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Para além das políticas europeias: as instituições e as políticas sub-

CAPÍTULO II NEM TUDO NA MOBILIDADE É EFÉMERO: QUE

3. Desideratos de uma vida móvel: entre mobilidades, transportes, e

4.1 Políticas públicas no domínio dos transportes a diferentes escalas

4.1.2 Para além das políticas europeias: as instituições e as políticas sub-

A década de 90 do século XX é tida como uma fase importante de desenvolvimento do sector dos transportes, marcada pela implementação de novas políticas. A este propósito, é aprovada a já referida Lei n.º 10/90, de 17 de Março, designada “Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres” (LBSTT), que substitui a Lei n.º 2008, de 7 de Setembro de 1945, com o intuito de renovar o quadro legislativo e os pressupostos da política sectorial dos transportes terrestres, no contexto nacional. O direito à mobilidade é concretizado, nomeadamente, com o reconhecimento do serviço de transportes colectivos de passageiros como um “serviço público”76. Não obstante a influência comunitária neste âmbito, “os Estados-membros têm a faculdade de manter ou introduzir obrigações de serviço público para as seguintes categorias de serviços de transportes: urbanos de passageiros; suburbanos de passageiros; e regionais de passageiros” (Garcia, 1999, p. 75). Encontramos na Lei n.º 10/90, de 17 de Março, a definição das obrigações de serviço público como “a obrigação de explorar, a obrigação de transportar e a obrigação tarifária (…) justificáveis nos termos e na medida necessários para garantir o funcionamento eficaz do sistema, 74 [COM(1998) 431 final]. 75 [COM(2001) 370 final]. 76

Este reconhecimento encontra-se consagrado no artigo 73º do TCE e justifica-se, em parte, pelo facto de constituírem uma necessidade colectiva, de interesse geral, e portanto não passível de uma exploração meramente comercial. Esta questão será mais amplamente abordada no capítulo sobre “serviço público”, onde se desenvolve uma reflexão crítica sobre a evolução do conteúdo desta noção e a sua aplicação no sector dos transportes.

de modo a adequar a oferta à procura existente e às necessidades da colectividade” (artigo 2.º, nº 4).

Em termos de orientações mais globais, esta Lei traduz as anteriormente definidas no âmbito da política comum de transportes: sustenta a desregulamentação das actividades transportadoras, com ênfase na igualdade de tratamento dos operadores77, públicos e privados; a liberalização na exploração, embora regulada pelas normas de acesso à actividade pelo transportador; e por uma intervenção dos poderes públicos, condicionada à preservação do interesse colectivo sempre que o mercado não logre garanti-lo.

Havia sido previsto também nesta Lei nº 10/90 a criação pelo Governo de um organismo público, dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, cujo território de actividade seria cada região metropolitana de transportes, e a quem competiria coordenar a política de transportes nessas áreas, denominado “comissão metropolitana de transportes” (artigo 28.º). Mas, somente volvidos 13 anos, foi aprovado o diploma que cria as Autoridades Metropolitanas de Transportes78 do Porto (AMTP) e de Lisboa (AMTL), como entidades com influência supramunicipal – Decreto-Lei n.º 268/03, de 28 de Outubro de 200379.

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O operador é aqui entendido como uma entidade ou empresa de direito público ou privado a quem é atribuída a responsabilidade pela prestação de serviços de transporte público de passageiros, em zonas concessionadas de exploração de linhas, por um poder público central ou local (Comissão das Comunidades Europeias, 2000).

Na tradição da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, é também comum a utilização deste termo, mas para designar “toda a pessoa que exerce uma actividade profissional, quaisquer que sejam as suas características (profissão, classificação profissional, sexo, etc.) (Guèrin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 1991, p. 15, tradução livre).

