• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II NEM TUDO NA MOBILIDADE É EFÉMERO: QUE

3. Desideratos de uma vida móvel: entre mobilidades, transportes, e

4.1 Políticas públicas no domínio dos transportes a diferentes escalas

4.1.1 A Europa e a construção de uma “política comum dos transportes”

O conteúdo da política comum de transportes, fixada pelo artigo 71.º, nº 1, do TCE faz referência exclusivamente ao transporte internacional, deixando o transporte nacional submetido à legislação dos seus Estados-membros. Nela são estabelecidas:

a) Regras comuns aplicáveis aos transportes internacionais efectuados a partir de ou com destino ao território de um Estado-membro, ou que atravessem o território de um ou mais Estados-membros;

b) As condições em que os transportadores não residentes podem efectuar serviços de transporte num Estado-membro;

c) Medidas que permitam aumentar a segurança dos transportes; d) Quaisquer outras disposições adequadas.

Não obstante, as diferentes opções de organização da actividade no sector, em cada um dos Estados-membros, e o facto de os interesses nacionais terem prevalecido durante muito tempo sobre os de índole comunitária, foram impedindo a plena realização da política comum de transportes, pelo menos até ao final do ano de 1992, incumprindo o previsto pelo Tratado que determinava como prazo limite para a sua entrada em vigor a data de 31 de Dezembro de 1969 (Izquierdo, 2001).

O princípio da livre prestação de serviços em matéria de transportes ocorreu a partir de Maio de 1985, em razão de dois acontecimentos quase concomitantes. O primeiro, diz respeito a um recurso interposto pelo Parlamento Europeu, a que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) respondeu, em acórdão68, condenando o Conselho de Ministros por não ter adoptado as medidas necessárias à livre prestação de serviços no domínio dos transportes internacionais, e fixado as condições que permitiriam a transportadores não residentes efectuar serviços de transporte num outro Estado-membro, ou seja, por violação de obrigações que lhe eram inerentes pelo TCE, no prazo definido

67

Apesar de se encontrar consagrada na versão do TCE de 1957, somente no início da década de 90, “essa preocupação se materializou em matéria de política comunitária: a publicação dos Livros Brancos, de directivas e regulamentos são disso exemplo” (Silva, 2007, p. 53).

(Decoster & Versini, 2009). Algumas semanas após o acórdão do TJCE, teve lugar o segundo acontecimento determinante do início da política comum dos transportes. A 14 de Junho de 1985, a Comissão apresentou um Livro Branco69 sobre o acabamento do mercado interno da Comunidade, no prazo limite correspondente ao ano de 1992.

A orientação predominante da política comum de transportes na década de 90 foi, então, a de assegurar a abertura do mercado de transportes.

Foi através do Regulamento (CE) nº 12/98 do Conselho, de 11 de Dezembro de 1997, que foram fixadas as condições em que os transportadores não residentes podem efectuar serviços de transporte rodoviário de passageiros num Estado- membro. O Tribunal de Justiça veio, então, decretar que “os transportes interiores de mercadorias e de passageiros deviam estar acessíveis a todas as empresas comunitárias, sem distinção de nacionalidade ou de local de estabelecimento” (Commission des Communautés Européennes, 1993, p. 5, tradução livre).

A prática de cabotagem70, que designa a possibilidade de uma empresa de transportes estabelecida num Estado-membro realizar serviços dentro de outro Estado-membro ou entre outros Estados-membros, sem discriminação baseada na nacionalidade do transportador, foi também fundamental na criação de um mercado interno de transportes (Garcia, 1999).

O Livro Branco sobre “o desenvolvimento futuro da política comum dos transportes”, de Dezembro de 1992, tornou visíveis outras problemáticas

69

A política comum de transportes tem evoluído e as suas orientações são concretizadas, nomeadamente, com a publicação de Livros Verdes e Livros Brancos, a que a política nacional deve estar vinculada. Os Livros Verdes têm como objectivo submeter a reflexão uma determinada problemática, reunindo o parecer de diferentes actores económicos, incluindo as colectividades locais ou associações; os Livros Brancos surgem em fases mais avançadas, definindo já uma determinada orientação a adoptar na intervenção sobre essa problemática (Decoster & Versini, 2009).

