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CAPÍTULO I ENCONTROS SOBRE A “ACTIVIDADE”: OS CONTRIBUTOS

4. A tradição científica da “abordagem ergológica”

4.1 Para uma construção da história desta abordagem

As referências à ergologia e a apropriação da sua abordagem são, no nosso percurso de formação, relativamente recentes23, ainda que a sua origem se encontre situada nos anos ’80, e contextualizada nas mudanças que configuraram as formas do trabalho e as opções definidas na sua organização, nesse período. Impõe-se, portanto, uma referência às circunstâncias que tornaram possível a sua emergência.

As origens da abordagem ergológica24 remontam a 1983, ano em que uma “modesta experiência” de formação25 (Schwartz & Durrive, 2003, p. 3, tradução

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O nosso primeiro contacto “real” com a “démarche ergológica” aconteceu em Novembro de 2003, no âmbito de um seminário consagrado à apresentação desta abordagem, com Yves Schwartz (Professor na Université de Provence, Aix-Marseille I, França, e um dos principais protagonistas desta perspectiva); e Jussara Brito (Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro) e Milton Athayde (Universidade do Estado de Rio de Janeiro), ambos na altura a realizar um pós- doutoramento com o Professor Yves Schwartz no Departamento de ergologia daquela Universidade. Antes disso, o nosso conhecimento sobre esta perspectiva foi sendo construído com base na leitura de publicações que convocavam o ponto de vista da ergologia, particularmente a obra “Reconaissances du travail, pour une approche ergologique” (Schwartz, 1997).

No âmbito daquele seminário, tivemos ainda a oportunidade de apresentar os primeiros resultados da nossa pesquisa de mestrado (Cunha, 2005), integrando na sua discussão os contributos da abordagem ergológica e, no diálogo com os intervenientes convidados, discutir a nossa apropriação desses saberes.

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Este enquadramento histórico da abordagem ergológica foi, em parte, traçado a partir de entrevistas que realizámos, entre Janeiro e Março de 2006, a Yves Schwartz; Bernard Vuillon; Muriel Prévot-Carpentier; Magali Wild; e Xavier Roth. Neste período, correspondente ao nosso primeiro estágio na Université de Provence, Aix-Marseille I, no âmbito do doutoramento, procurámos conhecer melhor os elementos que integravam esta equipa (desde os investigadores “sénior”, protagonistas da formalização da abordagem ergológica, aos investigadores mais jovens, que têm também deixado os traços da sua actividade na história desta abordagem); conhecer as actividades desenvolvidas pelo Departamento de ergologia (designadamente, o seminário realizado anualmente, intitulado “Tâches du Présent”; e as reuniões do “Le pouce et l’index”, que contam com a participação de investigadores e alunos de doutoramento, com o objectivo de criar momentos de reflexão colectiva sobre projectos de investigação em curso ou sobre um tema específico); bem como participar nas aulas do Master de ergologia.

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Experiência correspondente a um estágio de formação contínua, intitulado “Cultures professionnelles, savoir faire, mutations technologiques” e dirigido a trabalhadores de todos os sectores de actividade da região de Provence-Côte d’Azur. Este estágio teve a sua primeira edição em 1983/1984, tendo-se mantido com esta designação durante três anos. A sua duração era de 160 horas (sete períodos de estágio, quatro dias por mês) e compreendia duas modalidades distintas: (i) cerca de metade do número de horas total era consagrado a ensinamentos sobre quatro temas – “Conhecimento das tecnologias” (informatização do trabalho), “Economia e gestão”, “Conhecimento da formação profissional”, “Papel do trabalho e da consciência operária na história”; (ii) a segunda metade era dedicada ao debate sobre os conteúdos abordados, assim

livre) foi levada a cabo por Yves Schwartz (professor de filosofia), Daniel Faïta (linguista) e Bernard Vuillon (sociólogo), com um grupo de cerca de 15 pessoas (trabalhadores da indústria petroquímica, do sector alimentar, e do couro; e trabalhadores do sector dos serviços, nomeadamente, de seguros, de segurança social, …), que esperavam respostas às suas interrogações teóricas e práticas relacionadas com as mudanças em curso nos seus contextos de trabalho, mas também no dos “outros”. Dizemos dos “outros”, porque alguns destes participantes eram sindicalistas26 e a sua intervenção nesta formação prendia-se também com o questionamento relativamente à orientação e intencionalidade das mudanças em curso e às suas implicações, nomeadamente, na sua actividade no contexto das organizações sindicais em que se encontravam integrados, assim como com o seu poder de acção.

Esta experiência, quase “clandestina”, considerando que teve lugar fora do contexto da Universidade – talvez porque não haveria condições para enquadrar esta prática nesse contexto, mas também porque não se inscrevia num quadro disciplinar preciso – beneficiou da flexibilidade da formação contínua universitária, tornando possível reunir condições que favoreceram a discussão dos conteúdos já referidos. Que mudanças eram objecto de reflexão no seio deste grupo, naquele momento concreto?

A situação vivida nesse período era caracterizada por um certo recuo da concepção até então dominante do trabalho industrial; por um peso crescente do sector dos serviços; pela emergência do modo de organização do trabalho pós- fordista (Amin, 1994), que se fundamenta em princípios de flexibilidade (Lacomblez, 2008); e pela necessidade de pensar os novos riscos profissionais e o seu impacto na saúde, designadamente, os riscos ditos “psicossociais” (Thébaud-Mony, 2010). Um contexto marcado por grandes mudanças no mundo do trabalho, mas como também não podia deixar de ser, de forma transversal na sociedade de então.

