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A construção de um “colectivo de trabalho” alinhado: primeira fase de

CAPÍTULO III ANDAR NA LINHA: A ACTIVIDADE DOS MOTORISTAS NUMA

3. Mobilidade colectiva e produção colectiva da mobilidade

3.3 A construção de um “colectivo de trabalho” alinhado: primeira fase de

As características das empresas que intervêm neste percurso são apresentadas no quadro 5. Por uma questão de preservação do anonimato das empresas envolvidas e respectivas carreiras, optámos por identificá-las da seguinte forma:

Quadro 5

Caracterização dos três operadores de transporte que exploram a linha em análise Operadores

na linha em análise

Carreiras Princípios de exploração Bilhética/Tarifário

A: Empresa pública Carreira 1: 45 paragens; 42 serviços em cada sentido

Carreira regular urbana, explorada sob a exigência de cumprimento de determinadas obrigações de serviço público, sendo em contrapartida atribuídas compensações (“indemnização compensatória”) pelos serviços de transporte prestados neste regime.

Bilhética e tarifário próprios B: Empresa privada Carreira 2: 65 paragens; 51 serviços em cada sentido

Carreira regular urbana. Acordo de exploração com a empresa pública.

As obrigações implícitas no acordo referem-se à quantidade e

qualidade das prestações (diariamente, têm que ser

realizados 51 serviços, traduzidos num número total de quilómetros a percorrer, e dentro do horário e frequências definidas pelo operador público).

A bilhética é da empresa A e a receita proveniente da venda de bilhetes é entregue a esta empresa, que paga, em

contrapartida, ao operador privado um valor/Km percorrido. Mesma bilhética e tarifário da empresa pública C: Empresa privada Carreira 3: 55 paragens; 50 serviços em cada sentido

Carreira regular urbana, atribuída e regulada pelo respectivo município.

Bilhética e tarifário próprios

Nota. Dados de 2004 (Fonte: Cunha, 2005).

Uma das questões que acalentou o debate durante muito tempo no sector, e que é referida no quadro 5, prende-se com a atribuição de indemnizações compensatórias117 pelo Estado aos operadores públicos, decorrente da prestação de serviço público. O operador público a que fazemos referência no quadro mantinha actividade (e continua a manter), para além da sua área de actuação

117

Relativamente ao sector dos transportes terrestres de passageiros está prevista a atribuição de indemnizações compensatórias em resultado de obrigações de serviço público (OSP) (obrigações de transportar, de explorar e tarifária que os operadores não assumiriam se considerassem apenas os seus interesses comerciais) que os operadores são obrigados a cumprir. Esta forma de

privilegiada (centro urbano do Porto), isto é, numa zona situada mais na periferia e, neste caso, em concorrência com os operadores privados, que não se encontravam adstritos ao ressarcimento da diferença entre os custos operacionais dos serviços de transporte e os preços sociais pagos pelos utilizadores desses serviços.

A ANTROP fala, neste caso, de um risco de “distorção da concorrência”, sustentando que são oferecidas condições desiguais aos transportadores para exploração dos percursos: aos operadores públicos são atribuídos subsídios públicos pelo cumprimento de obrigações de serviço público, enquanto que os operadores privados que detêm concessões de exploração em que se exige também o cumprimento de obrigações de serviço público, obtêm apenas a “compensação” resultante do tarifário dos serviços, que fica, no entanto, aquém dos custos reais do serviço (ANTROP, 2002; 2003).

O debate, esse, não se circunscreve à distinção de “tratamento” dos operadores públicos relativamente aos operadores privados. A diferença nas atribuições, por parte do Estado financiador, de indemnizações compensatórias entre os operadores públicos das áreas metropolitanas de Lisboa (“Carris”) e do Porto (“STCP”)118, com vantagem expressiva para o primeiro operador, bem como a aparente falta de visibilidade dos critérios que justificam os montantes atribuídos, têm permeado a discussão sobre a sustentação pública destas empresas.

Ainda que se trate de uma discussão transversal no sector, no caso específico desta linha e, em particular, do operador privado cuja actividade analisámos, a concorrência com o operador público não se fazia sentir, uma vez que a exploração se enquadrava no âmbito do acordo de cooperação estabelecido, sendo-lhe atribuído um valor/Km percorrido, como compensação do serviço público prestado, independentemente do número de passageiros transportados.

A nossa análise da actividade dos motoristas neste percurso, conduzida sob o ponto de vista da actividade do “operador privado B” (ver quadro 5) tinha como

118

No ano de 2003, quando iniciámos o nosso trabalho empírico, os valores correspondentes a indemnizações compensatórias para a Carris e para a STCP foram, respectivamente, de 40.916.478€ e de 12.376.201€. Os valores mais recentes de que dispomos reportam-se ao ano de 2009, tendo o montante atribuído sido de 53.923.838€, para a Carris; de 20.113.990€ para a STCP; e de 13.365.631€ para o Metro do Porto (Fonte: IMTT - http://www.imtt.pt).

objectivo compreender como era gerida a prestação do serviço num percurso de exploração partilhada.

