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CAPÍTULO I ENCONTROS SOBRE A “ACTIVIDADE”: OS CONTRIBUTOS

4. A tradição científica da “abordagem ergológica”

4.5 A produção de conhecimentos no quadro da abordagem ergológica: a

Como já o dissemos, a abordagem da ergologia relativamente à compreensão e transformação do trabalho reúne importantes contributos também sedimentados na história da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade. Destacamos, neste ponto, e de forma específica o contributo de Ivar Oddone, de Alain Wisner, de Antoine Laville e de Catherine Teiger.

Os autores Oddone, Re e Briante (1981), referidos anteriormente, publicaram uma obra de referência – “Redécouvrir l’expérience ouvrière” –, que acabou por ser determinante na construção de uma nova psicologia do trabalho, ou pelo menos, na definição de uma outra forma de fazer psicologia do trabalho. O reconhecimento da experiência operária constituiu a referência central da postura construída por estes autores, representando-a “como uma massa de conhecimentos de valor científico que os trabalhadores aprenderam pela prática de muitos anos de trabalho e que é o seu património” (Oddone, Re & Briante, 1981, p. 189, tradução livre).

O projecto de construção de uma “comunidade científica alargada” (Oddone, Re & Briante, 1981, p. 220, tradução livre) visava a integração dos trabalhadores, a valorização da sua experiência e dos saberes desenvolvidos na actividade e a criação de condições favoráveis para pensar colectivamente o trabalho. Um regime de produção de conhecimentos foi então desenvolvido, articulando os saberes formais dos investigadores e os saberes informais de que os trabalhadores eram detentores, para transformar as relações entre saúde e trabalho.

Ainda que de uma forma parca, poderemos afirmar que este contributo se situa no reconhecimento de que a intervenção em contexto de trabalho tem necessariamente que requerer o ponto de vista dos peritos das situações em análise, os seus saberes construídos na actividade, ou seja, a sua experiência, e que esta deve ser integrada nos conhecimentos dos que intervêm nas suas situações de trabalho. Esta afirmação não deixa de ser muito próxima da que Laville e Teiger, colaboradores de Alain Wisner na equipa do Conservatoire

National des Arts et Métiers (CNAM)39, conceptualizaram como “novo paradigma da formação dos actores para e pela acção”: os saberes dos investigadores não configuram uma posição de hegemonia na construção de soluções para os problemas da nocividade do trabalho (Teiger & Laville, 1991).

A marca de Alain Wisner é, aliás, reconhecida na construção da abordagem ergológica, ainda que a sua referência nem sempre se reporte ao seu contributo singular. Exemplo disso é o facto de se associar, por vezes, ao legado de Wisner a conceptualização de um desvio irrevogável entre o trabalho prescrito e o trabalho real, “associado às dificuldades concretas da situação, à sua percepção pelo operador e às estratégias que ele adopta para responder às exigências do trabalho, e em particular aos perigos” (Wisner, 1995, p. 130, tradução livre), reconhecendo neste sentido a engenhosidade dos trabalhadores na gestão da variabilidade com que sempre se confrontam, quando esta distinção mais do que a perspectiva de um autor, constitui um princípio identitário da tradição científica em que ele se enquadra. A abordagem ergológica conceptualiza esse desvio, por um lado, enquanto condição para tornar “possível e vívivel” a situação de trabalho, considerando as exigências e normas definidas em heteronomia e as injunções que o meio impõe e, por outro lado, admitindo que este desvio reenvia sempre a um debate de valores, produtor de uma matriz de historicidade.

Outro contributo, associado à tradição científica da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade e, não raras vezes, invocado com referência a Wisner, sustenta que os problemas de trabalho que despoletam a análise e intervenção não são dados, mas a construir (Wisner, 1985), a partir do pedido ergonómico e fortemente ancorados numa análise de terreno (Wisner 1997). Um dos actos fundadores desta abordagem foi, precisamente, a “saída do laboratório” e escuta do trabalho real, assumindo que os problemas devem ser considerados a partir da configuração que o contexto real de trabalho lhes dá, ao invés de um investimento nesta realidade a partir de modelos concebidos à distância das situações concretas.

