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CAPÍTULO I ENCONTROS SOBRE A “ACTIVIDADE”: OS CONTRIBUTOS

6. O paradigma ergológico interpelado?

A imersão na abordagem ergológica permitiu-nos, indubitavelmente, enriquecer a leitura da actividade de trabalho e também recentrar o seu contributo relativamente à abordagem da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade.

Não podemos, contudo, deixar de colocar algumas questões que, ainda assim, nos parecem menos visíveis nesta abordagem. Uma delas prende-se com a referência aos protagonistas da actividade e da história que ela ajuda a construir. Como refere Schwartz (1997),

toda a actividade de trabalho é sempre uma ‘dramática de uso de si’, uma problemática negociação entre o uso de si por si e o uso de si por outros, a substância, o conteúdo, as circunstâncias destas dramáticas, a forma como elas tecem os elementos são apenas parcialmente antecipáveis e objectiváveis, elas ‘fazem história’ mais ou menos localmente ou globalmente. (p. 7, tradução livre)

Assumindo que as dramáticas de uso de si e os debates de normas são sempre transversais à actividade, concebida e normatizada ex-ante pelas normas antecedentes, e que o processo de renormalização expressa precisamente a tentativa de reconfigurar o próprio meio de trabalho, uma questão que nos parece pertinente colocar prende-se com a autoria destas mudanças e a sua inscrição na história. Quem são afinal estes protagonistas da actividade? Na obra que retrata a experiência que haveria de formalizar o projecto de desenvolvimento da abordagem ergológica – “L’Homme Producteur” – Schwartz e Faïta (1985) afirmam que cada situação de trabalho é sempre combinação de duas histórias

singulares: a história das máquinas, dos modos de organização do trabalho, por um lado, e a história dos homens e das mulheres que deles fazem uso. Mais referem que, se a primeira história não é suficientemente mensurável, já que os meios de produzir e os seus processos nunca são idênticos, “a história dos segundos é, sem dúvida, mais conhecida, mais evidente” (p. 226, tradução livre). Que homens e mulheres produtores são estes?

Schwartz (2000a) fala no “reconhecimento da igualdade potencial entre os homens, da universalidade na capacidade de renormalizar” (p. 656, tradução livre). Compreendemos que é incontestável a iniciativa de cada um para tentar renormalizar o seu “meio” de trabalho e torná-lo “vívivel”. Mas, terão eles iguais possibilidades de o fazer, considerando não só a especificidade das suas situações, mas também da sua história anterior a essas situações? Será possível compreender o que “produzem” estes protagonistas à distância das condições que são as suas, susceptíveis de o permitir?

Uma outra questão que decorre desta primeira reporta-se à afirmação pela perspectiva ergológica de que o desvio entre o prescrito e o real é sempre resingularizado. Ainda que pouco referenciadas, não são descuradas pela abordagem ergológica as situações de insucesso nas tentativas de renormalização: “cada ser humano no trabalho experimenta mais ou menos (e o seu ensaio não é sempre conseguido) recompor um pouco o meio de trabalho, em função do que ele é, do que desejará que seja o universo que o circunda” (Schwartz & Durrive, 2003, p. 13, tradução livre); ou quando é referido que “esta tendência fundamental para o ‘recentramento’ (mais ou menos bem sucedida, mais ou menos planificada)” (Schwartz, 2000a, p. 646, tradução livre); e também quando se interpreta “as diversas formas de psicopatologia do trabalho como falhas do sujeito a recentrar o meio de acção em torno das suas próprias normas” (Schwartz, 1992, p. 231, tradução livre).

Parece-nos que a caracterização do que constitui o insucesso a que estão votadas algumas tentativas de renormalização seria indispensável. Até porque cremos que a renormalização é um processo e, neste sentido, não se constrói “à primeira”. Pelo contrário, exige tempo para uma tomada de consciência do que deve ser matéria de debate de normas na actividade. E este processo de tomada

imaginando-o a partir de outros possíveis. É, por conseguinte, na experiência49 que esta consciência se irá desenvolver.

