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CAPÍTULO II NEM TUDO NA MOBILIDADE É EFÉMERO: QUE

2. O acesso à mobilidade: um direito consagrado ou um privilégio?

A afirmação do direito à mobilidade constitui, não raras vezes, o ponto de partida dos que a têm como objecto de estudo. Mas, não se fica nunca por aqui: este direito é adjectivado – é um direito universal. É o carácter “transgressivo” da mobilidade e o discurso de que é cada vez maior a amplitude das distâncias percorridas e em menos tempo, que parece justificar a “universalidade” deste direito, mesmo se a mobilidade não é homogénea, nem garantida para todos em todos os lugares. Este direito é reconhecido também porque, apesar de a

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A produção de serviços de transportes públicos colectivos é, por vezes, identificada com o modelo “fordista” de produção em massa, frequentemente associado ao nome de Henry Ford, (1853-1947): a deslocação é feita com recurso a um mesmo meio de transporte, sobre um mesmo percurso, ao mesmo tempo, para todos (Ascher, 2010). Daí, por vezes, as dificuldades em dar resposta a necessidades de transporte fora dos horários mais requeridos ou fora de zonas de

mobilidade não se estabelecer per se como um objectivo, trata-se de “uma espécie de direito ‘genérico’ que condiciona a efectividade da maior parte dos outros direitos” (Ascher, 2010, p. 197, tradução livre).

Ora, se o que fundamenta o reconhecimento deste direito social é inquestionável, uma vez que a sua garantia medeia o alcance de outros direitos, podem ser sim questionadas as desigualdades que a (i)mobilidade também é susceptível de produzir. Antes, porém, de encetar uma análise crítica do que deixa na penumbra este direito, importa considerar o que ele fundamenta.

Os transportes constituem uma condição de participação na vida social, de acesso ao ensino, à saúde, ao emprego e a outras actividades e serviços, pelo que se afirma igualmente como condição de inclusão social e de cidadania. Aliás, é porque os recursos necessários à vida social não se encontram igualmente distribuídos no espaço, nem os indivíduos dispõem das mesmas oportunidades de lhes acederem, que se justifica a acção pública neste domínio e a intervenção ao nível das condições de transporte efectivamente disponibilizadas, de modo a garantir equidade social.

Ora, para que o transporte, mesmo de carácter público, não seja um privilégio reservado a alguns, a prestação de um serviço público de transportes deve também ser custeada por tarifas sociais51, que serão objecto de “compensações financeiras pelos poderes públicos quando comprometem o equilíbrio económico das empresas, a menos que elas não tenham a obrigação de praticar uma perequação52 entre as linhas beneficiárias e as linhas deficitárias” (Bavoux, Beaucire, Chapelon & Zembri, 2010, p. 209, tradução livre).

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Em Portugal, os passes sociais foram introduzidos em 1975, pela Portaria n.º 783-A/75 de 30 de Dezembro. Recentemente, a questão relacionada com as tarifas dos transportes voltou a assumir um lugar de destaque no debate público, tendo em conta o aumento do custo dos títulos de transporte. No âmbito de um Comunicado de Imprensa sobre este assunto, do Ministério da Economia e do Emprego, representado pelo Ministro Álvaro Santos Pereira, e datado de 21 de Julho de 2011, foi referido, no ponto 4, que “os actuais níveis de preços, que ao longo de muitos anos tiveram actualizações inferiores à inflação, estão hoje muito abaixo dos custos efectivamente incorridos pelas empresas na prestação do serviço público, gerando assim enormes desequilíbrios que, se não forem corrigidos, continuarão inevitavelmente a ser suportados por todos os contribuintes”, justificando assim o aumento do custo dos títulos dos transportes urbanos e interurbanos (Ministério da Economia e do Emprego, Comunicado de Imprensa sobre “Aumento das tarifas dos transportes”, 21.07.2011).