Estes contributos acabaram por ter a sua influência na construção do regime de produção de saberes, no quadro dos processos de transformação, que nos apresenta a abordagem ergológica. Se ela não pretende afirmar-se como

disciplina, nem tão-pouco como uma teoria sobre a actividade humana, constitui em alternativa a “teoria de um processo de confluência”.

Este “processo de confluência” é traduzido pelo dispositivo dinâmico a três pólos, formalizado como um espaço onde se retrabalham, ao mesmo tempo, os “saberes académicos”40 e os “saberes da experiência”41. Os primeiros correspondem aos saberes disponíveis, produzidos em exterioridade face às situações que terão potenciado a sua definição, enquanto que os segundos são saberes imanentes à actividade dos seus protagonistas. Trata-se de saberes considerados não hierarquizáveis entre si, mas em interligação permanente e comensuráveis (Di Ruzza, 2004).

Figura 3. Representação gráfica do dispositivo dinâmico a três pólos (Schwartz, 1997)

Explicitando cada um dos pólos identificados na construção de um DD3P (ver figura 3) (Schwartz, 1997), podemos referir que:

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Outras designações são igualmente atribuídas a estes saberes e consideradas equivalentes, nomeadamente: saberes “disciplinares”, “instituídos”, “formalizados”, “gerais”, “constituídos”, ou “científicos”.

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Relativamente a este tipo de saberes, é menos diverso o leque de vocábulos considerados sinónimos, mas é possível encontrar a menção a “savoirs enfouis”, cuja tradução mais fiel nos parece ser a de “saberes incorporados ou investidos” na actividade.

Pólo 1

Pólo dos saberes e valores construídos nos universos científicos Pólo 3 Pólo 2 Pólo da intervenção e da transformação concreta, através de um “diálogo socrático num duplo sentido”

Pólo dos saberes e valores tratados e retratados na actividade

 O primeiro pólo do dispositivo é o pólo dos conceitos, dos “saberes académicos”, desinvestidos das especificidades locais e, por isso, produzidos em desaderência. Uma exigência de pluridisciplinaridade é imanente a este pólo: diversas disciplinas, e diferentes em cada situação particular, serão convocadas na produção de conhecimentos, tendo em conta também a especificidade dos problemas a tratar.

A resposta às questões que esses problemas comportam exige a mobilização de saberes de diferentes áreas disciplinares, cujo contributo não pode nunca ser antecipado. Mas, ao mesmo tempo, uma análise “mutilante” da actividade teria lugar se a sua análise se circunscrevesse à procura de regularidades, dos modelos de funcionamento previstos e não a compreender como essa actividade faz história, do nível local ao nível global: “(…) se a actividade revela ser uma matriz de história, ela não pode ser realmente entendida, antecipada por uma qualquer ‘teoria’, ou sistema, salvo se nos comprometermos a fazer uma nova teoria filosófica global da história” (Schwartz, 2007, p. 131, tradução livre). Esta preocupação é representada pelo segundo pólo;

 O segundo pólo corresponde, então, ao das “forças de convocação, de reconvocação e dos saberes investidos na actividade” (Schwartz, 1997). Os saberes representados neste pólo são saberes produzidos em aderência às situações concretas e às suas singularidades, nem sempre sujeitos a um trabalho de formalização. Mas, como podem os actores do primeiro pólo antecipar as questões a debater sem que sejam mobilizadas forças de convocação destes saberes? E, depois, também forças de reconvocação dos protagonistas da actividade para validação dos saberes produzidos. Esta validação ocorre quando se actualizam os saberes académicos no agir concreto, colocando em circulação as experiências reais de trabalho e o debate sobre os conhecimentos que elas mobilizam.

