• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II NEM TUDO NA MOBILIDADE É EFÉMERO: QUE

3. Desideratos de uma vida móvel: entre mobilidades, transportes, e

3.2 Repartição modal dos transportes e intermodalidade

Falar de transportes públicos (por autocarro) implica situá-los, antes de mais, relativamente ao seu domínio espacial de deslocação, ou seja, à sua função de conectividade entre lugares situados a diferentes níveis. Considerando exclusivamente os “transportes internos”, cujas deslocações se desenvolvem em território português, é possível distinguir as seguintes subcategorias, em concordância com o que estabelece a Lei n.º 10/90, de 17 de Março, no seu artigo 3.º, nº 4:

1) Transportes interurbanos61, os que visam satisfazer as necessidades de deslocação entre diferentes municípios não integrados numa mesma região metropolitana de transportes;

2) Transportes regionais, os transportes interurbanos que se realizam no interior de uma dada região, designadamente de uma região autónoma;

3) Transportes locais, os que visam satisfazer as necessidades de deslocação dentro de um município ou de uma região metropolitana de transportes;

4) Transportes urbanos, os que visam satisfazer as necessidades de deslocação em meio urbano, como tal se entendendo o que é abrangido pelos limites de uma área de transportes urbanos ou pelos de uma área urbana de uma região metropolitana de transportes.

É possível ainda distinguir os transportes relativamente à frequência dos serviços prestados, como preconiza a Lei n.º 10/90, de 17 de Março: os “serviços regulares”, acessíveis a todos os cidadãos, com itinerários, paragens,

59

Os movimentos pendulares referem-se a “deslocações diárias entre o local de residência e o local de trabalho/estudo” (IMTT, 2011, p. 115). A existência destes movimentos está associada à própria organização do território e, nomeadamente, à expansão urbana para zonas mais periféricas, por vezes menos dotadas dos equipamentos indispensáveis à vida social.

60

A intermodalidade pode ser definida como “a característica de um sistema de transportes que proporciona complementaridade e soluções em cadeia que permitem a conexão entre diferentes modos e meios de transporte tendo em vista satisfazer determinada deslocação/viagem entre uma origem e um destino pré-definidos” (IMTT, 2011, p. 113).

61

frequências, horários e preços determinados antecipadamente e continuados no tempo (artigo 17.º, nº 2); assumem também este estatuto, os serviços que sendo de carácter regular não são acessíveis a todos os cidadãos, mas dirigem-se apenas a certas categorias de passageiros – “serviços regulares especializados” – destinados, por exemplo, ao transporte de estudantes de e para o estabelecimento de ensino ou o transporte de trabalhadores nas suas deslocações entre a zona habitacional e o local de trabalho.

Os serviços regulares distinguem-se, então, dos “serviços ocasionais” de transporte público, sem uma frequência determinada, com itinerários, horários e preços negociados livremente (artigo 17.º, nº 3) e realizados para o transporte de um ou mais grupos previamente constituídos, podendo ou não ser reconduzidos ao local de partida.

Por sua vez, os meios de transporte utilizados nas formas de mobilidade terrestre também apresentam especificidades, incluindo o transporte particular (automóvel, motociclo, bicicleta) e o transporte colectivo público (autocarro, eléctrico, comboio, metro).

A “repartição modal”, associada à forma como se distribuem os usos dos diferentes modos de transporte existentes – por exemplo, o modo rodoviário, onde se inclui o automóvel ou o autocarro e o modo ferroviário, como é o caso do metro ou do comboio – tem sofrido igualmente importantes evoluções, não propriamente no sentido da criação de novos modos de transporte, mas em termos de novos usos de modos de transporte já existentes (Amar, 2010). Alguns exemplos internacionais podem melhor ilustrar esta afirmação. A cidade de Curitiba, no Brasil, protagonizou uma experiência de transporte, cuja lição principal consistiu em demonstrar que podem ser concebidos modos de transporte híbridos, juntando as vantagens de modos distintos, como é o caso do metro e do autocarro. Foi concebida a circulação de um autocarro, como se de um metro se tratasse, isto é, circula no espaço rodoviário e à superfície, em vias reservadas, sendo o seu desempenho equivalente ao do metro. Esta experiência acabou por influenciar a concepção de outros sistemas de transportes, como o do “TransMilénio” em Bogotá (Colômbia), mas foi nos Estados Unidos que adquiriu a designação de “BRT” (Bus Rapid Transit), que corresponde à denominação mais

seja, de um modo de transporte que foi transmutado, integrando características do autocarro e do metro. Em França, o mesmo sistema ficou conhecido pela denominação de “BHNS” (Bus à Haut Niveau de Service). Uma importante vantagem atribuída a este sistema prende-se com a redução de custos associados à construção de infra-estruturas pesadas e imóveis, tal como acontece com os modos de transporte ferroviários.

