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4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-1936) e críticas ao

4.3. A ética republicana face aos valores do regime ditatorial

4.3.3. Recusa do nacionalismo exacerbado

Trave mestra do programa ideológico preconizado pelo Estado Novo era a exaltação dos feitos históricos passados, que deveriam servir exemplo e lição para a sociedade presente, acrisolando o amor incondicional à Pátria que não deveria conhecer limites de sacrifício. Aliás, a exacerbação nacionalista era comum, mais ou menos mesclada de preconceitos de superioridade de raça, ao ideário dos regimes autoritários e fascistas que se ergueram na Europa dos anos 1920. E o surgimento deste sentimento de proteção e valorização da Nação/Pátria é facilmente explicável. Uma vez, terminada a I Grande Guerra (1914-1918), o fascismo encontrou “o seu meio de eleição no país

211 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1. 212 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1.

vencido”, a Alemanha. Surgiu como a “reação de um nacionalismo ferido”, “contra a humilhação da derrota” e contra “as ameaças” que pesavam “sobre a segurança ou integridade nacionais”. Já na Itália, apesar de fazer parte dos vencedores, o fascismo surgiria como reação “contra o desperdício da vitória”, dado que teria entrado na guerra “de má vontade”, não sentido a vitória, e acreditando ter sido “tratada com pouco caso pelos outros aliados”, principalmente do que diria respeito às disposições sobre os destinos da Europa do pós-guerra213. Neste contexto, “Salazar deu consigo cada vez mais

alinhado com as tendências dominantes no continente”214, nomeadamente com a

tendência nacionalista, inculcando na população a premissa “Tudo pela Nação, nada contra a Nação” levada a extremos.

Uma discussão sobre o nacionalismo abriu a edição de 8 de julho de 1932 do periódico em análise. O Democrático apresentou um artigo da autoria do Dr. Evaristo de Carvalho (1865-1938), um jornalista republicano215. No artigo em questão, este autor começou por debater o conceito de nacionalismo de forma prática, explicando que ser nacionalista era “colocar a Pátria no coração, acima de todas as outras com orgulho, pela sua história gloriosa e desejando-a respeitada e grande” – segundo esta definição, o autor considerava-se nacionalista, tal como se deviam considerar todos os republicanos. Evocava inclusive momentos históricos do republicanismo, relembrando que “as ideias republicanas tiveram em Portugal a sua primeira manifestação de força em 1880, na celebração do centenário de Camões – uma festa caracteristicamente nacionalista”– na qual “em torno da memória do épico, foi enaltecido, comovidamente, o génio da Raça” e a “aspiração de uma Pátria maior”. Também aquando do Ultimatum inglês de 1890 as manifestações calorosas do sentimento de nacionalismo se fizeram ouvir e “a palavra que mais alto se ouvia, por entre o rugir e o trepidar das cóleras do povo e das românticas

213 RÉMOND, René – O Século XX: de 1914 aos nossos dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1993, p. 94-95. 214 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 114.

215 Entre alguns cargos que desempenhou, destaca-se a sua colaboração com O Mundo (Lisboa, 1900-1927), o órgão por excelência dos republicanos, e depois dos republicanos democráticos, a partir da cisão de 1911- 12. Foi também colaborador dos periódicos republicanos A Pátria (Lisboa, 1911-1914) e A Democracia (Lisboa, 1921) e diretor d’O Debate (no ano da sua fundação, 1920, de 1 de abril até 19 de junho) e d’O

Rebate (de 17 de janeiro até 1 de julho de 1922), ambos da fação democrática. Desempenhou também a

função de diretor-delegado do Diário Liberal (1932-1934). (LEMOS, Mário Matos e – Jornais diários

audácias da mocidade das escolas – era a palavra República!”. Teria sido esta a “expressão verbal de toda a agitação nacional, que queria um Portugal honrado e livre, altivo e insubmisso, perante o estrangeiro”. Asseverava ainda que teria sido este alinhamento de “nacionalismo ardoroso” que “fez eclodir, no Porto, o 31 de Janeiro – alvorada gloriosa do 5 de Outubro de 1910”. Assim, e alargando a definição em questão, considerava que se o nacionalismo significava também “um grande amor pela tradição” em tudo o que ela pudesse, “inteligentemente, adaptar-se à mentalidade atual e às ideias

correntes” – repare-se, contudo, que apenas valorizava o binómio

republicanismo/patriotismo – não vendo assim qualquer razão para não se incluir nos seguidores deste conceito216. Porém, expunha no final do artigo o aspeto que o afastava do nacionalismo:

