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CAPÍTULO III ANDAR NA LINHA: A ACTIVIDADE DOS MOTORISTAS NUMA

2. O “estudo de caso” como metodologia de investigação

Falar sobre a prestação de um serviço de transportes supõe uma referência às condições oferecidas aos seus utilizadores, relativas ao horário e frequência dos serviços, à interface que permitem, ou não, com outros modos de transporte e aos

indispensável enquadrar essa oferta na especificidade do processo de produção da mobilidade, o que exige o diálogo com os próprios motoristas e a análise das suas condições de trabalho (Lacomblez & Melo, 1988).

A orientação metodológica que tem sido privilegiada no domínio do sector dos transportes terrestres situa-se na procura de “tendências” de evolução do sector, com base em análise comparativas do “desempenho” dos diferentes modos de transporte, e particularmente entre os modos de transporte público colectivo e os modos de transporte privado (Beirão & Sarsfield Cabral, 2007).

A intencionalidade que partilhamos de dar visibilidade a outras variáveis responsáveis pela diferenciação da mobilidade, que não exclusivamente o meio de transporte utilizado, mas sobretudo o que a especificidade do contexto determina, justificou o enquadramento da nossa metodologia de investigação no que costuma ser designado como “estudo de caso”, realçando a variabilidade e singularidade das situações concretas. É, portanto, de uma mobilidade “encastrada” em normas e também em estratégias definidas no seio dos colectivos de trabalho, que simultaneamente a constrangem e facilitam, aquela de que falamos. Uma mobilidade “encastrada”, de igual forma, na evolução do sector, na história das opções de organização do trabalho definidas pelas empresas responsáveis pela sua produção, e nas características dos lugares que necessariamente a configuram.

Uma questão epistemológica sobre a produção de conhecimentos numa lógica de “ciência do singular” é quase inevitável neste âmbito. A ênfase no que em cada situação se revela singular não significa necessariamente que os conhecimentos produzidos só tenham sentido em articulação com aquela realidade específica. Ainda assim, como refere Stake (2009) “o verdadeiro objectivo do estudo de caso é a particularização, não a generalização. (…) a ênfase é colocada na singularidade e isso implica o conhecimento de outros casos diferentes, mas a primeira ênfase é posta na compreensão do próprio caso” (p. 24).

A construção do conhecimento, no quadro da tradição da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, decorre a partir de uma forte ancoragem no terreno e de uma estreita articulação com as características da situação em

análise e dos seus protagonistas. A coerência epistemológica entre a análise da actividade e o estudo de caso é assim abordada por Leplat (2002):

[se, por um lado] a denominação do estudo de caso é comummente ausente dos textos que se reportam à análise da actividade (p. 1, tradução livre), [por outro lado], poder-se-á dizer que o método do estudo de caso está na origem e na finalidade de qualquer estudo da actividade: – na origem, para um melhor conhecimento da situação na qual é imersa a actividade e a identificação de condições críticas (…) e – na finalidade do estudo para testar o efeito das condições consideradas (…). (p. 26, tradução livre)

Assumindo a perspectiva de que a mobilidade se recobre também de uma dimensão de materialidade, e de que o espaço ultrapassa a função de suporte da mobilidade que, muitas vezes, e de forma limitada lhe é reservada, para se constituir como um agente de diferenciação, que critérios definimos para a escolha do terreno e do nível de análise privilegiados (Lacomblez & Melo, 1988)?

2.1 A escolha dos casos de estudo

Utilizámos a metodologia de estudo de caso em dois contextos distintos: para a análise da actividade dos motoristas, numa linha de transportes específica (“primeiro estudo de caso”); e no âmbito de um projecto de reconcepção de uma rede113 de transportes (“segundo estudo de caso”114). Neste sentido, o nível de cobertura espacial do serviço de transportes considerado na análise acabou por constituir o primeiro critério na escolha dos casos (uma linha e uma rede de transportes); o contexto que lhes serve de enquadramento (um contexto urbano e um contexto predominantemente rural), o segundo critério; e, finalmente, o âmbito espacial da deslocação (transportes urbanos e transportes locais), o último critério. Mas, não foram somente estes critérios que influenciaram a nossa opção pelos casos que analisámos. Aliás, admitimos que nem sempre a opção por determinados casos resulta, efectivamente, de uma escolha (Stake, 2009), mas antes de uma história, de um percurso de investigação, de relações construídas, cujo peso não pode ser negligenciado.

O primeiro estudo, desenvolvido no âmbito desta tese, corresponde a uma situação que tinha já um interesse intrínseco para nós. Trata-se de uma empresa

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Se uma “linha” corresponde ao percurso definido de circulação de viaturas de transporte público, delimitado por uma origem e um destino, uma “rede” integra o conjunto de várias linhas.

de transportes que explora uma linha fora do concelho do Porto, na qual havíamos desenvolvido uma análise da actividade dos motoristas, integrada no estudo empírico da nossa tese de mestrado (Cunha, 2005). As mudanças introduzidas no ano de 2006, relacionadas com as condições de exploração da linha por esta empresa, despertaram-nos o interesse de compreender a evolução da sua actividade e os seus efeitos.

Neste sentido, para uma melhor compreensão da história de exploração desta linha pela empresa, e da actividade dos motoristas, distinguimos dois momentos. O primeiro momento corresponde à análise desenvolvida na tese de mestrado, mas agora em parte reescrita do “ponto de vista da compreensão restrospectiva, assim como do ponto de vista heurístico, no apoio à descoberta de novas hipóteses” (Lacomblez & Melo, 1988, p. 24). No segundo momento, retratamos a pesquisa desenvolvida no âmbito do trabalho de doutoramento, resituando o “caso” a partir da evolução das condições de exploração do percurso em análise, das opções de organização do trabalho e da actividade dos motoristas nesse contexto.

2.2 Amostra

Tendo em conta o enquadramento deste estudo na tradição científica da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, foram conduzidas análises da actividade com dez motoristas, em diferentes dias da semana e em serviços correspondentes a horários distintos.

Para além destas análises da actividade desenvolvidas em contexto real de trabalho, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os mesmos motoristas, cuja actividade havia anteriormente sido analisada. Os resultados da análise dos discursos dos motoristas a respeito da sua actividade são considerados num capítulo à parte (ver capítulo VII), integrando as entrevistas com os motoristas participantes neste primeiro estudo de caso, com as dos motoristas que integraram a amostra do segundo estudo.

De referir que a escolha dos trabalhadores da nossa amostra teve, sobretudo, como critérios os horários de serviço e a sua disponibilidade, bem como a

antiguidade na empresa (trabalhadores com mais e menos antiguidade), tal como pode ser observado no quadro seguinte.

Quadro 4

Caracterização dos motoristas que integram a amostra do primeiro estudo de caso

Nota: * Idade e antiguidade a 31 de Dezembro de 2008

Legenda: TC – Contrato a “tempo completo” (ou a tempo inteiro).

2.3 Técnicas de análise privilegiadas

No decurso das análises da actividade, as observações realizadas em contexto real de trabalho (Falzon, 1998) assumiram um papel de destaque. Estas observações foram depois complementadas com o ponto de vista dos trabalhadores relativamente aos registos que efectuámos, com o propósito de melhor compreender as estratégias de regulação da actividade empreendidas, e em cumprimento também do princípio de restituição e validação dos dados recolhidos junto dos trabalhadores implicados nestas análises. Esta restituição foi feita no final do serviço realizado, sempre que tal se revelou oportuno, e de forma mais sistematizada, em contexto de entrevista com os mesmos motoristas.