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Segundo Teiger (2003), a partir do final dos anos ‘60 foram particularmente as organizações sindicais que protagonizaram os pedidos de intervenção ergonómica, tendo como objectivo compreender os problemas encontrados em contexto real de trabalho: “tratava-se sobretudo de problemas de saúde ligados ao trabalho, que os sindicalistas não poderiam resolver simplesmente com os seus instrumentos de análise da sociedade” (p. 55, tradução livre).

Segundo Schwartz (1997), um triplo objectivo foi associado a esta experiência:

a) pensar as mudanças no trabalho através de trocas entre os conceitos e as experiências;

b) assumir como parceiros deste projecto os próprios protagonistas na sua grande diversidade;

c) afirmar ao mesmo tempo como objecto, o acto (…) eminentemente problemático de conceptualizar a actividade dos outros. (p. 8, tradução livre)

Esta experiência, referida muitas vezes como “modesta”, não deixou contudo de esboçar as condições necessárias para um questionamento que haveria de se perpetuar e manter vivo, deixando traços na postura adoptada pela abordagem ergológica, ou pela “ergologia das actividades humanas” (Efros, 2008, p. 40, tradução livre), sob a designação de uma postura de “desconforto intelectual”. A vontade de dar continuidade a esta experiência e, sobretudo, de a tornar menos “clandestina” foram determinantes na ideia de publicar um livro que a documentasse e formalizasse. Esse livro, “L’homme producteur”27, foi publicado em Março de 1985, assumindo como objectivo a análise das relações entre as transformações sentidas no mundo do trabalho e as transformações dos saberes sobre o trabalho (Schwartz & Faïta, 1985). Foi, nesse âmbito, desde logo reconhecida a importância da ancoragem nas situações concretas que foram alvo de análise e que cada um dos participantes vivenciava no seu contexto de trabalho, conferindo espaço a modos de cooperação entre “trabalhadores e difusores de saberes” (Schwartz & Faïta, 1985, p. 27, tradução livre).

A institucionalização deste projecto, que foi ganhando forma e conteúdo, reivindicava, porém, muito mais do que o sucesso desta experiência e a sua publicação. Num período cruzado por intensos debates sobre “crise”, “mutações”,

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Todos os anos, desde o ano de 2000, no mês de Março, é organizado pelo Departamento de ergologia um encontro científico intitulado “Tâches du Présent”, cujo objectivo é de prestar homenagem a personalidades cujo contributo foi fundamental nesta tradição científica (por exemplo, em edições passadas foram já consagrados seminários de homenagem, nomeadamente, a Georges Canguilhem, em 2000; Alain Wisner, em 2001, Jacques Duraffourg, em 2009); mas também a obras de referência, como foi o caso do tema do seminário de 2005, dedicado à reflexão sobre “L’Homme Producteur”; a profissões específicas (por exemplo, “os economistas”, entre os quais Henri Bartoli, em 2002; os “engenheiros”, entre os quais, François Dollé, em 2003; ou os “médicos”, com referência a Ivar Oddone, Georges Canguilhem e Alain Wisner, em 2004); assim como a temas que permitem um entrecruzamento de disciplinas e de perspectivas (por exemplo, “a actividade feminina”, em 2007). O ano de 2008 foi também consagrado a um destes temas, sobre “os jovens” – “Les jeunes, l’engagement et les tâches du présent” – onde tivemos a oportunidade de participar na sua organização e de intervir com uma

“modernização” (Schwartz & Faïta, 1985, p.14, tradução livre), tornava-se imperativo não só compreender estes processos, mas reconhecer também à

Universidade em geral, [que] esta urgência se tornou um dever: [para] compreender, é certo, mas [também] para dar ao público, na sua diversidade, nas suas contradições, os meios intelectuais de analisar (…), de criar instrumentos, ou melhor criar procedimentos que a coloquem em contacto com essas realidades, de forma equilibrada; que a coloquem em situação, diremos, de aprender. (Schwartz & Faïta, 1985, p. 14, tradução livre)

Não obstante, a institucionalização de um tal projecto no contexto universitário exigia, em contrapartida, a resposta a outro importante desafio: o de pensar esta experiência com protagonistas distintos, designadamente estudantes, e orientados por outro tipo de objectivos.

Em 1986, o Conseil des Etudes et de la Vie Universitaire (CEVU) da Universidade de Provence validou um diploma universitário em Analyse Pluridisciplinaire des

Situations de Travail (APST)28, que reuniu os contributos nomeadamente de Alain Wisner (autor inscrito na tradição científica da “ergonomia da actividade”). A criação deste diploma promoveu a integração do “dispositivo APST” no departamento de filosofia daquela Universidade. Mais tarde, em 1989, foi proposta a sua certificação como “Diplôme d'Etudes Supérieures Spécialisées

d’Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail” (DESS-APST), tendo então

sido criado o primeiro diploma nacional assegurado pela equipa APST. Mas, é somente em Janeiro de 1999 que surge a primeira referência à ergologia enquanto departamento autónomo (relativamente ao departamento de filosofia) – o “Département d’ergologie-APST”, tal como o conhecemos nos dias de hoje.