70

Fala-se de cabotagem, em Portugal, para designar os “transportes nacionais realizados por transportadores não estabelecidos no território português” (Decreto-Lei n.º 3/2001, de 10 de Janeiro, artigo 2.º). Não obstante, a prática de cabotagem, no caso específico do transporte em autocarro, está apenas “(…) liberalizada para serviços ocasionais e para certos serviços regulares efectuados em ligação com serviços internacionais” (Comissão das Comunidades Europeias, 1998). Quer isto dizer que não é admitida a cabotagem nos serviços de transporte público que abordamos no contexto da nossa tese (transportes urbanos e locais). Segundo Reis (2007), falaríamos neste caso dos transportes como um “bem não-transaccionável”, ou seja, não sujeitos à concorrência externa: “são fundamentalmente serviços ou, por exemplo, transportes. Isto é aqueles bens que, dada a natureza específica da sua oferta e do seu consumo têm o seu mercado territorialmente delimitado” (p. 158).

relacionadas com o sector, e que deveriam ser tratadas no âmbito da política comum de transportes, relacionadas com o ambiente, assim como com a necessidade de equilibrar a repartição modal e incentivar a interoperabilidade (Decoster & Versini, 2009).

A compensação dos desequilíbrios modais, tendo em conta o uso generalizado do automóvel e o seu impacto ao nível do congestionamento de tráfego, da sinistralidade, e do ambiente, voltam a constituir matéria de reflexão no Livro Branco, publicado em 2001, “A política europeia de transportes no horizonte 2010: a hora das opções”:

a ausência de um desenvolvimento harmonioso da política comum de transportes explica que, actualmente, o sistema europeu de transportes esteja confrontado com um certo número de dificuldades: crescimento desigual dos vários modos de transporte, congestionamento em determinados eixos rodoviários e ferroviários, e os efeitos nocivos para o ambiente e para a saúde dos cidadãos. (…) A predominância da estrada é ainda mais acentuada no caso do transporte de passageiros, em que o rodoviário representa 79% da quota de mercado, enquanto que a via aérea, com 5%, se prepara para ultrapassar o caminho-de-ferro, que não sai dos 6%. (p. 11)

São quatro as orientações globais que apresenta este documento: reequilibrar os modos de transporte (promoção do transporte ferroviário, e também do transporte marítimo e fluvial, cujas taxas de procura se encontram em claro desequilíbrio face ao transporte rodoviário; e criar condições para a prática intermodal); suprimir estrangulamentos (construção de ligações em falta e melhoria das condições de circulação); colocar os utentes no centro da política de transportes (promoção da segurança rodoviária, melhoria da informação prestada aos utentes e investimento na qualidade dos serviços prestados); e controlar a globalização dos transportes (desenvolvimento de intervenções que primem pela sustentabilidade, ao nível da segurança, da protecção ambiental e também da qualidade das infra-estruturas) (Comissão das Comunidades Europeias, 2001). Transversalmente a estas orientações, encontramos o objectivo mais global de promoção do transporte público, assumindo que este será o modo de deslocação mais sustentável, desde que criadas condições efectivas para que ele possa figurar entre as opções de mobilidade elegíveis pelos indivíduos.

Nem todos os objectivos parecem igualmente alcançáveis, nomeadamente, o primeiro relativo ao reequilíbrio dos modos de transporte. O Livro Branco

os transportes consubstanciava este equilíbrio como objectivo até 2010. Mas, a sua revisão intercalar71 acabou por tornar visível a dificuldade em consegui-lo no período definido.

Figura 4. Evolução da distribuição modal no transporte de passageiros de 2000-2020 (fonte:

Comissão das Comunidades Europeias, 2006).

Tal como é possível observar na figura 4, o equilíbrio na repartição modal dos passageiros está muito aquém do que havia preconizado a política comum de transportes, com uma clara preponderância da viatura individual (2000: 76%; 2010: 76%; 2020: 77%).