A discussão desta questão remete-nos à primeira, relacionada com a caracterização dos protagonistas. Efectivamente, a experiência parece-nos de uma importância incontornável: possivelmente as tentativas bem sucedidas de renormalização exigem experiência no confronto com as múltiplas fontes de variabilidade de que se reveste a infidelidade do meio. Além disso, o recentramento do meio em torno de normas produzidas por si mesmo (um centro humano de escolhas e de tomada de decisões) não é feito no vazio, não é nunca a-histórico, pelo que só pode ser compreendido na existência de um património antecedente, individual e colectivo.

Por último, uma questão relacionada com a matriz da história, através das relações entre o trabalho e o tempo. A abordagem ergológica propõe a caracterização de três grandes dimensões do tempo (Schwartz, 2003), cuja passagem é bem diferenciada e que atravessam o trabalho num espaço tripolar (ver figura 2):

 o “tempo mercantil”, um tempo efémero, quase instantâneo, subjugado aos constrangimentos mercantis;

 o “tempo da vida pública, político, jurídico”, um tempo de longa duração, correspondendo ao tempo dos valores do bem comum e à preservação dos princípios que regulam a vida colectiva;

 o “tempo ergológico”, ou tempo da actividade, relativo ao “tempo necessário para produzir ‘entidades colectivas relativamente pertinentes’” (Schwartz & Durrive, 2003, p. 255, tradução livre). É um tempo de aprendizagem do colectivo, o tempo de construção de um património comum, partilhado.

Mas, se a abordagem ergológica procura dar visibilidade ao tempo de construção de um património de saberes e de estratégias, na actividade, reabilitando o hic et

nunc neutralizado pela “disciplina epistémica”, qual o lugar reservado ao “aqui”

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A resposta a esta questão poderia exigir também a explicitação do que designamos como experiência. E dizemos isto, porque Schwartz (2000a) distingue a “experiência de trabalho” do “trabalho como experiência” (p. 335, tradução livre). A primeira designa o tempo de presença numa situação de trabalho, enquanto que a segunda reconhece que o trabalho convoca sempre escolhas e constitui experiência, sem o “elogio unilateral da antiguidade” (p. 337, tradução livre).

nesta perspectiva? Entendemos o “aqui” como o espaço de vida em contexto de trabalho, um espaço heterogéneo, caracterizado pela sua dimensão física, mas também pela intencionalidade dos que o organizam, pelas condições reais de trabalho que lhe estão associadas.

Um autor frequentemente invocado na tradição da abordagem ergológica, Leroi- Gourhan (1965, ver figura 1, “eixo do invívivel”), pode sobre este assunto ser convocado, a propósito do que designou como “espaço vital”: “um espaço ordenado cujos limites são tangíveis num tempo compatível com a rotação das actividades quotidianas” (p. 182, tradução livre). O espaço que nos importa reflectir a partir da abordagem ergológica é, então, este espaço das actividades quotidianas, um quadro de vida considerando também as condições oferecidas. Esta questão é tanto mais pertinente para nós, tendo em conta que a actividade dos motoristas se desenvolve sempre em espaços pré-definidos, isto é, num espaço heteronimamente traçado e decalcado sobre um espaço mais amplo – o “espaço público”. Que conflitos no uso do espaço são geridos na actividade? Como é que a actividade constrói o seu próprio território a partir de um espaço partilhado?

A “disciplina ergológica” insurge-se contra uma posição de “exterritorialidade”, isto é definida à distância do lugar onde os valores imanentes à actividade são retratados, ou seja, onde o investigador “assimptoticamente se situa num lugar que não se encontra em lugar algum” (Schwartz, 2000c, p. 51, tradução livre). Consideramos, todavia, que tal não exclui a possibilidade da abordagem ergológica, assim como a tradição da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, poderem mesmo admitir a noção de “território” na sua abordagem do trabalho.

Antes, porém, de conhecer o território daqueles cuja actividade analisámos, no âmbito deste nosso trabalho, começamos por uma abordagem do terreno de análise que definimos enquanto investigadores: o sector dos transportes colectivos rodoviários de passageiros, cuja caracterização é desenvolvida no capítulo seguinte.

CAPÍTULO II