Tal como nos revela o exemplo que acabámos de retratar, na identificação dos modos de transporte já não é suficiente colocar a ênfase no tipo de veículo utilizado. Apesar da referência a estas experiências que dão conta de novas formas de mobilidade, em Portugal a divisão clássica entre os modos de transporte é a que subsiste, tendo em conta nomeadamente o facto de os grandes centros urbanos terem uma dimensão que fica bastante aquém das cidades de outros países identificados e onde o número de passageiros a transportar é significativamente mais elevado. Trata-se mais, no contexto nacional, de sustentar a fiabilidade dos transportes públicos e das suas vantagens, procurando dissuadir os cidadãos de uma utilização massiva do automóvel, do que criar novas alternativas de transporte público – embora, as duas preocupações não sejam incompatíveis.

As comparações entre modos são, apesar disso, inevitáveis: se a exploração do transporte ferroviário é reportada como menos dispendiosa do que o transporte rodoviário, este pelo contrário exige um investimento menor na construção de infra-estruturas de circulação (Flonneau & Guigueno, 2009). A grande flexibilidade dos transportes colectivos rodoviários, relativamente ao transporte ferroviário como o comboio e o metro, cuja circulação exige a construção de vias próprias em locais em que a procura é menos sujeita a grandes oscilações (zonas de elevada densidade populacional), permite que o seu traçado se defina e redefina em coerência com a evolução dos movimentos da população e dos próprios territórios, que são também eles “móveis”.

Apesar de não ser objectivo deste trabalho traçar uma análise mais ampla de co- evolução dos diferentes modos de transporte identificados, as intervenções mais recentes neste sector, nomeadamente em Portugal, visam a promoção de situações de intermodalidade, através da integração de diferentes modos de transporte num mesmo sistema; da especificação dos critérios que servem de

base à atribuição de áreas circulação próprias a cada um; e da concepção dos seus pontos de interface. Na área metropolitana do Porto, um caso de sucesso já conhecido é o que corresponde à articulação entre o comboio e o metro: segundo dados da DGTT referentes a 200662, o metro quintuplicou o número médio de passageiros por comboio. Relativamente ao registo deste aumento do número de passageiros não terão sido alheios factores que são comuns aos dois modos de transporte em causa, nomeadamente, o facto de serem imunes a situações de congestionamento de tráfego, por circularem em vias exclusivas.

O grande debate sobre a repartição modal diz, no entanto, respeito à tentativa de tornar o transporte público cada vez mais atractivo, em detrimento da preponderância da mobilidade individual, tendo em conta os seus custos relacionados com o congestionamento e as dificuldades de circulação no espaço público, mas também com os custos ambientais. Na sua tese de doutoramento, sobre as práticas modais em contexto urbano, Kaufmann (1998) faz uma observação importante a propósito da repartição modal, entre o transporte público e a viatura privada: se, por um lado, as políticas de transporte assentam no postulado de que os indivíduos escolhem o modo de transporte tendo como critério a minimização dos tempos de deslocação, a sua pesquisa tornou visível que isto é verdade, somente em parte, porque a predisposição, mais ou menos generalizada, de uso do automóvel é mantida independentemente da comparação dos tempos de deslocação entre o transporte público e a viatura privada – aqueles que comummente utilizam o automóvel continuarão a fazê-lo, mesmo quando a viagem de transporte público é feita em menos tempo. Na preferência pelo automóvel poderá ser determinante o facto de ser o único meio de transporte que permite deslocações porta-a-porta, ou seja, sem necessidade de realizar transbordos63.

A utilização massiva da viatura privada, acentuada a partir do fim dos anos ‘80, está na origem do paradoxo de dispormos hoje de modos flexíveis de circulação, ainda que confrontados, cada vez mais, com situações de imobilidade provocadas

62

Dados retirados de http://www.imtt.pt. A DGTT foi extinta em 2007 com a criação do IMTT.

por uma sobreocupação do espaço público, com implicações inegáveis nas condições de acessibilidade.