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O uso deste conceito designa “uma operação que consiste em aplicar uma tarifa comum, independentemente dos custos de produção, a uma ou várias categorias de consumidores” (Nicolas & Rodrigues, 1998, p.191, tradução livre). Trata-se, de facto, de uma forma de

O reconhecimento da legitimidade deste direito está patente na noção de serviço público atribuída a este sector de actividade e na exigência de cumprimento de certas obrigações de serviço público por parte das empresas prestatárias, como o prevê, em Portugal, a Lei n.º 10/90, de 17 de Março – Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres53 –, “relativas à qualidade, quantidade e preço das respectivas prestações, alheias à prossecução dos seus interesses comerciais” (artigo 2.º, n.º 2e), sendo, nestes casos, devidamente compensadas pelos encargos associados ao cumprimentos de tais obrigações54.

O direito à mobilidade encontra-se estabelecido no Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE), consagrado sob a forma de uma “liberdade de circulação”. Em Portugal, no domínio dos transportes públicos, este direito é expresso sob a forma de uma “liberdade de escolha do meio de transporte, incluindo o recurso ao transporte por conta própria” e “assegurada aos utentes, em paridade de condições, igualdade de tratamento no acesso e fruição dos serviços de transporte” (Lei n.º 10/90 de 17 de Março, artigo 2.º, n.º 2). Da mesma forma, num documento produzido pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMTT)55 (2011), é afirmado o direito à mobilidade, “reconhecido como um direito de cidadania que exige, em contrapartida, a adequação dos comportamentos individuais ao interesse colectivo” (p. 17).

redistribuição tarifária, que pode ser aplicada entre serviços (uma tarifa comum para categorias de prestações ou categorias de clientes diferentes) ou entre zonas geográficas distintas (uma tarifa comum num território, cujo perímetro pode ser definido à escala regional, nacional ou mesmo europeia, cumprindo o princípio de igualdade de tratamento de todos os cidadãos e de equidade territorial, como é preconizado pela doutrina do serviço público). Um exemplo paradigmático disto pode ser identificado no sector postal, onde o custo do selo não é determinado pela distância a percorrer, mas sim pelo peso, eliminando-se assim a discriminação em função da área geográfica. De referir que na terminologia anglo-saxónica, é utilizada a expressão cross-subsidy (subvenções cruzadas), que considera o facto de a exploração de certos segmentos do mercado permitirem benefícios maiores do que o custo de exploração, enquanto que outros segmentos contribuem menos para a receita final do que o custo de produção do serviço que lhe está associado.

Não obstante as razões que justificam a utilização da perequação, não são de negligenciar os eventuais efeitos de distorção tarifária que podem na sua aplicação ser identificados (Nicolas & Rodrigues, 1998), tendo em conta que certos usuários acabam por financiar indirectamente os bens ou serviços fornecidos a outros usuários.

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Esta Lei estabelece as competências do poder central e do poder local ao nível da organização e exploração dos transportes ditos regulares de passageiros, urbanos e locais.

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Esta questão é particularmente abordada no âmbito do capítulo sobre “serviço público” – capítulo IV.

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IMTT - Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P., criado pelo Decreto-Lei n.º 147/2007, de 27 de Abril, prossegue as atribuições do Ministério das Obras Públicas, Transportes

Não obstante, uma questão emerge: se a mobilidade é um direito intrínseco às pessoas, será ele também intrínseco aos lugares, a partir dos quais ou para os quais decidimos deslocar-nos?

A segregação social reforçada pela desigualdade dos territórios nem sempre é contrariada pela mobilidade, sendo este também resultado de opções de diferentes actores, das políticas definidas, e das lógicas que lhes subjazem. Neste sentido, falar de uma sociedade móvel implica igualmente considerar “as tensões e as pressões que a mobilidade generalizada opera tanto ao nível do indivíduo como da sociedade e do espaço físico” (Lannoy & Ramadier, 2007, p. 29, tradução livre). Falamos, nomeadamente, de exclusão de certas categorias da população, assim como de certos espaços e tempos, que se mantêm à margem da hegemonia deste paradigma de uma sociedade móvel.

3. Desideratos de uma vida móvel: entre mobilidades, transportes, e