No quadro seguinte (ver quadro 6) apresenta-se uma breve descrição do tempo de percurso e dos objectivos inerentes à actividade dos motoristas nas três empresas.

Quadro 6

Tempo prescrito de viagem e os objectivos da actividade dos motoristas das três empresas

Operadores Tempo de percurso Objectivos da actividade dos motoristas

Empresa A

43 minutos, em média, para a realização do percurso

A prestação de um serviço público de transportes; e o aumento do número de passageiros, tendo em vista a promoção do uso do transporte público, mais do que a receita proveniente da circulação de um maior número de passageiros.

Empresa B

Entre 60 minutos e 63 minutos, para a realização do percurso

Objectivo centrado no número de quilómetros definido e no horário prescrito, tendo em conta o cumprimento das exigências previstas pelo acordo estabelecido com a empresa A.

Empresa C

Entre 45 minutos e 60 minutos, para a realização do percurso

Transportar o maior número possível de passageiros, uma vez que a receita alcançada provém da venda de bilhetes.

Considerando o conteúdo do quadro 6, a questão que então colocámos consistia em saber como era coordenado e regulado o serviço de transportes nesta linha, tendo em conta que, mesmo se os objectivos de cada operador eram distintos, o percurso era em grande parte comum e os horários dos serviços muito próximos. Efectivamente, se o percurso era integralmente comum no caso dos operadores privados (empresas B e C) e, em parte comum, no caso do operador público (empresa A), as análises da actividade dos motoristas foram conduzidas distinguindo a parte do percurso a montante do ponto de encontro das três empresas, ou seja, na parte comum às empresas B e C (primeira parte do percurso), do restante percurso da linha, quando a exploração passava a ser partilhada pelas três empresas (segunda parte do percurso).

Naquela que identificamos como a primeira parte do percurso, foi possível observar que tendo as empresas B e C a origem e o destino do percurso no mesmo local; que partilhavam quase todos os locais de paragem; e sabendo que

empresa C consistia em iniciar sempre o percurso alguns minutos antes dos da empresa B. Isto significa que a sua referência para iniciar o percurso era, sobretudo, a actividade dos motoristas da empresa B, e não somente o horário prescrito nas suas escalas de serviço. Esta estratégia permitia-lhes ganhar uma certa vantagem relativamente aos motoristas da empresa B, pela oportunidade de seguirem à frente, conseguirem transportar mais passageiros e gerarem mais receita, tal como preconizavam os objectivos definidos.

O que nos parece importante referir é que, em lugar da competitividade a que, à partida, poderíamos pensar que conduziria esta situação de co-actividade (entre os motoristas das empresas B e C), observámos estratégias que correspondem a compromissos colectivamente construídos e validados.

De facto, os motoristas da empresa B não só conheciam a estratégia dos motoristas da empresa C, como facilitavam a sua concretização, procurando não os ultrapassar quando deles se aproximavam ou, nas situações em que os motoristas da empresa C não conseguiam sair mais cedo do terminal para iniciarem a carreira, frequentemente acabavam por permitir a ultrapassagem, para que continuassem a seguir à frente no percurso.

A essência deste compromisso construiu-se na história de “vivência partilhada” num espaço comum, e manteve-se porque os objectivos associados à actividade dos motoristas de cada uma das empresas, por não serem incompatíveis nem concorrentes, o permitiam. Havia, no entanto, uma excepção que comprometia a preservação deste compromisso, e que correspondia à situação em que os motoristas da empresa B se encontravam atrasados. Relembramos que um dos critérios de cumprimento do acordo de exploração estabelecido com a empresa A consistia na realização do número de quilómetros, e dentro dos horários definidos por esta empresa. Por esta razão, caso se encontrassem atrasados, estes motoristas desenvolviam estratégias susceptíveis de minimizar o atraso, as quais passavam frequentemente por ultrapassar os motoristas da empresa C durante o percurso ou por não lhes ceder passagem, considerando que a sua prioridade nesses momentos era, sobretudo, recuperar o “tempo perdido”.

A segunda parte do percurso corresponde à entrada em circulação no percurso do autocarro do operador público.

Figura 11. Representação gráfica do ponto a partir do qual o percurso passa a ser partilhado pelas

três empresas.

O ponto de confluência e, frequentemente, de encontro das três empresas, atendendo aos horários praticados, pode ser analisado com mais pormenor a partir da figura 11. Este foi também considerado um ponto crítico do percurso, pelos motoristas, pela existência de semáforos no cruzamento em que o autocarro da empresa A entrava no percurso e passava a partilhá-lo com as empresas B e C.

A existência de um semáforo naquele local constituía, simultaneamente, um elemento da situação facilitador e interferente na actividade dos motoristas das empresas B e C. Para os primeiros, caso tivessem acumulado um atraso ao longo dos serviços realizados, a entrada à frente dos motoristas da empresa A revelava- se um factor de constrangimento, pois nesta parte do percurso as vias de circulação do autocarro são significativamente mais estreitas, não permitindo a ultrapassagem. Por outro lado, a circulação à sua frente era perspectivada como um factor facilitador, considerando que o tempo para a realização do percurso era sentido como escasso, mesmo sem quaisquer imprevistos.