Mas se nacionalismo é o alardear de ideias e conceitos que, inconsideradamente, se foram beber ao passado, apresentando-os como diretrizes essenciais da atividade social e política da vida moderna, que, logicamente, os não pode tolerar e devem, por isso, considerar-se como elementos de entrave e perturbação – nós não somos nacionalistas217.

É, portanto, neste último parágrafo do texto, que fica clara a crítica ao nacionalismo exacerbado patenteado pelo Estado Novo. Contudo, como era prática corrente deste jornal para escapar à revisão da censura, a sua oposição ao regime é feita de forma subtil e inteligente: atacam-se os valores da Ditadura recorrendo a momentos históricos marcantes do republicanismo e nunca mencionando diretamente o Governo nacional. Desta forma, num período de opressão e repressão, este órgão da imprensa periódica sentiu-se capaz de continuar a patentear os valores da República que sempre defendera e, ao mesmo tempo, distinguiu-os das características gerais comuns da ideologia fascista de vários países, como era o caso do incentivo a uma mentalidade nacionalista pela via do recurso a feitos do passado longínquo tidos como elementos de entrave e perturbação e, portanto, inaceitáveiscomo diretrizes para a contemporaneidade;

216 CARVALHO, Evaristo de – “Nacionalismo”. O Democrático, nº 919, 08/07/1932, p. 1. 217 CARVALHO, Evaristo de – “Nacionalismo”. O Democrático, nº 919, 08/07/1932, p. 1.

desta forma evidenciava a sua repulsa por tais teorias, embora sem aprofundar e detalhar para evitar represálias. Ainda assim, embora “disfarçada”, a crítica à Situação não deixa de estar presente e evidente aos olhos dos leitores atentos.

4.3.4. A permanente defesa dos valores democráticos

Defensor dos ideais de liberdade e Democracia em tempo de Ditadura, O

Democrático recheava as suas páginas com a apologia dos valores que considerava

apropriados para aplicação prática na sociedade moderna. Tal opção representava, claramente, mais uma forma de fazer oposição ao novel regime e seu ideário.

Em junho de 1931, este semanário abriu uma das suas edições com mais um artigo de Duarte Vilhena Gusmão, no qual este autor patenteava a defesa do sistema de sufrágio universal.

O sufrágio universal é o direito de voto a todos os cidadãos, sem distinção de ideias nem de classes. Adotar o sufrágio universal é satisfazer a opinião pública sem correr perigo algum. Este sistema eleitoral era e é ainda, para as realezas constitucionais, um motivo de reprovação e de terror. A privá-lo era enfileirar-se na categoria dos anarquistas e, como se dizia então, dos mais grosseiros republicanos218.

Como se sabe, a adoção do sufrágio universal não era matéria consensual entre os homens da República, certamente da sua maioria, pois nunca o instituiu. Assim, mesmo publicando este artigo, entende-se que o periódico apresentava, provavelmente, algumas reservas em relação a este assunto. Veja-se.

O tema do voto regressou a este semanário, desta feita debatendo a questão da sua obrigatoriedade. Carlos Bana defendia que tornar o voto eleitoral um dever obrigatório faria sentido em teoria mas na prática não resultaria. O caráter de obrigatoriedade de um ato como o voto eleitoral não revestiria o eleitor de civismo e de conhecimento de causa. Assim, não contesta a premissa de que o “voto seja um dever sagrado do cidadão, em face

da Democracia”. Crê, até, “que é o mais imperioso dos seus deveres”. Porém, este só seria útil à vivência democrática desde que fosse exercido voluntária e conscientemente, uma vez que “votar por obrigação, por puro medo da cadeia”, não seria “praticar um ato político”. Desta forma, a solução para o problema da abstenção eleitoral passaria não pela instituição do voto obrigatório, mas pelo fomento da educação do cidadão, pela consciencialização da importância do exercício deste direito, através do incentivo à sua prática “pela vida da Democracia”219.

