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A crítica aos monárquicos e o apelo à união dos republicanos

3. O 28 de Maio e a Ditadura Militar – a posição de O Democrático

3.2. A crítica aos monárquicos e o apelo à união dos republicanos

Após o sucesso do golpe do 28 de Maio e a instauração da Ditadura Militar, O

Democrático reconheceu a Monarquia (e a atividade dos seus apoiantes) como um dos

principais inimigos da República, pelo que condenou sistematicamente o regime monárquico, os seus ideais e adeptos. Ao mesmo tempo, e de forma a combater e derrotar esta ameaça iminente, o periódico apelou à união numa só família de todos os republicanos, independentemente das suas fações e sensibilidades, exortando-os a não desistirem de espalhar e praticar os ideais do republicanismo, pois só assim o inimigo realista perderia a força, permitindo que a República resistisse.

Logo em novembro de 1926, o periódico fez questão de acentuar que “o perigo monárquico” existia e um dos erros dos republicanos era precisamente o ato de subestimar ou desprezar a fação monárquica, num momento crítico de conturbação política. O período pós-golpe foi comparado à conjuntura que dera azo à contrarrevolução da Monarquia do Norte, altura em que “Paiva Couceiro, com os seus sequazes à frente, se encaminhava para o Monte Pedral para aquela obra de felonia bem conhecida”. Apesar de tudo, o perigo tornava-se agora maior, visto que, depois da Traulitânia, “o inimigo […] se refez do susto e retemperou as forças”, encontrando-se “bem organizado, forte, decidido e apto” a dar “batalha”. Tornava-se, portanto, prioridade máxima proclamar “na imprensa, nas associações, na rua, nos centros de conversa, em toda a parte” que a República se encontrava perigosamente cercada112.

De forma a expor as diferenças entre Monarquia e República, o semanário reproduziu um artigo de O Mundo, o histórico órgão de imprensa do PRP, obviamente muito crítico das outras fações republicanas. No texto tratou-se uma contenda com o

Correio da Manhã (órgão oficioso da Causa Monárquica publicado entre 1921 e 1928)

que tinha como objetivo mostrar o grande abismo que separava monárquicos e republicanos: os primeiros eram traidores, pois tinham considerado a hipótese de abrir as portas a uma intervenção estrangeira (nomeadamente se a revolução republicana eclodisse), enquanto os republicanos jamais cometeriam esse atentado à independência do país, fosse em que circunstância fosse. Tudo isto vinha a propósito da exploração pelos

jornais monárquicos sobre o caso da Nota dos Diretórios dos Partidos Republicanos – que informava as legações dos países estrangeiros que não reconheciam qualquer empréstimo contraído por Portugal no estrangeiro sem que essa decisão fosse aprovada pelo Parlamento, como previa a Constituição republicana. Uma vez que o Parlamento estava suspenso, o mesmo é dizer que esse empréstimo, a realizar-se, era “contra a lei”113.

Por outro lado, O Democrático denunciou a feroz campanha que a fação afeta à Monarquia fazia contra os republicanos: “crescem em audácia, em ferocidade, em vileza, as hostes realengas, a ponto de nas suas gazetas não hesitarem pedir ao Governo da Ditadura o fuzilamento dos republicanos como seres que têm de ser eliminados por completo da sociedade”. Neste seguimento, o jornal apelidou os monárquicos de “assassinos” e “carrascos sedentos de sangue republicano”, esperando que a Ditadura não apoiasse tais desígnios: “apesar de acalentados pela Ditadura, que tomam já como um passo para a Monarquia, os seus criminosos intentos não passarão de projetos sanguinários”114.

Numa tentativa de fazer ver aos republicanos que necessitavam de ser mais persistentes na sua defesa da República, o jornal fez o cotejo dos esforços de propaganda dos monárquicos e dos republicanos, constando que os monárquicos apostavam “numa ativa e audaciosa propaganda contra a República”, enquanto a fação republicana não tirava proveito deste meio de reação. O periódico justificou esta situação, afirmando que os republicanos tinham deixado para segundo plano os seus princípios para darem prioridade aos seus interesses pessoais – “de facto, os políticos da República têm cuidado pouco da República, talvez por terem cuidado muito de si” – não investindo tempo suficiente nas necessidades do regime. O Democrático reconheceu com tristeza esta quase apatia por parte dos republicanos, que deveriam espelhar o seu comportamento nos homens que fizeram o 5 de Outubro, mas que se descuidaram nos seus propósitos:

Perderam o hábito da propaganda e da luta. Desprezaram o contacto sempre necessário com a massa popular. Não tentaram guiar no sentido da Democracia, que outrora pregaram, a gente moça das escolas, que aí vemos a ter a Democracia

113 “Os monárquicos pediram a intervenção estrangeira”. O Democrático, nº 657, 21/01/1927, p. 1. 114 “Verdugos! Assassinos!”. O Democrático, nº 658, 28/01/1927, p. 2.

como um pecado irresgatável. E levados pelas suas ambições, pelas suas vontades, pelos seus ódios, têm feito destes dezassete anos de República um encandeamento de motivos que a têm desacreditado e arruinado115.