O facto de os horários serem muito semelhantes implicava que, não raras vezes, os três autocarros seguissem em conjunto. Por esta razão, também para os motoristas da empresa C, cujo objectivo consistia em transportar o maior número possível de passageiros, a ordem de circulação na linha era determinante na prossecução dos objectivos definidos pela sua empresa.

A

Ora, se é verdade que esta situação não afectava substancialmente a empresa A, por aos seus serviços se associar uma orientação marcadamente de interesse público, o que não significa que ela estivesse ausente da actividade dos motoristas das outras empresas, o mesmo não acontecia no caso da empresa privada C, cuja actividade se inscrevia de forma mais visível numa lógica de rentabilidade do serviço prestado.

No decurso da sua actividade, os motoristas da empresa A procuravam, sempre que fosse possível, facilitar a passagem no percurso aos motoristas das empresas B e C. Estas normas implícitas, construídas em contexto real de trabalho, foram sendo consolidadas e mantidas pelo seu sentido colectivo. O que se torna relevante neste estudo é o facto de, na gestão da sua actividade, os motoristas de cada uma das empresas terem em conta os seus objectivos, mas não sem considerar igualmente os outros e a orientação que foi definida para a sua actividade.

Esta estratégia colectiva empreendida pelos motoristas articulava duas orientações distintas da actividade: uma orientação para aquelas que são as suas prioridades, considerando também as prioridades dos motoristas das outras empresas, mas também uma orientação para os beneficiários destes serviços. Se os motoristas tinham horários prescritos muito semelhantes entre si, os clientes aparentemente perdiam a vantagem de terem duas ou três alternativas de transporte (dependendo do percurso que fazem) para o mesmo destino. O desfasamento de horários entre os autocarros das três empresas que se procurava introduzir em contexto real, pelas estratégias colectivas desenvolvidas pelos motoristas, correspondia a um escalonamento da passagem dos autocarros e, consequentemente, à “oferta” de uma maior frequência de transporte. É sobre a circunstância de exercerem a sua actividade num percurso partilhado que cada um dos motoristas das três empresas ponderava sobre estas duas possíveis orientações da sua actividade, que podiam, naquele contexto, conjugar-se. Isto é tanto mais importante se se tiver em conta que, apesar de os motoristas das diferentes empresas não fazerem parte do mesmo colectivo de trabalho, eles funcionam como uma “entidade colectiva relativamente pertinente” (Schwartz & Durrive, 2003), assim designada na medida em que o estabelecimento de

relações como se de um colectivo de trabalho se tratasse não fora previsto. Como refere Schwartz (1998), o termo “colectivo de trabalho”

supõe circunscritos os parceiros e as formas de cooperação de qualquer acção colectiva; [mas] tal é evidente talvez ao nível do prescrito ou da antecipação dos funcionamentos reais, ele não recobre necessariamente a recriação ou a invenção cada vez singular das formas de cooperação características da gestão de tal configuração particular. (citado por Schwartz, 2000a, pp. 294-295, tradução livre)

Trata-se, portanto, da recriação de um colectivo de trabalho singular, uma vez que foi construído entre motoristas de empresas distintas, e alinhado sobre uma estratégia de regulação da “vivência em comum” no percurso, que se traduz também numa melhoria do serviço de transportes prestado.

Por conseguinte, não é senão aparentemente paradoxal considerar estes resultados, imaginando que a actividade dos motoristas de transporte colectivo os desproveria do contacto com um colectivo de trabalho (isolados do contacto com outros colegas no espaço de actividade dentro do autocarro) e com o desempenho de um trabalho verdadeiramente colectivo (Clot, 1999). Dizemos paradoxal, porque a actividade dos motoristas é desenvolvida na ausência de contacto com outros colegas da mesma empresa, aliás, a sua proximidade seria até assumida como “transgressão”, na medida em que isso revela que a frequência prescrita entre serviços, que afasta um autocarro do autocarro seguinte, não estaria a ser cumprida.

O confronto diário dos motoristas com as necessidades reais dos clientes condu- los a “debater” a necessidade de repensar a sua actividade, não numa lógica individual, unicamente com referência à empresa em que trabalham, mas em termos mais gerais, ou seja, na perspectiva do serviço de transportes que é prestado aos clientes naquele percurso.

Esta decisão não foi antecipadamente prevista, pelo contrário, ela foi assumida no quadro de uma tentativa de produção colectiva da mobilidade, ou de coordenação da oferta de serviços de transporte naquele percurso, e como resultado de opções que, como sustenta a abordagem ergológica, reenviam a um “debate de valores”: “valores mercantis” (associados à rentabilidade dos serviços, ao número de serviços realizados e ao número de passageiros transportados) e “valores sem dimensão” (de ordem social, de regulação da actividade num espaço de trabalho

actividade de trabalho exige quotidianamente a realização de arbitragens e a convocação de valores na sua concretização. Isto significa que mais do que uma