Complementarmente, o jornal incentivava à participação das camadas jovens na vida pública e política, para o total exercício dos seus direitos e deveres de cidadania, já que, segundo o artigo de Duarte de Gusmão, “participar na administração dos negócios públicos, pelo seu conselho ou pela sua atividade” seria “a vocação de todo o homem na posse dos seus direitos cívicos”. Contudo, o cidadão não deveria ser apenas maior de idade mas, também, ter adquirido por via de formação escolar o conhecimento necessário para exercer cargos públicos para depois poder “intervir sempre na vida política do seu país, orientando-se e orientando”. Neste contexto, o autor demonstrou, neste artigo, o seu apoio aos jovens democratas e sua intervenção em questões políticas: “Os estudantes nacionalistas fazem uma manifestação? Pois bem, a maior parte dos peraltas acha muito bem. A mocidade democrática faz outra manifestação, e logo é censurado o seu procedimento pelos mesmos peraltas”. Fica clara a importância que o periódico conferiu à educação e o apoio às juventudes académicas democráticas na sua luta em prol da República220.

Em 1932, o jornal apresentou um texto de defesa do internacionalismo em detrimento do “perigoso” nacionalismo acerado pelos fascismos. Lembrava o seu autor, Duarte de Gusmão: “A ideia de uma comunidade de interesses entre povos, superior aos interesses nacionais, formou-se lentamente no século XIX”, impulsionada por vários avanços: nas descobertas científicas, que encurtaram as distâncias e facilitaram intercâmbios; por um número importante de “convenções internacionais tendentes a assegurar o respeito ou a facilitar a realização de interesses comuns a várias ou a todas as

219 BANA, Carlos – “Obrigatoriedade? O Voto”. O Democrático, nº 914, 03/06/1932, p. 1.

220 GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O Democrático, nº 878,

nações”; pelo desenvolvimento dos transportes, que “deu um caráter internacional a um grande número de questões económicas”. Desta forma, o caminho da cooperação entre os povos seria a opção mais vantajosa e viável, visto que “uma das causas principais das guerras” era ainda o nacionalismo. Não obstante pudesse parecer uma afirmação paradoxal, o patriotismo não passaria de uma “«blague», palavra sem sentido”221. Neste

sentido, o artigo conclui:

O sentimento patriótico deve desaparecer ante um outro sentimento mais altruísta, o internacionalismo. A mocidade compreende bem este novo sentimento e, quando ela tomar conta do poder, a União Mundial será um facto, para felicidade dos povos peninsulares. Nós mesmo antes de sermos patriotas somos internacionalistas, cosmopolitas ou o que quiserdes222.

Fiel às suas convicções progressistas, o autor tão publicado pel’ O Democrático patenteava o valor supremo da igualdade em Democracia. Num artigo intitulado “O Povo”, reivindicava:

Quando todos se souberem servir desta palavra sem desprezo, a Democracia será um facto, porque os costumes terão acabado a sua educação. O povo é o conjunto de todos os cidadãos, à exceção dos pretendentes ao trono e dos criminosos. Tanto uns como os outros se pretendem conservar à margem dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Cada um com o mesmo título e na proporção de uma igualdade perfeita faz parte do povo223.

Neste sentido, o estatuto económico ou social não deveria condicionar a igualdade de todos os cidadãos, “desde a mais alta individualidade até ao mais humilde”. As ideias de superioridade de uns e inferioridade de outros deveriam, nesta ótica, ser erradicadas,

221 GUSMÃO, Duarte de – “A Caminho para o Internacionalismo”. O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p.

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222 GUSMÃO, Duarte de – “A Caminho para o Internacionalismo”. O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p.

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pois a Democracia só seria uma realidade quando todos se educassem “nos sãos princípios igualitários”: “sem isto, sem educação tudo é mentira, tudo é um embuste”224.

Em consequência do seu afinco na defesa e divulgação dos ideais democráticos e republicanos, O Democrático recebeu da “Direção do antigo Centro Republicano Dr. António José de Almeida” – uma “corporação republicana que, no Porto, à causa republicana” havia “aplicado os melhores esforços” – uma saudação aplaudindo a conduta deste jornal local que adjetiva de “baluarte do jornalismo republicano”225.