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A intervenção em contexto real no quadro de um novo paradigma da formação

CAPÍTULO I ENCONTROS SOBRE A “ACTIVIDADE”: OS CONTRIBUTOS

2. A especificidade da abordagem da ergonomia e da psicologia do trabalho da

2.2 A intervenção em contexto real no quadro de um novo paradigma da formação

O contributo de Catherine Teiger e de Antoine Laville na construção deste novo paradigma de investigação (Teiger & Laville, 1991), que remonta aos anos ‘70/‘80, é remarcável na história da tradição da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, não tendo deixado indiferente outras perspectivas contemporâneas dessa época, como é o caso da abordagem ergológica, como veremos mais adiante.

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A referência a estes actores compreendia responsáveis sindicais, membros das comissões de higiene, segurança e condições de trabalho (do francês, “Comité d'Hygiène, de Sécurité, et des Conditions de Travail” - CHSCT), e “preventores” (Lacomblez & Teiger, 2007).

Reconhecido como um novo paradigma, na medida em que representou uma ruptura epistemológica (Kuhn, 2001) face ao que eram, até então, as concepções e práticas dominantes de intervenção a partir da formação dos trabalhadores para a análise das suas condições de trabalho, importa situar agora globalmente os seus pressupostos edificadores.

Um dos pressupostos estruturantes deste paradigma consiste na assumpção de que os saberes científicos não detêm o ónus da condução da intervenção em contexto real, sendo necessário também integrar o ponto de vista dos trabalhadores e os seus saberes, sem qualquer julgamento apriorístico face à sua maior ou menor importância relativa e à sua hierarquização. Trata-se, sim, de criar condições para o diálogo entre saberes distintos protagonizados por diferentes actores (investigadores e, pelo menos numa primeira fase, responsáveis sindicais) e para o “cruzamento” da investigação e formação dos actores com a transformação das suas situações de trabalho (Lacomblez, 2001). Além disso, a formação com actores não-ergónomos admite, não só que a aquisição de um outro ponto de vista sobre a actividade os coloca numa posição privilegiada para intervirem, como dar-lhes condições para o fazer legitima a vontade de construção de uma “comunidade científica alargada” (Oddone, Re & Briante, 1981) de actores preocupados com a transformação das suas situações de trabalho, a partir da apropriação dos princípios de análise do trabalho.

O confronto com outros saberes, outras formas de pensar a formação e a intervenção em contexto real de trabalho, e também a produção de conhecimentos sobre as relações entre o trabalho e a saúde, sintetiza um dos principais contributos que associamos a este projecto de formação dos actores

para e pela acção (Lacomblez, 2001).

A acção de intervenção sobre as situações de trabalho, partilhada por investigadores e trabalhadores, exorta por isso a convicção de que ela requer a aquisição de um outro ponto de vista sobre essas situações. Catherine Teiger enquadra esta reflexão na perspectiva da filosofia da acção, partilhando a leitura de Sartre, de que

a decisão da acção de mudança procede da mudança de ponto de vista, de uma abertura conceptual e imaginária sobre um outro possível e esta decisão de acção de

[Ora,] não é por termos consciência de que uma situação é insuportável que decidimos mudá-la, mas é no dia em que concebemos que uma situação pode mudar, que nos vamos dar conta que a situação é insuportável. (Sartre, 1943, citado por Teiger, 1993, p. 4, tradução livre)

Para além desta orientação da filosofia de acção, a intervenção nesta perspectiva é igualmente coerente com a abordagem construtivista piagetiana, que admite que o conhecimento corresponde não a uma cópia do real, mas a um agir sobre ele transformando-o, de modo também a compreendê-lo (Piaget, 1974). A influência deste princípio na formação traduz-se na assumpção de que a acção não é padronizada, pelo contrário, é precedida de uma transformação das representações sobre a situação, quando instigada pela análise do trabalho. É nesse momento que a concepção de “um outro possível” relativamente à vida em contexto de trabalho se constrói e orienta o agir.

