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CAPÍTULO II NEM TUDO NA MOBILIDADE É EFÉMERO: QUE

3. Desideratos de uma vida móvel: entre mobilidades, transportes, e

4.2 Para uma caracterização do sector: números, discursos e outros registos

4.2.1 Uma abordagem em contexto internacional

Os dados que permitem caracterizar o sector dos transportes rodoviários de passageiros, ao nível internacional, são produzidos de forma irregular e, por esta

razão, são também escassos. Aliás, a comunicação da Comissão Europeia, de 30 de Setembro de 2009 (Comissão das Comunidades Europeias, 2009c)87, dedica um ponto específico de acção à recolha de dados e estatísticas no domínio dos transportes urbanos e da mobilidade, sustentando que “estes [dados, estatísticas, informações] faltam actualmente, mas são necessários para a boa concepção de políticas, por exemplo no domínio dos concursos para serviços de transportes públicos, da internalização dos custos externos ou da integração dos transportes e do ordenamento do território” (p. 10).

Pese embora este constrangimento, apresentaremos aqui alguns dos dados a que nos foi possível aceder, tendo como critério a sua coerência com as questões que atravessam o nosso trabalho.

O aumento da mobilidade e o incremento das distâncias percorridas quotidianamente faz parte já do domínio das evidências: constata-se uma maior amplitude das deslocações de passageiros entre 1995 e 2003 (aumento de cerca de 14%) (Eurostat, 2006), com um recurso privilegiado ao automóvel.

A utilização dos transportes públicos na UE faz-se, de modo predominante, através dos transportes colectivos rodoviários, que constituem o maior subsector e o mais importante em todos os Estados-membros (ver figura 5), mesmo se a viatura particular constitui, sem excepção, o modo de transporte privilegiado. Em consonância com estes indicadores, verifica-se também que cerca de 88% dos trabalhadores dos transportes exerciam, em 2006, actividade no quadro deste subsector (European Agency for Safety and Health at Work, 2011).

Viaturas particulares

Figura 5. Utilização dos diferentes modos de transporte, por Estado-membro (dados de 2003)

(fonte: Eurostat, 2006).

Apesar da abertura do sector à concorrência, em coerência com as políticas supranacionais europeias, encontramos situações muito diferenciadas no seio de cada Estado-membro. Globalmente, é considerado que a abertura do mercado teve um impacto positivo, tendo em conta as estratégias de regulação dos transportes públicos prosseguidas (Comissão das Comunidades Europeias, 2007)88:

 “Mercados fechados: em que os operadores são protegidos por direitos exclusivos e nunca enfrentam a concorrência de outros operadores;

 Concorrência controlada, em que os direitos exclusivos vigoram por períodos fixos, sendo concedidos em regime de concorrência entre os operadores;

 Desregulamentação, caracterizada pela inexistência de direitos exclusivos”. A perspectiva da Comissão Europeia, reflectida nesta comunicação, é a de que a “concorrência controlada” pode favorecer a diminuição dos custos dos serviços prestados, sem comprometimento da missão de serviço público que lhes é imanente. Já os “serviços desregulamentados”, cujo exemplo com mais destaque teve lugar no Reino Unido, apresentam normalmente tarifas mais baixas, mas com tendência a serem menos atractivos (ao nível das exigências de fiabilidade, em termos de cumprimento dos horários, da frequência ou até dos itinerários). Os “mercados fechados”, por sua vez, seriam igualmente atractivos, mas associados

88 [COM(2000) 7 final, pp. 4-5] Autocarro Eléctrico e metropolitano Comboio

a um custo mais elevado dos serviços prestados, relativamente à situação de “concorrência controlada” (Comissão das Comunidades Europeias, 200789)

Em Portugal, os serviços de transporte público por autocarro regionais/inter- regionais são realizados particularmente por empresas privadas, com livre acesso ao mercado. Na área metropolitana do Porto, os serviços de transporte urbanos no centro da cidade são prestados em regime de “mercado fechado” mas, em zonas urbanas de menor dimensão, observa-se uma utilização crescente do sistema de “concorrência controlada”, através do processo de concurso para a exploração de uma determinada linha de transportes e da atribuição de direitos de exploração, durante um período previamente fixado, findo o qual o acesso ao mercado será novamente aberto (Ferreira, 2003).