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A primeira Autoridade Metropolitana de Transportes na Europa surgiu em 1959 em Paris, seguida da de Manchester, Liverpool e Sheffield, em 1968. Em contrapartida, segundo dados da European Metropolitan Transport Authorities (www.emta.com), em Londres e em Valência, a sua data de criação é bem mais recente, data do ano de 2000, informação igualmente corroborada por Cruz (2007).

Apesar de não o termos feito, reconhecemos que teria certamente constituído uma questão interessante de investigação explorar os factores que terão condicionado a entrada em funcionamento das AMT em Portugal somente no ano de 2009. O mesmo seria dizer que teríamos que fazer um estudo da conjuntura política e social que levou à criação das AMT noutros países Europeus, com um desfasamento temporal tão significativo. O interesse que mantemos pelas questões que atravessam este sector de actividade justificará, sem dúvida, o prosseguimento futuro da pesquisa sem esquecer uma incursão neste assunto.

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As atribuições das AMT encontram-se compreendidas no âmbito do planeamento, organização, operação, financiamento, fiscalização, divulgação e desenvolvimento do transporte público de passageiros (Lei n.º 1/2009, de 5 de Janeiro, artigo 4.º). É de assinalar a responsabilidade destas entidades em “promover os mecanismos de articulação entre os diversos operadores de transporte público, de forma a incrementar a interoperabilidade e a intermodalidade (artigo 6.º, nº 1), tal como fora igualmente previsto ao nível comunitário. Compete também agora às AMT a contratualização do serviço público com operadores privados de transporte colectivo rodoviário de passageiros, dentro das áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, bem como o financiamento da respectiva compensação pelo inerente cumprimento de obrigações de serviço público.

Finalmente, um outro eixo de orientação em termos de políticas públicas no domínio dos transportes e da mobilidade, refere-se às propostas enquadradas no âmbito do “Plano Estratégico de Transportes”80 (PET). Muito recentemente foi apresentada uma nova proposta deste Plano, com data de 7 de Outubro de 201181, referente ao período 2011-2015. De referir que o Plano até então em vigor foi anunciado em Maio de 2009 e tinha como horizonte temporal o período de 2008-2020.

As diferenças entre os dois Planos são substanciais82, justificadas em larga medida pelas mudanças no contexto internacional e, particularmente, pelo agravamento da conjuntura económica em Portugal, como aliás é referido por diversas vezes no âmbito do PET actual. O objectivo do “PET 2009” consistia na proposta de um diagnóstico e de um plano de acção e de desenvolvimento do sector, encarado como “um momento importante e necessário de reflexão

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O Plano Estratégico de Transportes (PET) é um documento fundamental na análise prospectiva do sector ao consolidar a Política de Transportes em Portugal.

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Proposta apresentada pelo actual ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, tendo também sido divulgadas nesse dia as principais orientações do Governo em matéria de infra-estruturas e transportes, ao longo da XIX legislatura.

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Para além do facto de os dois Planos terem sido definidos tendo em vista um alcance temporal bem distinto (12 anos no caso do “PET 2009” e quatro anos no caso do “PET 2011”), não será certamente descabido dizer que o Plano anterior incluía uma análise integrada do sector, enquanto que no Plano actual se traça, sobretudo, um conjunto de medidas executórias, centradas numa redução de custos, o que se por um lado parece pertinente face à situação económica actual, por outro lado, tal é feito sem se tornar explícito o diagnóstico do sector e dos seus principais problemas, que fundamentam as medidas a prosseguir.

prospectiva sobre o sector (…), no sentido de se caminhar para o desenvolvimento sustentável” (Ministérios das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, 2009, p. 3). No “PET 2011” é claramente referido que não se trata de “mais um diagnóstico”, mas sim “de um caminho a seguir” (Ministério da Economia e do Emprego, 2011, p. 5).

O nosso olhar seguiu, em primeiro lugar, o caminho da compreensão do papel do Estado num contexto em que a lógica privada ganha um espaço crescente, sem no entanto consubstanciar a análise ao regime da propriedade pública ou privada dos transportes.