Este paradigma demarca-se, assim, de uma formação circunscrita a uma transmissão de conhecimentos de especialistas para não-especialistas, afirmando-se, em alternativa, como uma situação de co-construção do conhecimento e de co-aprendizagem, a partir do encontro entre estes actores e da confrontação dos seus saberes.

Alguns contributos, provenientes de contextos distintos, foram determinantes na consolidação deste paradigma, nomeadamente a proposta de construção de uma “comunidade científica alargada” na produção de conhecimentos sobre o trabalho e a saúde, avançada pelos autores italianos Oddone, Re e Briante (1981), como referimos anteriormente, assim como a perspectiva educativa do autor brasileiro Paulo Freire (2005), de educação popular, que questiona uma concepção assimétrica dos saberes formais e dos saberes construídos nos diferentes contextos de vida.

A análise das situações de trabalho não subtrai, portanto, do seu processo o ponto de vista dos próprios trabalhadores, na “redescoberta da sua experiência” (Oddone, Re & Briante, 1981) e na negociação dos compromissos de intervenção. Falar da intervenção, nesta perspectiva, é concebê-la como um processo de co- construção (Le Moigne, 1995; Noulin, 1995; Ramaciotti & Blaire, 1998) ou como uma dinâmica de aprendizagem recíproca, tendo em vista a transformação das condições de trabalho, bem como a transformação do lugar ocupado por “não- especialistas” na interpelação dos saberes científicos e no seu enriquecimento.

Este projecto de intervenção traduz, afinal, o que De Keyser (1982) resumiu como um dos principais contributos de Faverge – uma “política do olhar” (p. 93, tradução livre): pelo reconhecimento da dinâmica de relações que os trabalhadores mantêm com o seu meio; pela valorização dos saberes ancorados na experiência concreta; e pela recusa de uma abordagem determinista.

Essa “política do olhar” (De Keyser, 1982, p. 93, tradução livre) não pode, contudo, ser desvinculada de uma orientação metodológica específica. Um dos desafios colocados por este projecto consiste, nomeadamente, em prolongar o diálogo estabelecido por Pierre Naville e Henri Wallon com a abordagem behaviorista:

se a introspecção [e a consciência] não pode servir de fundamento à psicologia, como alguns ainda o pretendem, é porque ela corresponde a um simples testemunho, uma simples manifestação psíquica entre muitas outras (…); ela deve, por isso, ser enquadrada num dispositivo experimental crítico e rigoroso. (Wallon, 1938, citado por Naville, 1942, p. 245, tradução livre)

Como refere Lacomblez (2011), na obra “L’analyse du travail”, que Ombredane e Faverge publicaram em 1955, se, por um lado, “é perfeitamente claro que a sua abordagem não releva de qualquer concepção estreita de um behaviorismo que não conteria nada mais do que um determinismo mecanicista” (p. 4, tradução livre), trata-se, por outro lado, de uma análise que recusa a aceitação do comportamento como manifestação de uma vontade individual, como uma “liberdade” isenta de quaisquer constrangimentos. Ora, se o contexto conta, temos, por conseguinte, que o analisar: observar o trabalho nas suas situações concretas, não consubstanciando a pesquisa a uma mera recolha “(…) de dados fornecidos pela consciência individual” (Rolle, 1997, p. 229, tradução livre), designadamente, através de entrevistas; e não limitar a sua análise no tempo, mas enquadrá-la antes “num conjunto de durações significativas” (Rolle, 1997, p. 229, tradução livre). Realça-se, assim, o carácter essencial de uma categoria de análise cara a Pierre Naville: a que associa o estudo do “trabalho concreto” ao do “trabalho abstracto”, isto é, do significado que o primeiro assume no historial das estratégias próprias à empresa em que se insere (Naville, 1970).

3. Uma proposta de síntese do projecto-herança desta tradição científica