Apresentamos de seguida um quadro (ver quadro 2), elaborado a partir da comunicação da Comissão Europeia já referida (Comissão das Comunidades Europeiras, 200789), que reúne informação sobre a organização e regulação do mercado do transporte público de passageiros na Comunidade Europeia90.

89

[COM(2000) 7 final].

90

1

3

4 Quadro 2

Organização da prestação de serviços no domínio dos transportes públicos de passageiros na Comunidade

Estado-membro Serviços de autocarro

Regionais/interregionais Serviços urbanos de autocarro

Áustria

Mercado fechado (maioria de operadores públicos).

Bélgica

Mercado fechado (maioria de operadores públicos, com alguns casos de subcontratação a operadores privados).

Alemanha

No caso dos serviços que necessitam de subvenção, o sistema é de concorrência controlada (concursos para a atribuição de direitos exclusivos).

No caso dos serviços auto-financiados, a concorrência para a atribuição de direitos exclusivos é limitada. Coexistência de operadores públicos e privados.

Dinamarca Os operadores podem candidatar-se a licenças que

atribuem direitos exclusivos; a esses direitos não está associada qualquer compensação financeira.

O sistema de concurso já foi adoptado pela maioria das autoridades, embora duas continuem a reservar o mercado ao sector público.

França Os serviços de autocarro de longo curso são em número

muito reduzido.

Ile de France: mercado fechado, controlado por um grande monopólio público e alguns monopólios privados de pequena dimensão.

Resto da França: concorrência controlada

(concursos) na maioria dos casos, com uma grande variedade de tipos de contratos.

Finlândia

Sistema baseado na concessão de licenças a pedido dos operadores – uma forma de concorrência controlada.

Helsínquia: 30% dos serviços de autocarro são adjudicados por concurso; o objectivo é 100% até 2001.

Turku: em 2001 os serviços serão objecto de concurso. Tampere: mercado fechado, operador do sector público.

Grécia Mercado fechado. O operador privado - KETL - detém

uma posição de monopólio. Mercados fechados, coexistência de operadores públicos e privados.

Itália Coexistência de operadores públicos e privados num

sistema de mercados fechados - em mudança para o sistema de concorrência controlada.

Coexistência de operadores públicos e privados num sistema de mercados fechados - em mudança para o sistema de concorrência controlada.

Irlanda Mercado desregulamentado de facto, com concorrência

entre operadores públicos e privados. Mercados fechados, maioria de operadores do sector público.

Luxemburgo

Não há serviços de autocarro interregionais. Mercado fechado, operadores essencialmente do sector público, com um nível reduzido de subcontratação a privados.

1

3

Estado-membro Serviços de autocarro

regionais/inter-regionais Serviços urbanos de autocarro

Países Baixos Predominância de mercados fechados e maioria de operadores do sector público. Alguma experimentação com o sistema de concorrência controlada.

Portugal Sobretudo empresas privadas com acesso livre ao

mercado.

Lisboa e Porto são mercados fechados. Nas zonas urbanas de menor dimensão, utilização crescente do sistema de concorrência

controlada.

Espanha Atribuição de direitos exclusivos, com base em

concursos, sobretudo, mas não exclusivamente, a empresas privadas.

Sobretudo mercados fechados, controlados por operadores públicos, nos centros urbanos; maioria de operadores privados, seleccionados com base no sistema de concorrência controlada (concurso), nas zonas suburbanas.

Suécia

Concessão de linhas a operadores privados sem direitos exclusivos.

Desde 1989, os mercados estão de modo geral abertos à concorrência.

Concursos para as linhas ou redes, assumindo geralmente o sector público os riscos associados às receitas.

Maioria de operadores do sector privado.

Reino Unido

Mercado desregulamentado.

Londres: concorrência controlada para os serviços de autocarro (concursos para linhas específicas, que podem ser auto-financiadas ou necessitar de subvenção).

Resto da Grã-Bretanha: desregulamentação dos serviços de autocarro.

Irlanda do Norte: mercado fechado.

A experiência britânica de liberalização plena dos serviços de autocarro91 constitui uma situação de excepção, uma que “permite a concorrência directa ‘na estrada’ e a formação livre dos preços. Não há planificação dos serviços por um organismo central (exceptuando a adjudicação de alguns serviços socialmente necessários). As salvaguardas de qualidade limitam-se a requisitos mínimos de segurança” (Comissão das Comunidades Europeias, 1995, p. 4792).

