sobre o trabalho. O seu projecto consiste antes em criar condições para uma co-produção de conhecimentos sobre a actividade e para a transformação dos conceitos susceptíveis de traduzirem o que nela se vive. Por exemplo, uma discussão sobre a noção de “serviço público de transporte” deveria integrar a experiência e o significado associado à prestação deste serviço e às suas vicissitudes decorrentes do contexto em que é prestado, do tipo de utilizadores a que dirige, mas também da história desta prestação nesse contexto e com essas pessoas. E se a história da evolução do conteúdo deste conceito é do domínio público, a dos debates de normas e de valores que se vai tecendo em aderência às realidades locais onde ele se concretiza, deixa em aberto a compreensão das condições concretas de operacionalização deste tipo de serviço. A resposta a estas questões assenta, na perspectiva ergológica, na dialéctica que tem que ser apreendida na análise da actividade entre o que se passa a um nível micro e a um nível macro de análise, ou seja, na actividade e nas suas relações com outras instâncias da vida social.

 O terceiro contributo que identificamos encontra sustentação na proposta de Schwartz de encontros do trabalho com o campo do político, entendido como trabalho sobre o bem comum: “podemos passar dos ‘encontros do trabalho’ (…) para o campo das intervenções de cidadania?” (1997, p. 302, tradução livre). Analisar e compreender o trabalho exige uma abordagem dialéctica do singular e do geral. Por um lado, é importante que os problemas singulares que surgem na actividade sejam reportados aos seus determinantes, sem no entanto se ficar aprisionado a uma análise abstracta, à distância da situação concreta que a despoletou, por outro lado, permanecer a um nível micro de análise, privilegiando a experiência subjectiva do vivido sem uma ancoragem nas políticas e opções de

organização do trabalho definidas, não intenta necessariamente uma transformação dessa situação de trabalho.

Consideramos que a noção de interesse geral constitui um bom exemplo do que acabamos de referir. Na perspectiva de Duguit (1923, citado por Fernandes, 1996), ele constitui um valor estruturante da sociedade e “indispensável à realização e ao desenvolvimento da interdependência social” (p. 391). A questão que se coloca é como o interesse geral cimenta a relação entre os homens e concilia o singular (o interesse individual) e o universal (interesse colectivo)? Como mesmo na actividade, a um nível micro de análise, os valores de sociedade são retratados?

A actividade dos motoristas de transporte público mostra-nos como ela é um lugar de síntese, entre o particular e o geral, o singular e o universal. Por exemplo, prestar um serviço que visa contribuir para a fidelização ao transporte público não é contribuir simultaneamente para o interesse particular (procurando cumprir os horários e preservar a frequência dos serviços) e para o interesse geral (evitar o abandono deste modo de transporte em favor do automóvel)?

Mas, a actividade é também um espaço de debate e de questionamento de valores mais ou menos universais, frequentemente definidos em desaderência relativamente às situações concretas. O tratamento igualitário dos passageiros nem sempre é garantia de satisfação do interesse geral. A renormalização pela actividade do princípio de igualdade de tratamento dos utilizadores do serviço de transportes, considerando as necessidades específicas que se julga poderem ser atendidas sem prejuízo das necessidades do colectivo, é também uma forma de construir o interesse geral. Por exemplo, em contexto urbano, em que as deslocações se fazem não raras vezes utilizando diferentes modos de transporte, para além do cumprimento dos horários de circulação, os motoristas têm também em conta a gestão da actividade considerando igualmente os horários de articulação com outros serviços de transporte (de comboio ou de outros autocarros), de forma a tornar possível o transbordo com o menor tempo de espera. Desta forma, é dada resposta às necessidades particulares de alguns passageiros, ainda que algumas estratégias de regulação dos constrangimentos temporais tenham que ser empreendidas, tendo em conta as vicissitudes a que a

O interesse geral é também um valor presente nas renormalizações assumidas na actividade. Neste sentido, parece legítimo afirmar que existe comensurabilidade entre os valores que orientam as opções definidas ao nível da actividade, e os valores que são definidos a um nível macro de análise, ou seja, no pólo político. Este exemplo mostra-nos como mesmo a um nível micro de análise do trabalho encontramos questões da sociedade, que são integradas nos debates de valores que aí têm lugar, porque a “actividade comporta alternativas que interessam aos níveis micro e macro da vida económica e social” (Schwartz & Durrive, 2003, p. 282, tradução livre).