Na perspectiva de Mom (2009), o predomínio do modo rodoviário traduz uma viragem paradigmática em formação: “a transição da mobilidade ferroviária para uma mobilidade rodoviária esconde uma mudança de orientação do transporte colectivo para um transporte individual” (p. 32, tradução livre). A resposta à procura de uma oferta de transporte flexível, não condicionada por itinerários ou horários, revelou-se um factor determinante da transferência massiva de passageiros para o automóvel, como o traduz de forma veemente a situação actual.

A revisão intercalar do Livro Branco sobre transportes (2001) deu também visibilidade à necessidade de construção de um outro equilíbrio, embora sem o mesmo destaque que fora atribuído às questões da repartição modal, relacionado com as condições de emprego e de trabalho no sector dos transportes, de forma a garantir equidade entre os operadores de todos os Estados-membros, que poderia ser ameaçada no contexto da prática de cabotagem e pela concorrência

71

Revisão intercalar do Livro Branco da Comissão Europeia sobre os Transportes [COM(2006) 314 final].

internacional. Porém, referências mais concretas às matérias que devem ser objecto de alteração pela legislação, parecem circunscrever-se a questões relacionadas com a qualificação profissional e a questões de carácter salarial. A oferta de serviços de mobilidade susceptíveis de garantir a contiguidade das deslocações no espaço, constitui uma preocupação essencial e um dos principais eixos de acção pública na promoção do transporte público. Nesta perspectiva, tal parece ser alcançável com um investimento ao nível das infra-estruturas que lhe servem de suporte. Dizemos isto, porque esta questão tem sido amplamente discutida nas políticas europeias, desde logo no TCE, onde se consagra nos artigos 154.º a 156.º uma referência explícita às “redes transeuropeias de transportes (RTE-T)”, tendo depois sido retomada, em 1992, pelo Tratado de Maastricht, com o objectivo de articular diferentes modos de transporte e cobrir o território da comunidade europeia, assegurando uma mobilidade “sem fronteiras”72.

O Livro Branco, publicado em 2011, intitulado “Roteiro do espaço único europeu dos transportes – rumo a um sistema de transportes competitivo e económico em recursos” (Comissão das Comunidades Europeias, 201173), reforça também a importância da infra-estrutura dos transportes, assumindo que ela

(…) molda a mobilidade. Nenhuma transformação fundamental ocorrerá no sistema de transportes sem o sustentáculo de uma rede adequada, utilizada de forma mais racional. Em geral, o investimento nas infra-estruturas de transporte tem incidências positivas no crescimento económico, cria riqueza e emprego e incrementa as trocas comerciais, a acessibilidade geográfica e a mobilidade. Deve, todavia, ser planeado de forma a maximizar as incidências positivas no crescimento económico e a minimizar as incidências negativas no ambiente. (p. 4)

No período em que se tornou emergente o conceito de redes transeuropeias de transportes, em Portugal observava-se uma infra-estruturação reduzida e a opção avançada nessa altura foi, então, a de canalizar esse investimento europeu na construção de vias rodoviárias (Silva, 2007), que acabaram por potenciar uma repartição modal desequilibrada.

Contudo, a promoção de uma maior integração dos serviços de diferentes modos de transportes, não pode dispensar a intervenção das autoridades nacionais,

72

regionais e locais, como aliás é também reconhecido sob o princípio de subsidiariedade, pela Comissão Europeia: “para funcionar bem, o sistema de transportes europeu necessita de transportes locais e regionais de passageiros de boa qualidade e sustentáveis”74. Aliás, o aumento das distâncias percorridas diariamente pelas pessoas nas suas deslocações (de 17Km/dia em 1970, para 35Km/dia em 199875), sendo que muitas dessas deslocações não excedem no seu percurso, entre a origem e o destino, os 10Km, é revelador da importância que os transportes internos podem exercer nas práticas de mobilidade.

4.1.2 Para além das políticas europeias: as instituições e as políticas sub-