O jornal recusava aceitar como desculpa a objeção de que a Ditadura vigente fosse impedimento total à propagação e luta pelos ideais republicanos, afirmando que mesmo dentro de um regime ditatorial era possível a “propaganda dos princípios republicanos”, era “possível a propaganda em prol de reforma de processos e costumes condenados”, era “possível a propaganda por uma obra nova de regeneração moral, económica e financeira” que consolidasse e impusesse a República. Este texto termina com uma pergunta inquietante que reflete a frustração causada pela inação republicana: “andam os monárquicos a anunciar o fim próximo da República. Onde estão os republicanos que não sabem responder-lhe?”116.

Com efeito, nesta fase inicial da Ditadura Militar, O Democrático via a Ditadura como uma “crise” da República, e, como atrás se sublinhou, também alguns protagonistas da governação ditatorial foram incluídos nesse vasto conceito de “republicanos”, os quais evidenciavam uma particular cisão com os “antigos” republicanos. Basicamente, quem capitalizava da instabilidade vivida nas hostes republicanas eram os monárquicos que aproveitavam para lutar por diversos meios pelos seus objetivos:

Por sua vez, os monárquicos, aproveitando a confusão das forças republicanas, organizam-se e fazem concitar todos os seus ódios sobre os republicanos adversos à Ditadura, levando o seu arrojo a pedirem ao Governo a reintegração no exército dos oficiais monárquicos afastados há muito tempo, por pegarem em armas contra a República117.

Com o intento de, uma vez mais, incentivar os republicanos a atuarem a uma só voz, o periódico ressaltou o exemplo de Passos e Sousa, Ministro da Guerra, “como baluarte inexpugnável da República”, uma vez que “nas suas constantes afirmações

115 “Propaganda republicana”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 116 “Propaganda republicana”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 117 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1.

políticas”, punha “sempre em relevo a sua fé republicana” e ia “alimentando a esperança de que o perigo monárquico” deixaria “em breve de subsistir”. Por outro lado, esse Ministro garantia que o Governo de que fazia parte com as medidas que ia sucessivamente decretando salvaria Portugal “dos erros cometidos pelos antigos políticos e uma paz duradoura” seria efetivada “entre todos os portugueses”118.

Importa salientar que o grande propósito de O Democrático era incutir ânimo e motivação nos republicanos, alimentar-lhes a esperança no seu regime, apesar da insurreição militar que provocara a queda do PRP, confiando na capacidade do Governo em manter os monárquicos e as suas ambições sob controlo. Que não se desistisse da República era a súplica permanente e sistemática.

Como não poderia deixar de ser, o semanário pronunciou-se relativamente ao chamado “Golpe dos Fifis”, ocorrido a 12 de agosto de 1927, um movimento revolucionário liderado por Filomeno da Câmara e Fidelino Figueiredo, com características de radicalismo de direita. Esta tentativa, ainda que falhada, de restauração do regime monárquico em Portugal, reforçava ainda mais os receios até agora expressados pelo jornal: “os acontecimentos de Lisboa são uma consequência lógica de certos amigos da Ditadura que a todo o custo se esforçam por isolá-la de todo o apoio e de todo o sentimento republicano”. Neste sentido, o periódico retomou a já conhecida exortação: os republicanos deviam manter-se juntos, visto que a luta não deveria ser travada entre republicanos “que apoiam a Ditadura e republicanos que a combatem”, mas sim entre republicanos e monárquicos119.

No que diz respeito ao panorama da imprensa nacional, O Democrático deu conta da suspensão dos periódicos A Notícia e O Rebate, os dois únicos jornais republicanos na capital, “em consequência dos últimos acontecimentos políticos”120. O jornal revelou

incredulidade ao constatar que, em “plena vigência da República”, a imprensa republicana desaparecia “para florescerem folhas realistas e conservadoras”, oferecendo exemplos como A Voz, Correio da Manhã e Novidades. Neste seguimento, apelava uma

118 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 119 “Uma advertência”. O Democrático, nº 684, 19/08/1927, p. 1.

120 O Mundo, por exemplo, tinha publicado a sua última edição diária (nº 8879) em 3 de fevereiro de 1927

e só “voltaria a sair anualmente para garantir o título”. (LEMOS, Mário Matos e – Jornais Diários

vez mais à resiliência de todos os republicanos, neste caso particularmente no setor da imprensa, visto que a República precisava urgentemente de ser defendida nas folhas dos jornais121.

