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CAPÍTULO I ENCONTROS SOBRE A “ACTIVIDADE”: OS CONTRIBUTOS

4. A tradição científica da “abordagem ergológica”

4.2 Diferentes usos do conceito de “ergologia”

Segundo Vatin (2006), a utilização do termo ergologia no domínio francófono precedeu o de ergonomia. Terá sido Paul Sollier quem fez uso deste termo pela primeira vez, com a criação, em 1925, de uma escola de ergologia29, em Bruxelas, embora com uma orientação bem diferente daquela que está na base da abordagem ergológica, tal como foi formalizada pela equipa de Yves Schwartz.

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Em português, “Análise Pluridisciplinar das Situações de Trabalho” (tradução livre).

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A “École d’Ergologie” mantém-se ainda hoje em funcionamento, oferecendo cursos de formação pós-graduada nos domínios da gestão de recursos humanos e da orientação profissional.

Mas, antes de fazer referência à influência principal e formalmente reconhecida na apropriação do uso deste termo, encontrámos também no âmbito das leituras que serviram de suporte à elaboração deste capítulo, a sua referência na obra de Pierre Naville (1970), intitulada “Le nouveau léviathan”.

Comummente invocado na tradição científica da ergonomia e da psicologia do trabalho da actividade, nomeadamente, pela conceptualização da distinção entre o trabalho abstracto e o trabalho concreto30, não será estranho afirmar que se faz também sentir o lastro de Pierre Naville na abordagem ergológica. Essa distinção é assim conceptualizada por este autor: “nascida do concreto [a categoria do trabalho abstracto], ela serve depois para o explicar, nas suas diferentes formas e nas suas diferentes fases históricas” (1970, p. 401, tradução livre). Se, por um lado, a nossa tradição científica se define pela ênfase no trabalho em contexto real, a sua configuração concreta é compreendida como resultado da história, das opções de organização do trabalho, das dificuldades que precipitaram, e da história dos homens e das mulheres que o realizam. É esta a razão pela qual Naville afirma que “(…) hoje, a relação abstracto-concreto é frequentemente substituída por o que designamos como ‘psicologia do trabalho’” (Naville, 1970, p. 403, tradução livre).

A referência ao conceito de “ergologia” surge com a afirmação de que “todas as medidas ‘concretas’ podem resumir-se sob o termo ‘de ergologia’, que foi frequentemente usado para falar da forma geral do trabalho” (Naville, 1970, p. 412, tradução livre). Não nos parece, de facto, que se trate necessariamente de uma usurpação do sentido que lhe dá a abordagem ergológica, se o entendermos da seguinte forma: as medidas concretas correspondem às formas particulares, específicas, de actividade, sendo este o olhar que a abordagem ergológica privilegia na sua abordagem. Aliás, Schwartz (1997) sustenta mesmo que, em lugar de uma concepção do trabalho confinada ao que designa por “trabalho

stricto sensu”, ou seja, à “actividade remunerada no quadro de sociedades

mercantis e de direito” (p. 22, tradução livre), privilegia-se o que traduz a vida nos contextos concretos de trabalho.

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A questão que se coloca é, então, a de saber qual o significado específico atribuído ao conceito de ergologia, e inscrito na designação de um departamento independente na Université de Aix-Marseille I.

Uma das mais importantes influências na apropriação do termo ergologia, enquanto estudo da actividade humana, terá provindo do filósofo e epistemólogo francês Gilles-Gaston Granger. Em 1968, este autor propõe na obra “Essai d’une

philosophie du style”, a ideia de uma “ergologia transcendental” (Granger, 1968, p.

12, tradução livre). Correndo o risco de ser demasiadamente ambicioso tentar, aqui, sintetizar o contributo desta obra, procuraremos identificar, pelo menos, os eixos de reflexão que, na nossa perspectiva, deixaram as suas marcas na abordagem da ergologia que conhecemos.

A reflexão sobre a dialéctica entre “forma ou estrutura e conteúdo”, que constitui a matéria deste “Essai d’une philosophie du style”, é mediada pela noção de trabalho,

(…) o que é o trabalho, senão um certo modo de relacionar, suscitando, uma forma e um conteúdo? (Granger, 1968, p. 5, tradução livre). (…) Toda a obra do homem pode ser interpretada como uma formalização, e só pode ser compreendida se, por um lado, nos esforçarmos por libertar a forma frequentemente dissimulada na obra, e se, por outro lado, experimentamos definir a referência desta forma ao que ela organiza. (Granger, 1968, p. 297, tradução livre)

Para o autor, o conteúdo corresponde à pessoa e, particularmente, à sua produção singular, ao trabalho que realiza, enquanto que a forma será o modelo ou estrutura átona (Granger, 1968). A sua proposta consiste na afirmação de que estes dois aspectos – estruturação e aplicação – “coexistem em todo o trabalho, podendo um deles dominar e mascarar o outro” (Granger, 1968, p. 7, tradução livre). O desafio que traça então neste livro surge com a noção de “estilo” e a sua integração na produção de conhecimento científico.

