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4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-1936) e críticas ao

4.4. Praxis política do Estado Novo – crítica ao regime repressivo

4.4.4. Polícia Política

Segundo Maria da Conceição Ribeiro, o “processo da génese da Polícia Política no Estado Novo que, no período até 1945, tem como momento central a criação, por decreto de 29 de agosto de 1933, da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE)”, pode ser caracterizado “como uma gradual centralização das funções de prevenção e repressão de crimes políticos e sociais num organismo único”, e resultante “da fusão e reorganização de duas instituições forjadas durante a Ditadura Militar: a Polícia de Defesa Política e Social – herdeira da Polícia de Informações, também conhecida por Polícia Especial – e a Polícia Internacional Portuguesa”249. Desta forma, a delação foi prática corrente durante todo o decénio de 1926-1936.

Em janeiro de 1932, O Democrático abriu uma das suas edições com o primeiro artigo de crítica feroz à Polícia Política e aos seus delatores, comummente designados “chibos”. Numa expressão certeira, Duarte de Gusmão descreveu a delação como um expediente que criava “a traição, a desconfiança”, extinguia “sentimentos generosos”, e pouco a pouco acabava “por envilecer as classes humildes” onde era “praticada em grande

247 “A pequena imprensa”. O Democrático, nº 2015, 11/07/1936, p. 2. 248 “A pequena imprensa”. O Democrático, nº 2025, 18/09/1936, p. 1.

249 RIBEIRO, Maria da Conceição – A Polícia Política no Estado Novo (1926-1945). Lisboa: Editorial

escala”250. Para dar corpo ao seu argumento, indicava vários países que, em determinados

períodos da sua história, premiaram a delação e tiveram polícias ao serviço do regime. Dos casos apontados, destacava-se o mais recente e próximo que era o da Ditadura de Primo de Rivera, em Espanha (1923-1930), aqui denunciada por um alegado testemunho de um estudante espanhol de Direito. O académico revelava:

V. não calcula de quantos meios se cercou Primo de Rivera para se sustentar no poder. Criou uma polícia política especial, [a] «Policia de Informaciones Politicas», imagem viva da Okhrana [polícia política do czar Alexandre III da Rússia], quanto às crueldades empregadas. Às vezes, estávamos num café discutindo os acontecimentos políticos, quando nos avisavam que tivéssemos cuidado, pois que um agente nos escutava. Eles infiltravam-se entre os operários, soldados, estudantes. Além disso, tinham os chamados “informadores”, recrutados em todas as classes. Com essa abominável instituição gastou-se milhões de pesetas. Mas, apesar de tudo, a ditadura caiu como regime transitório que era251.

Perante este testemunho, o assinante do artigo concluía que a “abominável raça dos delatores” haveria de “morrer para honra da mocidade”. “Os únicos seres contra as quais a delação” seria “um direito e um dever para todos” eram “os espiões e os próprios delatores: desmascará-los” seria “prestar um serviço à sociedade”, condenando sem reservas o “emprego da delação”252.

Efetivamente, esta abordagem histórica, que visitava diferentes tempos e lugares, surgia como a melhor forma de criticar o “agora e aqui”, numa inteligente finta à censura. Embora evidente e incisivo, o expediente escapou à Comissão de Censura.

Dois meses depois, num artigo sugestivamente intitulado “Liberdade”253, o jornal

continuava a sua crítica à Situação, desta feita pela pena de Pereira de Sousa, que se lançava contra os violentos mecanismos de repressão das liberdades utilizados pelo

250 GUSMÃO, Duarte – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. Ver Anexo 7. 251 GUSMÃO, Duarte – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1.

252 GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. 253 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2.

Estado e mostrava intensa repugna pelos métodos de tortura adotados pela Polícia Política. Uma vez mais, a crítica hábil “disfarçava-se” sob a forma de exemplos e considerações de caráter histórico para melhor se eximir aos riscos do lápis azul. Senão, veja-se.

O artigo defendia que o uso da “violência para inculcar uma crença” era “sempre uma má ação”, como era “uma inépcia”: ela podia “promover a obediência mas não a aquiescência”. Neste sentido, era devido à violência que se confessavam “crimes sem se praticarem”. Bom exemplo disso havia sido a Inquisição, que “obrigou o nobre, o povo, a escumalha humilde a envenenarem-se, a guerrilharem-se mutuamente, deturpando a verdade e… tudo pelo santo nome de Deus”. Também Copérnico, no século XVI, “por afirmar que a Terra e os astros tinham movimentos de rotação, e estes uma translação em torno do nosso planeta, foi perseguido pelos jesuítas e «obrigado a desmentir» porque… tais factos estavam fora das escrituras”. A teoria que se pretendia provar reforçava-se com o exemplo de Galileu Galilei que, por adotar o sistema proposto por Copérnico, “proclamando que o centro do mundo planetário era o Sol e não a Terra, e que esta girava em torno daquele, como os outros planetas que refletem a luz solar”, foi denunciado “pelos eclesiásticos e convidado a abandonar a sua doutrina”. Contudo, Galileu não desistiu das suas ideias e uma obra que publicou depois foi considerada uma heresia. Para “escapar à fogueira foi «obrigado» a abjurar”, perante o Santo Ofício, aquela “tremenda” blasfémia, “não lhe escapando a serem-lhe partidos os dedos”. Ainda assim, apesar da intimidação, alegadamente Galileu proferiu a famosa frase, a reiterar a sua tese científica: “E pur si muove!”254.

Após a detalhada exposição destes casos, o artigo revelou o seu veredito relativamente aos métodos de tortura: “torturem, massacrem, fuzilem, que nem mesmo assim põem fim à verdade”. Na ótica do autor, era crime atentar contra a liberdade, defendendo que “a liberdade de pensamento é a mais bela das liberdades se for respeitada pelos outros”255. Tratava-se, portanto, de mais um exemplo de crítica indubitavelmente

254 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2. 255 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2.

direcionado ao regime ditatorial, por via do recurso a exemplos do passado, em defesa dos valores liberais e democráticos.

Em 1935, O Democrático transcreveu um artigo retirado do Primeiro de Janeiro, no qual se informava que o “Ministro do Interior resolveu promover a repressão de todos os jogos, incluindo os de quino, quadra, bicho e tômbola ou máquinas automáticas”. Neste sentido, ficaram “incumbidas de exercer essa repressão as polícias de Segurança Pública, Investigação Criminal e de Vigilância e Defesa do Estado”. Para além de, neste texto, se darem a conhecer as coimas que seriam aplicadas aos que desrespeitassem a lei, é mais importante realçar que “o denunciante” de tais casos de infração de “jogo clandestino” receberia, “como prémio, a importância nunca inferior a 5 contos ou dinheiro que” tivesse “perdido”256. Neste caso, O Democrático não tece qualquer comentário ao conteúdo da

notícia que transcreve. Talvez o receio da ação da Comissão de Censura tenha contido os redatores do periódico. Seja como for, esta foi a última vez que o jornal se pronunciou relativamente a este tópico.