Todavia, e apesar de todos os golpes desferidos contra a República, o jornal comunicou com entusiasmo a parada militar que em 1928 teve como palco a Avenida da Liberdade, no aniversário do 5 de Outubro de 1910, presidida por Óscar Carmona. Atestava-se, a partir deste ato simbólico, que a República continuava viva e que a família republicana era ainda capaz de fazer frente às adversidades, sobretudo aos monárquicos:

As últimas manifestações levadas a efeito em Lisboa, por ocasião do 18º aniversário da proclamação da República [...] vieram provar exuberantemente que na alma do nosso povo está bem arreigado o sentimento da Democracia e que a República tem elementos bastantes de másculas energias, para enfrentar os monárquicos quando eles se dispuserem a passar à prática o que há longos meses vêm dizendo122.

De forma a criar um ambiente de união e entendimento no seio republicano, o periódico propôs que se fizesse uma espécie de “limpeza” e “saneamento” no Partido Republicano Português, eliminando do seio deste órgão todos aqueles que não estavam dispostos a dar tudo pela defesa da República. Assim, só “depois de limpinho o Partido Republicano” é que poderia existir a “união sólida e duradoura da grande família republicana” que encetaria então a “obra da República”123.

O periódico tentou sempre estabelecer comparações entre os dois sistemas, apontando os defeitos da Monarquia e exaltando as qualidades da República. Tome-se como exemplo a edição de 21 de outubro de 1929, na qual se publicou um artigo que procedia à dissecação do sistema monárquico e seus vícios ingénitos. Esse era considerado o regime “dos privilégios, das extorsões, dos roubos”, bombeado pelo “poder do escândalo, do patronato, do favoritismo” e encabeçado por “ladrões” e “salteadores

121 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 731, 03/08/1928, p. 4. 122 “Na defesa da República”. O Democrático, nº 743, 09/11/1928, p. 1.

políticos”. A Monarquia seria ainda “uma ofensa ao direito natural” e ao “direito público”, pois, ao contrário da República, não assegurava o “direito que iguala o homem pelo nascimento e pela morte”, não garantia o “direito que iguala o cidadão pela lei” e não tinha “por fundamentos a razão e a justiça”. Perante estes argumentos, o jornal considerava, redutoramente, a escolha fácil: todos os portugueses deveriam optar pela República124.

Nesta toada, as críticas à atuação dos monárquicos perante a Ditadura prevaleceriam nos tempos subsequentes, considerando O Democrático que a conduta dos realistas era pautada pela hipocrisia e pelo oportunismo:

Cercam e apoiam a Ditadura, em berratas de fingido entusiasmo, sem o menor respeito pela própria honra que lhes imporia a obrigação de não servirem a República, sem que previamente abdicassem dos seus apregoados princípios monárquicos. Aplaudem hipocritamente, em exibições grotescas de um impudor revoltante, um Governo de republicanos que todos os dias afirma a sua fé nos destinos do regime e promete ao país defendê-lo e prestigiá-lo125.

Por outras palavras, o periódico não conseguia perceber como é que os monárquicos se podiam considerar apoiantes da Ditadura se, no seu programa, esta se comprometeu a “engrandecer e prestigiar as instituições republicanas”. O Democrático foi ainda mais longe e defendeu que se a Ditadura experimentasse “correr com todos os monárquicos, desalojá-los impiedosamente de todos os lugares de confiança e mando”, veria grande parte, senão toda a opinião republicana “criar-lhe por todo o país uma atmosfera de simpatia que lhe permitisse […] preparar a transição” que se anunciava “para a normalidade constitucional”126. Claramente, este periódico enfatizava que

República e Monarquia eram dois mundos diferentes que nunca poderiam coexistir: “Republicanos para uma banda, monárquicos para outra”127. E como se pode facilmente

124 “A Monarquia – A República”. O Democrático, nº 788, 21/10/1929, p. 1. 125 “Verdades”. O Democrático, nº 807, 14/03/1930, p. 1.

126 “Verdades”. O Democrático, nº 807, 14/03/1930, p. 1.

constatar, elegia a Monarquia e não a Ditadura como o seu principal adversário, o alvo a abater, a doutrina a erradicar do país.