Neste sentido,

procurar as condições mais gerais da inserção das estruturas numa prática individuada, seria a tarefa de uma estilística, ou se é admitido sem um sorriso, tão grande expressão, de uma ‘ergologia transcendental’. (…) Não é, admitimos, a determinação histórica concreta deste trabalho que nos interessa aqui, mas somente as condições mais gerais desta prática. (…) Um dos objectivos deste ensaio é mostrar esta possibilidade de uma estilística geral, através do estudo de algumas práticas variadas. (Granger, 1968, p. 12, tradução livre)

Isto é, considerar a diversidade de modos de estruturação, a partir do estilo, reconhecendo ainda assim que o “sucesso universal do empreendimento

científico seria, mesmo aparentemente, a morte do estilo”. (Granger, 1968, p. 13, tradução livre). A referência ao “estilo” é associada aqui à marca eminentemente humana e singular da obra. A morte do estilo pela ciência preconiza a ênfase no que é universal e não condicionado por especificidades intrínsecas aos indivíduos ou aos lugares da vida quotidiana. Mas, o que Granger sustenta é que a compreensão do processo de conhecimento depende efectivamente de produções singulares, residuais, “contaminadas” pelas impurezas da prática. Colocando em diálogo a abordagem de Granger com a de Schwartz, diríamos que a “ergologia” tem como desafio a análise dialéctica entre o singular e o geral, entre a actividade humana e as formas definidas de configuração da vida em sociedade. Tratar-se-á, sim, de uma “ergologia transcendental”, considerando que a actividade preconiza também a degenerescência das estruturas, que mantêm neutralizadas as variáveis históricas: a actividade necessita de estruturação para poder existir, mas a variabilidade e singularidade que a caracterizam, interpelam também as formas que antes a organizavam.

Segundo Granger (1968), a essência do processo de produção de conhecimento decorre da mobilidade em permanência desta oposição entre forma e conteúdo, e que Schwartz (2000a) conceptualiza como movimento da “dupla antecipação”, tal como veremos mais adiante.

Atentando agora às referências à ergologia no âmbito do seu departamento específico e da sua produção científica, são escassas as vezes que encontramos a sua menção como substantivo (simplesmente como “ergologia”), é sim comum a sua referência como termo qualificativo de uma abordagem, de um paradigma, ou de um modo de agir, ou seja, sob a expressão de “abordagem ergológica” (Schwartz, 1997), “paradigma ergológico” (Schwartz, 1997), “agir ergológico” (Jean, 2001), ou “disciplina ergológica” (Schwartz, 2000c), reconhecendo esta noção de “ergológico como o termo mais neutro, mais extensivo, mais indeterminado, para evocar, neste sentido, a actividade humana” (Schwartz, 2000a, p. 683, tradução livre). E o facto de lhe ser atribuído um carácter difuso, não é fortuito, mas coerente com o significado que é admitido nesta perspectiva. Efectivamente, o projecto da abordagem ergológica consiste em afirmar-se, não como

(…) uma disciplina no sentido de um domínio do saber específico, mas [como] uma norma, que deve ter como ambição intelectual, tendo interesse neste tipo de processos: o equipamento intelectual antecedente a toda a leitura de um processo ergológico não deve nunca subtrair a inquietude sobre a legitimidade do corpo conceptual relativamente às renormalizações e resingularizações geradas nos debates, mais ou menos, inerentes à actividade. (Schwartz, 2000c, p. 47, tradução livre)