Podemos aqui invocar uma vez mais a experiência de Teiger e Laville (1991) de formação em análise ergonómica do trabalho, que supõe a confrontação entre duas modalidades de conhecimentos – os conhecimentos de carácter operatório dos trabalhadores e os conhecimentos dos ergónomos, sustentados por uma base científica, bem como pela sua experiência de trabalho no terreno. A

sobre a actividade de trabalho e as suas consequências, seguida de um “questionamento ergonómico”, baseado na maiêutica socrática (Barros-Duarte & Lacomblez, 2006), capaz de estimular a reflexão e a descoberta de conhecimentos implícitos, ou seja, conhecimentos que se detém, sem saber que se é detentor. Mas, este processo formativo não corresponde a uma mera “extracção de saberes” (Faïta & Schwartz, 1995, p. 69, tradução livre). Pelo contrário, procura-se construir novos saberes sobre a situação de trabalho e sobre si mesmo, com base numa “maiêutica socrática” (de que nos fala, particularmente, Teiger & Laville, 1991), ou num “diálogo socrático num duplo sentido”, como é também referido pelos autores da abordagem ergológica (Schwartz, 2000c): a “maiêutica socrática não se quer transferência de um saber pré-formado do perito para o ignorante, mas itinerário de descoberta do que o interlocutor estava no poder de conhecer” (Faïta & Schwartz, 1995, p. 71, tradução livre).

A exigência destes dois pólos na produção de saberes renova-se em permanência: aqueles que se situam no “pólo 1” necessitam de ver os seus saberes actualizados e retratados pelas situações reais, adquirindo a “forma” que lhes dão as situações concretas; os que se situam “no pólo 2”42 também vêem no trabalho sobre os conceitos a possibilidade de dar visibilidade ou de ver instituídos os seus saberes inscritos na actividade. Porém, os dois pólos não se encontram formalmente constituídos, nem lhes está a priori garantido um lugar de debate.

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Evitando aqui a categorização destes dois pólos, como pólo dos teóricos e dos práticos, respectivamente pólos 1 e 2, podemos mesmo afirmar que eles não constituem “uma matriz evidente para a determinação de categorias sócio-profissionais” (Schwartz, 2000a, p. 89, tradução livre). Um exemplo concreto disto é o caso dos trabalhadores que, pelo reconhecimento da sua experiência profissional, se tornam formadores, ou seja, se tornam também profissionais dos conceitos. E como afirma o autor, em última instância, os conceptores, os formadores, os investigadores exercem igualmente uma actividade de trabalho, pelo que “se tomarmos a sua actividade como um enigma a desvendar, eles enquadram-se no mesmo dispositivo bi-axial de produção de conhecimentos sobre si” (Schwartz, 2000a, p. 89, tradução livre).

O diálogo43 entre saberes instituídos e saberes investidos não se auto-produz, daí que Schwartz (2000a) o aborde afirmando que “não há nada menos natural, epistemologicamente, institucionalmente, socialmente, do que trabalhar sobre o entrecruzamento destas duas disciplinas [disciplina epistémica e disciplina ergológica], de considerar e respeitar, cada uma, as exigências da outra” (p. 718, tradução livre). De acordo com esta perspectiva, as condições que poderão favorecer este diálogo são garantidas pelo que foi designado como “terceiro pólo”;

 O terceiro pólo representa a “exigência ergológica”, ou “exigência filosófica”, como foi pela primeira vez denominado, sendo agora designado como “pólo das exigências epistemológicas ou éticas”44. Estas exigências concretizam-se na antecipação das formas de tratar as situações da vida social (e a actividade de trabalho, em particular) e os seus semelhantes, como detentores de saberes comensuráveis, recusando a sua abordagem em desaderência (Schwartz, Adriano & Abderrahmane, 2008).

Este pólo reúne, portanto, as condições necessárias, na perspectiva ergológica, para a produção de conhecimentos, para provocar o entrecruzamento de saberes. Isto significa que ele se sustenta num princípio de “convocações mútuas” (Schwartz, 2000a, p. 101, tradução livre): do pólo dos conceitos (saberes académicos) e do pólo da actividade (saberes investidos), traduzindo portanto o pressuposto de participação dos protagonistas das situações de trabalho na produção de conhecimentos sobre a sua actividade.