Na passagem do 39º aniversário da revolta do 31 de Janeiro de 1891 no Porto, o primeiro movimento revolucionário “cheio de audácia e de nobreza” que teve como objetivo implementar o regime republicano em Portugal, O Democrático aproveitou a efeméride para compelir os republicanos à ação e à defesa dos ideais postulados pelos que combateram pela República, relembrando aos republicanos do seu tempo que era por estes desígnios que deviam lutar:

Amemos e defendamos a Liberdade, combatendo o despotismo dos reis e o truculento fanatismo da reação clerical; asseguremos a igualdade dos cidadãos, reclamando a promulgação e a execução de leis sábias e justas; e procuremos, no domínio dos nossos instintos maus, na educação e na cultura do nosso espírito, a conquista definitiva da paz, da eterna e fraternal harmonia entre os homens128.

Outra estratégia adotada para alertar o círculo republicano do perigo das investidas monárquicas era o recurso ao passado histórico recente da I República. O jornal tomou como exemplo o sidonismo, encabeçado por “ditadores” com o decidido propósito de aniquilar definitivamente os partidos “contra os quais se haviam rebelado” , sendo “pouco a pouco empurrados pelos monárquicos, perdendo todo o contacto com os republicanos”. Efetivamente, sobressaia o medo de ver a Monarquia apoderar-se uma vez mais do regime, embora o periódico retomasse as palavras do Ministro da Guerra, Passos e Sousa, o mesmo que garantira que “a questão do regime” não estaria em causa129.

Neste quadro, o periódico tentava provar a incongruência dos monárquicos em querer imiscuir-se no regime vigente, nomeadamente na formação partidária que se havia formalizado recentemente130: “se quiséssemos admitir a possibilidade dos monárquicos ingressarem, com boas intenções na União Nacional, teríamos de concluir, logicamente,

128 “31 de janeiro”. O Democrático, nº 801, 31/01/1930, p. 1. 129 “Há doze anos”. O Democrático, nº 849, 23/01/1931, p. 1.

130 A União Nacional foi anunciada ao país em 30 de julho de 1930, através de um manifesto lido pelo

Presidente do Ministério, General Domingos de Oliveira, e por um discurso do Ministro das Finanças, Oliveira Salazar.

que haviam renegado a Monarquia, que muitos deles serviram em altos postos de confiança, para abraçarem desiludidos e conversos, a causa republicana”. De forma a melhor fundamentar esta sua posição, o semanário recordava: “quem serve a Ditadura, afirma o Governo, consolida e prestigia a República, e quem consolida e prestigia a República, afirma toda a gente, é republicano”131.

Deixava-se, portanto, bem claro que na vida política portuguesa não existia espaço para defensores do regime monárquico, enquanto os desenvolvimentos do poder ditatorial, designadamente a criação de uma organização de cariz partidário que se propunha substituir o pluripartidarismo parecia ser considerada menos nefasta aos desígnios dos defensores do anterior regime republicano. Isto porque não esmorecia a esperança do retorno da República, após a Ditadura cumprir o seu propósito enquanto regime transitório, afastando a Monarquia do poder. Esta esperança espelhava-se claramente nas palavras de O Democrático, mais exatamente no artigo “Alerta!”, sendo pertinente questionar se tal deriva de uma convicção sincera ou de um artifício de propaganda: “terminado o período transitório da Ditadura Militar, voltaremos – como tantas vezes os membros do atual Governo têm publicado e sonoramente afirmado – à República constitucional. À República democrática, representativa. Sem oligarquias, sem castas”. Segundo as asseverações do jornal, a República não havia cumprido ainda a sua “missão renovadora” que consistia na “criação de um Estado nítida e insofismavelmente republicano, capaz de acarinhar e defender […] as legítimas aspirações da soberania popular”. Este artigo finaliza-se com uma advertência: “terminada a obra da Ditadura, regressados de novo ao constitucionalismo – não esqueçamos o período da nossa história (1918-26), em que a reação entravou a obra de ressurgimento e consolidação republicana! Não esqueçamos… Evite-se o que trará consequências horríveis!”132

Como se verifica, o jornal evocou particularmente o período entre 1918 e 1926, ou seja, do sidonismo ao golpe militar vitorioso, como o período mais conturbado da I República cuja missão fora obstruída pela “reação” – reação monárquica, certamente, mas também reação dos setores conservadores não monárquicos e do exército, que, após várias

131 “A mesma pergunta”. O Democrático, nº 839, 07/11/1930, p. 1. 132 “Alerta!”. O Democrático, nº 841, 21/11/1930, p.1.

sublevações, conseguira derrubar o regime. O Democrático tenderia a sobrestimar, nos anos subsequentes à queda da República, o perigo monárquico, mas ao referir o período 1918-1926 tinha também em conta (além dos próprios erros dos próprios republicanos) a ameaça conservadora e antiliberal, embora não a expressasse tão abertamente, por motivos que se prenderiam com a ação da censura. Todavia, a sua mensagem de contestação à Ditadura era clara pela reiterada reivindicação de regresso ao constitucionalismo.