É contra a neutralização dos aspectos que se jogam na actividade, e das suas especificidades muitas vezes reduzidas a um estatuto de “resíduos”, com a pretensão de orientar a análise por critérios de “cientificidade”, que se afirma a abordagem ergológica. Mas, se a abordagem ergológica não é assumida como disciplina, poder-se-ia, contudo, dizer que concebe o trabalho com disciplina: a disciplina de trabalhar de forma rigorosa e em estreita articulação com todos os actores envolvidos numa determinada situação (Efros, 2008). Trata-se, então, de

fazer trabalhar conjuntamente estas duas disciplinas de pensamento, polarizadas quanto à neutralização das singularidades históricas, que designamos como epistémica e ergológica; uma que pode resumir-se como disciplina do conceito, a outra característica dos ‘processos ergológicos’ (…) que tem como princípio metodológico não tratar como resíduo o que escapa à antecipação pelos modelos. (Schwartz, 2000a, p. 718, tradução livre)

Nesta perspectiva, procura-se dar visibilidade não apenas ao instituído, mas à gestão das singularidades a que o exercício da actividade confronta, e a que se procura dar visibilidade ou, pelo menos, reconhecer. Observamos aqui a influência da dialéctica entre a “estrutura e o conteúdo”, que serviu de reflexão a Granger (1968), e esta afirmação não é indiferente à ênfase sobre a actividade de trabalho e ao papel que lhe é reservado na história colectiva:

O trabalho é atravessado pelas questões da sociedade: o emprego, o desemprego, a evolução dos contratos e do direito, as negociações salariais. Atravessam-no também questões que lhe estão subjacentes: a mundialização, o consumo, as desigualdades, a cidadania, etc. Não é, pois, a Grande História que sobrevoa a vida modesta das pessoas que trabalham: os níveis microscópico e macroscópico da vida social interpenetram-se. No nível mais microscópico da nossa actividade, os valores que circulam na sociedade tomam forma e sentido – e reciprocamente: as questões sociais não evoluem unicamente graças à acção dos tenores da economia e da política, mas graças também à actividade de cada um de nós, como fermento de mudança. As nossas escolhas, mesmo micro, efectuadas no trabalho contribuem para dar forma à sociedade em que vivemos e vice-versa. (Schwartz & Durrive, 2003, p. 241, tradução livre)

Inscrever o trabalho na história constitui uma das proposições da abordagem ergológica, realçando que ela é construída quotidianamente, de forma mais ou menos discreta, mesmo se a história contada depura os ensaios, revestidos de maior ou menor fracasso. É também porque esta história se encontra em permanente actualização que a perspectiva ergológica se demarca da ambição de

se constituir como “disciplina”31,32. Não podemos, contudo, esquecer o seu enquadramento, até à constituição de um Departamento autónomo, no curso de Filosofia da Université d’Aix-Marseille I33, o que não terá sido resultado, obviamente, de mero acaso.

A questão que se coloca, mais do que saber se o trabalho é um objecto elegível de reflexão filosófica, é nas palavras de Schwartz (2008) se o trabalho é para a filosofia um objecto ou uma matéria estrangeira, no sentido que Canguilhem (1966/2003) lhe atribui em Le normal et le pathologique: “a filosofia é uma reflexão para a qual toda a matéria estrangeira é boa e, diremos de bom grado, para a qual toda a boa matéria deve ser estrangeira” (p. 7, tradução livre). Matéria

estrangeira, que Schwartz (2008) associa à actividade, dotada de um carácter

enigmático, e em retratamento permanente, escapando aos poderes normativos que a antecipam e às tentativas de controlo da sua variabilidade, que acabariam por neutralizá-la, quer no tempo, quer no espaço em que ela tem lugar.

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Não deixa, contudo, de ser interessante notar que apesar desta afirmação, se conseguiu manter vivo na Université d’Aix-Marseille I, como refere Schwartz (n.d.), um departamento autónomo relativo a uma abordagem que não se constitui como disciplina… Outros factores terão, certamente, pesado nesta decisão, nomeadamente, a sua evolução, os contactos privilegiados com empresas e outras organizações da região de PACA (Provence-Alpes-Côte d’Azur); a criação de duas Associações – APRIT (Association pour la promotion des Recherches Interdisciplinaires sur le Travail) e ORT (Observatoire des Rencontres du Travail); a sua ampla difusão ao nível internacional, designadamente, na área francófona – parceiros da Argélia, da Tunísia, da Costa do Marfim, dos Comores e do Quebeque – e, na área lusófona, parceiros de Portugal, do Brasil, de Moçambique e de Angola.

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O facto de não corresponder a uma disciplina no sentido epistémico do termo, mas sim a uma “disciplina do pensamento” ou a um posicionamento na análise e na intervenção em contexto de trabalho, traduz, em contrapartida, alguns custos: embora não seja encarado como um constrangimento, mas mais como uma prova de coerência epistemológica, não existem teses em “ergologia”, existem sim teses que convocam o ponto de vista da “abordagem ergológica” na reflexão e intervenção desenvolvidas, como é, aliás, o nosso caso.