A orientação nos dois Planos a este nível não pode ser considerada díspar, senão vejamos, no “PET 2009” é dito que:

aos privados [cabe] a operação do transporte. Ao Estado a infra-estruturação (…) [e também] o papel fundamental de planeador do devir e de regulador do sector. Sendo uma actividade onde as falhas de mercado são frequentes, por vezes mesmo configurando situações de monopólio natural, compete ao Estado promover a concorrência no mercado onde ela seja possível, ou para chegar ao mercado, ali onde situações de monopólio natural tendam a inibir a concorrência. (p. 64)

No caso específico do “PET 2011”, é referido que: “o Estado deverá assim transferir para a iniciativa privada a prestação dos serviços de transportes em que aquela se revele mais competente, o que constitui a segunda fase das reformas traçadas [consistindo a primeira fase na reestruturação das empresas do sector empresarial do Estado] para atingir o equilíbrio operacional do sector dos Transportes” (p. 53).

Denota-se, efectivamente, que uma maior intervenção do mercado é claramente explicitada e sustentada em princípios de concorrência. Mas, isto não é sinónimo de uma redução do papel do Estado, aliás, no “PET 2011” preconiza-se a criação de condições para a concretização de uma transferência de competências para as autarquias, no domínio dos transportes urbanos e locais:

apesar da Lei de Bases dos Transportes Terrestres, de 1990, ter vindo a estabelecer uma nova repartição de competências entre a administração local e central, deixando a cargo dos municípios a concessão de exploração de serviços de transportes urbanos e locais, cabendo ao Governo a competência na atribuição de serviços de transporte interurbanos ou inter-concelhios, esta descentralização ainda não foi levada a cabo.

Também a Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, veio estabelecer um quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais em vários domínios, transportes urbanos e locais, faltando o acto legislativo de concretização desta transferência efectiva da competência. (p. 56)

Falamos, neste caso, do que é designado por Reis (2007) como “Estado local”, constituído “em representação do papel das colectividades territoriais como agentes de um serviço público de desenvolvimento” (p. 233), ou seja, assumindo as autarquias o papel de agentes do desenvolvimento local.

As medidas de intervenção no sector que o actual PET define terão também impacto nas empresas de transportes e na actividade de quem, mais directamente, presta estes serviços. Tais medidas enquadram-se num outro eixo estruturante deste Plano, que consiste na reestruturação das empresas do sector empresarial do Estado. Para além, nomeadamente, da fusão das empresas prestadoras de transportes na Área Metropolitana de Lisboa e do Porto; da adequação do quadro e custos de pessoal às necessidades de uma empresa eficiente; e da descontinuação de serviços onde exista uma oferta alternativa de transporte, prestados de modo mais eficiente, prevê-se a celebração de novos acordos de empresa, em diálogo e negociação com as organizações sindicais. Uma das razões invocadas e que justifica esta pretensão corresponde à identificação de “fortes constrangimentos e ineficiências na gestão do tempo de trabalho”. Considerando especificamente a actividade dos motoristas de transporte público por autocarro, não podemos deixar de questionar a forma como foi feito o diagnóstico que terá favorecido tal conclusão. Melhor dizendo, reconhecemos efectivamente que existem importantes constrangimentos na gestão do tempo de actividade, ou seja, de realização dos percursos dentro dos horários prescritos. Não nos parece, porém, que seja este tipo de análise que está por detrás daquela afirmação, mas o desenvolvimento do sector não pode também ser perspectivado com base unicamente numa análise técnica e económica. As condições de trabalho são factores determinantes da qualidade do serviço prestado aos utilizadores do transporte público, e a sua negligência no contexto da “passagem de um Estado de bem-estar social para um workfare

state, isto é um Estado em que a relação salarial se desvaloriza e os custos

recaem sobre os trabalhadores” (Reis, 2007, p. 89) ousa desafiar os objectivos de eficiência do sector que este PET visa alcançar.