Contudo, os custos ao nível das condições de trabalho, assim como ao nível da satisfação das necessidades dos utilizadores não deixaram de se fazer sentir: desde “reduções directas sobre os salários de base, uma melhor utilização do pessoal temporário, uma maior rotatividade e pessoal menos qualificado (e menos caro) para os serviços de minibus” (Parlement Européen, 1998, p. 25, tradução livre); até às consequências para os utilizadores relacionadas com a falta de integração dos diferentes modos de transportes (articulando os serviços rodoviários e ferroviários), ou com a falta de “informação aos passageiros [que] desapareceu virtualmente devido à concorrência entre as companhias” (Comissão das Comunidades Europeias, 1995, p. 4792).

No âmbito de um estudo realizado para a Comissão Europeia, pelo grupo IPSOS INRA (2007), sobre a satisfação/insatisfação93 com os transportes urbanos94, entre outros serviços de interesse geral na Europa, podemos ver a avaliação feita pelos utilizadores deste tipo de serviços. O estudo foi conduzido nos 25 países95 da União Europeia.

91

Foi no quadro do “Transport Act” de 1985, assumido no Governo de Margaret Thatcher, que foram liberalizados e privatizados os serviços de transporte por autocarro, urbanos e regionais, na Grã-Bretanha à excepção de Londres (atribuição de serviços por concurso) (Knowles & Hall, 1998).

92

[COM(1995) 601 final].

93

O conceito de satisfação usado no âmbito deste estudo foi bastante discutido: satisfação relativamente a uma característica do serviço ou ao serviço de modo global? Satisfação relativamente ao último serviço de transportes prestado ou satisfação “cumulativa”, resultante da avaliação de vários serviços? Satisfação em relação a um operador específico ou relativamente ao sector? Apesar de as opções assumidas não serem isentas de debate, foram definidos como critérios: a avaliação do serviço global e também das suas características particulares; a avaliação da satisfação “cumulativa”, com referência aos últimos 12 meses; e os participantes foram ainda orientados para responder a questões sobre o fornecedor principal dos serviços.

94

Os transportes urbanos que foram considerados incluem os serviços de eléctrico, autocarro, metro, e comboio.

95

Considerando que o relatório do estudo a que fazemos referência data de Maio de 2007, compreende-se o motivo pelo qual não são integrados dois Estados-membros, a Roménia e a

44.5 45.6 52 52.9 52.6 57.9 60.2 63.1 64.4 65.9 66.1 9.4 10.3 8.4 6.9 5.3 4.4 5.4 4.6 3 4.1 3.5 Transporte urbano Transporte interurbano Telefone fixo Correios Electricidade Gás Água Banco Seguro Telemóvel Transporte aéreo EU25 Satisfeito Não Satisfeito

Figura 6. Transporte urbano: percentagem de utilizadores satisfeitos vs insatisfeitos (dados de

2006) (fonte: IPSOS INRA, 2007)

Como é possível observar-se na figura 6, os serviços de transporte são os que reúnem, no conjunto dos países da UE25, a maior taxa de insatisfação, manifestada pelos seus utilizadores, comparativamente com outros “serviços de interesse económico geral”.

Desagregando os valores apresentados, por país, encontramos diferenças não negligenciáveis entre eles (ver figura 7).

21.9 23 25 29.4 33.7 35.4 37.7 39.2 39.5 40.3 40.4 42.1 42.7 43.3 44.5 45.2 46.4 49.2 49.7 52.3 53.6 57.1 57.4 57.5 61 62 63.9 65.6 31.5 53.8 3.7 15.9 13.7 10.7 22.2 10.8 17.3 14.7 5.1 16.7 18.8 6.7 9.4 8.4 12.4 7.2 10.9 7.8 7.8 3.9 6.8 9.4 7.2 4.2 5 5 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 SK CY NL MT IT ES HU PL SE NMS PT DK CZ UK E… E… SI FR EE DE EL BE LT LU AT LV FI IE Satisfeito Não Satisfeito

Figura 7. Transporte urbano: percentagem de utilizadores satisfeitos vs insatisfeitos por país

(2006) (fonte: IPSOS INRA, 2007).