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Ainda que o departamento de ergologia exista hoje como departamento autónomo, o percurso de afirmação da abordagem ergológica, nomeadamente, no domínio da Filosofia esteve longe de se revelar pacífico, como é referido por Schwartz (2000a) “(…) o que nos parece mais difícil de aceitar (…) é que certos membros da comunidade (?) filosófica se auto-atribuam o direito e a competência de definir o que constitui a matéria filosófica ‘nobre’. Nada parece mais contraditório com a preocupação bimilenária que construiu o património que recebemos de herança, para modestamente, retrabalhar. De Sócrates a Diderot, de Diderot a Dagognet, muitos grandes nomes, contra toda a ‘segregação’, reivindicaram, talvez de maneira provocatória, o direito filosófico de se aventurar no que é ‘pequeno’, ‘quotidiano’, ‘vulgar’ (no sentido clássico do termo), mesmo o abjecto” (p. 57, tradução livre), ou seja, naquilo que para outros terá um estatuto

Mas, porquê privilegiar o “trabalho” como matéria de reflexão se, como refere Durrive (2010), “a abordagem ergológica se funda sobre um ponto de vista antropológico” (p. 28, tradução livre)?

A história individual e colectiva constrói-se não porque os indivíduos se contentam em viver no mundo, mas porque, mesmo a uma escala microscópica de actividade, não cessam de o tentar transformar. Viver é tomar uma posição, é recentrar, escapando à total submissão e neutralidade face ao meio, construindo o seu modo de viver em singularidade.

A actividade humana como lugar de debate de normas – normas antecedentes e renormalizações – torna visível o drama do agir humano, um drama não reservado exclusivamente à vida em contexto de trabalho. Se este ponto de vista é, então, transversal à actividade humana, porquê a inevitabilidade de passar pelo trabalho?

É lícito afirmar que todas as actividades humanas fazem sempre apelo a diferentes usos de si (Schwartz, 2000b). Não obstante, as exigências que impõe o meio de trabalho são de natureza distinta ou, pelo menos, passando a redundância, serão talvez mais exigentes: afastando-nos de uma concepção hegemónica do trabalho, que admite a “centralidade do trabalho mercantil” na nossa sociedade (Nouroudine, 2009, p. 87, tradução livre), mas considerando a sua coexistência com uma difusão de outras formas de trabalho emergentes, é talvez mais evidente nas situações de trabalho do que noutras actividades humanas, que essas exigências traduzem formas dramáticas de uso de si (Schwartz, 2000b).

Estas dramáticas surgem no confronto, por um lado, com normas antecedentes, que visam a estabilização do meio neutralizando as suas singularidades e mantendo-se alheias à própria história dos que realizam o trabalho e, por outro lado, a estrita heterodeterminação, ao não considerar a “infidelidade do meio” (Canguilhem, 1966/2003, p. 130, tradução livre) decreta a impossibilidade de atingir os objectivos definidos e, enfim, a preservação mesmo da própria saúde. É, portanto, em função de valores que cada um procura renormalizar o seu meio, no quadro de um debate estabelecido em aderência às situações e problemas concretos a tratar no dia-a-dia.

A referência aos valores que se cruzam na actividade de trabalho constitui uma segunda justificação para que o trabalho não deixe de ser convocado quando se fala da vida e da história da humanidade. O confronto entre diferentes tipos de valores constitui um espaço privilegiado de debate no trabalho. Encontramos nesta actividade específica a oportunidade, não propriamente de identificar os valores do trabalho e reportoriá-los, mas sim de a reconhecer como lugar de tratamento dos valores. E falamos de tratamento de valores mais ou menos universais, que não exclusivos do pólo político, como por exemplo a garantia do interesse geral e dos bens comuns (Schwartz & Durrive, 2003).

Isto significa que a reflexão sobre a vida não pode desinteressar-se do trabalho e do seu contributo singular para recentrar o meio, tendo em conta o seu próprio agir. Esquecer o trabalho, independentemente da diversidade de configurações que pode assumir, é não pensar a actividade humana, de forma global.

Esta análise que justifica a referência incontornável ao trabalho na reflexão sobre a actividade humana integra a especificidade do ponto de vista da abordagem ergológica e anuncia as dimensões da actividade de trabalho que ela se propõe tratar, e que serão melhor desenvolvidas no prosseguimento deste capítulo.