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CAPÍTULO III ANDAR NA LINHA: A ACTIVIDADE DOS MOTORISTAS NUMA

5. Síntese conclusiva

Apresentamos de seguida uma síntese da evolução da situação que analisámos, estabelecendo uma comparação dos elementos que caracterizam os dois momentos de exploração e de análise desta linha, a partir do ponto de vista da actividade dos motoristas da empresa B. Nesta perspectiva, distinguimos a análise a três níveis distintos: ao nível das políticas do sector, da empresa, e da actividade dos motoristas.

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Quadro 8

Principais mudanças nas condições de exploração da linha urbana de transportes em análise Eixos de

análise das mudanças

Primeiro momento de análise126

(Novembro de 2003 – Abril de 2004)

Segundo momento de análise127

(Maio de 2007 – Janeiro de 2008) A cidade, o sector e as políticas de acção pública face à mobilidade

- Privatização do sector no início dos anos ‘90;

- Aumento de percursos de exploração partilhada entre o operador público e os operadores privados.

- Concepção da nova rede de transportes do operador público: clara delimitação das áreas de actuação da empresa pública (centro da cidade) e dos operadores privados (zonas

periurbanas);

- Introdução do tarifário intermodal.

As opções de organização do trabalho de exploração da

linha

- Estabelecimento de um acordo de exploração do percurso entre a empresa pública e a empresa privada B. O tarifário era da empresa pública, por isso, que detinha direitos exclusivos sobre a receita proveniente da exploração do percurso. Os horários eram prescritos pela empresa A;

- O percurso da linha e as paragens eram quase integralmente comuns aos operadores privados B e C, e partilhados também a partir de um certo ponto com o operador público da empresa A;

- Os objectivos inerentes à exploração das três empresas eram distintos;

- Os horários de prestação dos serviços coincidiam ou eram muito próximos.

- O traçado do percurso mantém-se;

- Os objectivos mudaram: a empresa privada B adquiriu direitos sobre a receita da exploração da linha;

- Os horários, pelo menos do ponto de vista do prescrito, mantêm-se, apesar de na prática terem sido alvo de

ajustamentos por parte da empresa B e, consequentemente, da empresa C. Esta mudança prende-se com o objectivo de assegurar que os motoristas da empresa privada B se

demarquem no percurso dos motoristas da empresa privada C.

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1 9 2 Eixos de análise das mudanças

Primeiro momento de análise

(Novembro de 2003 – Abril de 2004)

Segundo momento de análise

(Maio de 2007 – Janeiro de 2008)

A actividade dos motoristas

- O exercício da actividade neste percurso de exploração partilhada conduziu à construção de uma estratégia, sustentada num

compromisso colectivo não formalmente instituído;

- O compromisso consistia em “aceitar” a saída dos motoristas da empresa privada C, para dar início à actividade, alguns minutos antes do que o horário previa e, quando necessário, na facilitação da sua passagem no percurso. A manutenção deste compromisso foi em parte conseguida porque os objectivos das outras empresas eram distintos; - Esta estratégia era expressão concreta da necessidade de regulação: a actividade dos motoristas constituía uma importante “variável de ajustamento” de um sistema que carecia, claramente, de regulação, para garantir uma frequência cadenciada dos serviços;

- No exercício da actividade tornou-se, então, possível conciliar uma orientação para os clientes e para o “colectivo de trabalho”, que incluia também os motoristas das outras empresas.

- A actividade é agora vivida de uma forma dramática, é fonte de sofrimento: é o drama de competir com os outros colegas motoristas da empresa C; de só “trabalhar para a gaveta”; de já não conseguirem preservar a especificidade do serviço que prestam relativamente aos motoristas da empresa C (os clientes dizem que “são todos iguais”); o drama de um compromisso colectivamente construído e mantido durante 10 anos, que agora vêem comprometido; o medo de a sua actividade poder prejudicar os próprios colegas da mesma empresa (é “cada um por si”);

- O dilema da “escolha” do horário a cumprir: entre o interesse da própria empresa e o interesse público;

- Ameaça a uma “pedagogia” sobre o que os clientes podem esperar/exigir de um serviço público de transportes.

A reflexão sobre esta situação permite-nos tirar algumas conclusões importantes sobre esta situação concreta de actividade no sector. Uma primeira, mais evidente, prende-se com a evolução da prestação, em contexto real, deste serviço público de transportes. As análises que conduzimos acabaram por sustentar que a ênfase no cumprimento das obrigações inerentes à noção de serviço público não é suficiente; a sua avaliação não pode deixar de considerar os procedimentos adoptados e as estratégias utilizadas sob a alçada de tal estatuto. Prestar um serviço público de transportes traduz-se na concretização do interesse público (Orban, 2004), desde que preservadas as condições para a salvaguarda, igualmente, do interesse colectivo na produção deste serviço público.

A dificuldade de construção de um compromisso entre uma prescrição de serviço público e uma orientação inequivocamente mercantil na organização do trabalho, advém em parte do facto de o acordo de exploração estabelecido entre os dois operadores não prever formas de compromisso entre os seus distintos objectivos, muitas vezes, dificilmente conciliáveis.

Para os motoristas, a concretização deste compromisso na actividade, traduz-se em “saber manter a boa distância”, querendo com isto dizer que é importante, por um lado, “não andar colado” aos outros motoristas, porque isso corresponderá “a um serviço perdido” (possibilidade de não se transportar passageiros numa viagem, caso se circule imediatamente atrás do autocarro da outra empresa) e, por outro lado, que tratando-se de um mesmo percurso é somente pela preservação dessa “boa distância” que se assegura a frequência dos serviços, evitando dessa forma que a circulação conjunta de dois autocarros, tenha como consequência o aumento do tempo de espera na paragem para os que entretanto lá chegam.

Mas, este ponto de vista não é isento de debate, como aliás o atestam os conflitos vividos em contexto real com outros motoristas. Ou seja, é preciso tempo de experiência de condução à luz das novas normas definidas pela empresa e tempo de aprendizagem dos efeitos decorrentes das diversas estratégias empreendidas Manter-se “à boa distância” é, talvez, saber também demarcar-se de uma orientação predominantemente mercantil da actividade, susceptível de ameaçar o compromisso outrora construído e preservado entre valores distintos – o interesse

da sua própria empresa, o interesse dos clientes, o interesse intrínseco à sua actividade e à actividade dos outros motoristas (Linhart, 2009).

Um outro contributo deste estudo pode ser reconhecido tendo em consideração o espaço de circulação das três empresas. Ele define a vida em comum deste grupo, marcada num primeiro momento por uma orientação distinta (diferenciação dos objectivos inerentes à actividade dos motoristas de cada empresa), mas favorável à actividade conjunta.

A relação entre os motoristas das três empresas, a construção do seu próprio espaço de circulação relativamente à posição ocupada pelos outros, permite identificar o percurso da linha como um espaço a partir do qual, cada um procura definir o seu próprio território de actividade. Mas, o território “não é uma espécie de variável independente na vida social e política” (Painter, 2009, p. 66, tradução livre) e, neste sentido, compreende-se que a relação com este espaço se tenha transformado: “manter-se à boa distância” constitui agora o que torna possível a vida em comum, concedendo espaço para a existência do “nós” e dos “outros”.

CAPÍTULO IV