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Este diálogo produtor de saberes sobre a situação de trabalho, e mantido entre os trabalhadores e os investigadores, constitui um pressuposto construído, nomeadamente, por Faverge, que viria a influenciar indubitavelmente os trabalhos de Teiger e Laville, ou de Oddone, Re e Briante: a ‘análise do trabalho’ [como fora proposta por Ombredane & Faverge] dá-nos já os ingredientes de uma relação estabelecida entre o analista e o operador (…) que foi então de vanguarda – e, de uma certa forma, foi de encontro ao que Ivar Oddone e Alessandra Re vieram a denominar como uma “comunidade científica alargada (Lacomblez, 2011, p. 8, tradução livre).

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Este pólo é designado por Schwartz (1996) como “pólo da exigência filosófica no texto “Ergonomie, Philosophie, et Exterritorialité”, publicado pela primeira em vez em 1996, ou seja, numa altura em que a abordagem ergológica ainda não era assim designada. A referência à “ergologia” surge pela primeira vez na obra “Reconnaissances du travail, pour une approche ergologique”, publicada em 1997. Mais tarde, no ano 2000, Schwartz compila este texto na obra “Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe” e a referência à “exigência filosófica” como correspondendo ao pólo 3 do DD3P não é alterada, o que poderá significar que o seu sentido continua também a ser coerente. No mesmo ano, mas no âmbito de uma outra publicação – “Discipline épistémique, discipline ergologique : paideia et politeia”, o autor refere no âmbito de uma nota de final de página que “para evitar toda e qualquer ambiguidade, preferimos definir o

Trata-se, portanto, de um pólo epistemológico: a produção de conhecimentos exige que os intervenientes detentores de saberes académicos se coloquem em situação de aprendizagem do que se mantém na penumbra, do que de certo modo se identificou como “residual”, assim como os protagonistas da actividade devem colocar em evidência as suas “reservas de alternativas”, ou seja, as outras possibilidades que concebem de vida no trabalho, na expectativa de que interpelem os conteúdos e limites dos conceitos que organizam o real da sua actividade.

Além disso, este pólo representa também o pólo do bem comum, do “mundo comum” a construir, comportando uma dimensão ética, relacionada com o facto de a intervenção em contexto de trabalho ser efectivamente “comum”, partilhada entre todos os actores das situações de trabalho em questão. É, por isso, também que este pólo se designa como pólo da “exigência ergológica”, assente num princípio de comensurabilidade dos saberes que orientam o desenvolvimento da intervenção.

Neste sentido, no diálogo a estabelecer apela-se, simultaneamente, à exigência de uma postura de humildade perante a complexidade da actividade do outro, tendo em conta que se trata de uma experiência sempre singular, renovada pelo encontro com um meio dinâmico, mas humildade também no reconhecimento do outro como seu semelhante; e à exigência de rigor nas condições oferecidas a cada um para colocar em palavras os seus saberes, bem como nos compromissos debatidos e assumidos no âmbito deste encontro (Schwartz, 1997).

Este dispositivo traduz, sobretudo, uma postura a assumir na produção de conhecimentos. Sem protocolo definido, pelo que podemos encontrar diferentes configurações do mesmo dispositivo, o que justifica também a sua referência como um dispositivo “dinâmico”, relativamente à forma como pode ser concebido e aos seus resultados – dar visibilidade às renormalizações, renovação dos saberes disciplinares, transformação das situações de trabalho (Durrive, 2010). De forma sintética, é uma postura de “desconforto intelectual permanente” que é requerida, residindo o seu significado no facto de a actividade não nos permitir o conforto dos modelos interpretativos pré-definidos e estabilizados; pelo contrário,

o desafio consiste em se deixar interpelar para que novas formas de conhecimento possam ter lugar (Durrive & Schwartz, 2008).

5. A abordagem ergológica: principais contributos na renovação de um