Os utilizadores que se mostram mais satisfeitos, de acordo com o gráfico acima apresentado, são os da Irlanda, Finlândia, Letónia, Áustria, Luxemburgo, Lituânia, Bélgica, Grécia, Alemanha, Estónia, França e Eslovénia, tendo como referência a média dos EU25 (44.5%).

Olhando especificamente para Portugal, é possível observar-se que a percentagem de utilizadores satisfeitos (40.4%) é inferior à média europeia, ainda que a percentagem de insatisfação seja inferior (PT: 5.1%; EU25: 9.4%).

Fora do contexto europeu, a existência de mercados de transporte não regulados é também observável em várias cidades de países ditos em desenvolvimento, em África96, Ásia, e América Latina, cujos serviços são prestados de forma dominante por empresas privadas, e os meios utilizados, para além do tradicional autocarro, podem ser mini-bus97, vans, ou viaturas particulares (Vuchic, 2005). Estes sistemas assumem um carácter precário, apesar da elevada procura, tendo em conta, nomeadamente: a prioridade atribuída à redução do preço das tarifas, em detrimento de um investimento na segurança, fiabilidade e conforto; a baixa capacidade de investimento em modos de transporte considerados mais eficientes em zonas de elevada densidade populacional como o Bus Rapid Transit (BRT) (já referido e utilizado, nomeadamente, no Brasil, na Colômbia e no Chile); e a falta de regulação da própria circulação rodoviária (inexistência, por vezes, de vias de circulação próprias para os veículos de transporte colectivo de passageiros).

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Remetemos aqui o leitor para o artigo de Cunha e Lacomblez (2008), publicado na revista Laboreal, onde se traça, ainda que de forma muito sintética, o sistema de transportes colectivos rodoviários em Maputo (Moçambique) e se dá conta de uma exploração dominada por uma profusão de “chapas”, tal como são comummente designados os veículos de transporte de passageiros que se assemelham a “carrinhas” ou “vans”, caracterizados por uma grande flexibilidade e que competem entre si, provocando um sobredimensionamento da oferta em determinados locais e horas, e falhas em locais e horários considerados menos atractivos.

Em Portugal, o conceito de “chapas” faz parte também do léxico da actividade no sector dos transportes colectivos rodoviários de passageiros, mas designa ora o serviço que o motorista faz, ora os serviços feitos por um autocarro, ao longo do dia. Uma especificidade inerente ao uso deste conceito é o facto de, em contexto rural, ser comum a chapa do motorista coincidir com a chapa do autocarro (um autocarro atribuído a cada motorista, que por vezes lhe serve também de transporte nas deslocações casa-trabalho, não chegando portanto a ser recolhido na empresa), enquanto que, em contexto urbano, é frequente haver uma chapa do motorista e uma chapa da viatura distintas, tendo em conta também que os serviços de transporte realizados por cada autocarro ultrapassam o número de horas de serviço de um motorista.

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É de assinalar a interessante relação estabelecida por Knowles e Hall (1998), entre o recurso crescente à utilização de mini-bus na prestação de serviços de transporte público e as políticas de desregulamentação, sugerindo mesmo que os mini-bus são um símbolo paradigmático deste fenómeno. Os autores destacam o facto de “as razões deste aumento [de mini-bus] num período de tempo relativamente curto reflectirem a necessidade das empresas estabelecerem e manterem um ‘acréscimo de competitividade’ na preparação para as novas condições de mercado da desregulação” (Knowles & Hall, 1998, p. 88, tradução livre). Globalmente, os mini-bus permitem aumentar a frequência do serviço, ou preservar o seu cumprimento; penetrar em zonas de exploração anteriormente inacessíveis; permitir a entrada e saída de passageiros de forma flexível (não é necessária a criação de desvios relativamente às vias de circulação para a paragem dos autocarros, ou seja, de uma área de embarque e desembarque de passageiros, já que estas operações se fazem também de forma mais célere).

É curioso notar o efeito das políticas de desregulação e liberalização mesmo a este nível: a flexibilidade na prestação do serviço com mini-bus (por exemplo, paragem do autocarro mesmo em locais não previstos e devidamente assinalados como tal) e a possibilidade de com este tipo de veículos mais facilmente se conseguir gerir os constrangimentos temporais, acelerando em

A nossa análise prosseguirá agora com uma descida a um nível mais próximo do terreno de investigação que privilegiámos, com uma caracterização do sistema de transportes em contexto nacional.