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4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-1936) e críticas ao

4.2. A crise do trabalho

A crise mundial de 1929 fez-se sentir também na economia portuguesa ao longo da década de trinta, mais gravemente nos seus anos iniciais:

Com a desenfreada concorrência dos produtos estrangeiros, muitos setores da agricultura e do comércio entraram em crise, sem que o crédito bancário lhes pudesse melhorar as condições de vida. Ao longo do[s] ano[s] foram muitas as casas bancárias que deixaram de satisfazer os seus compromissos em numerário170.

O desemprego desencadearia a fome e o desespero em muitos lares.

Em julho de 1931, surgiam as primeiras notícias relativamente à carestia de trabalho que assombrava todo o país. Vila do Conde não foi exceção. O jornal atestava que também na vila já se sentia o peso e as consequências do desemprego, apelando aos responsáveis da autarquia para que “procurassem junto do Governo” os meios necessários para atenuar este flagelo que se vinha a agravar. A solução passaria pela obtenção dos

169 ROCHA, Martins – “Carta ao Doutor Oliveira Salazar, Chefe do Governo Português”. O Democrático,

nº 971, 28/07/1933, p. 3.

subsídios necessários para a efetuação de obras e melhoramentos necessários na localidade que, por sua vez, estimulariam as oportunidades de emprego171. Contudo, em época de crise generalizada, tal situação não se concretizou e, segundo as colunas d’O

Democrático, a situação piorava rapidamente por todo o concelho. Através de

correspondência enviada das freguesias, revelava-se que também por lá se encontravam “bastantes operários sem trabalho, em consequência da grande crise” que avassalava “o mundo” 172, sendo cada vez maior o número de lares em que a fome já era uma

realidade173. Apesar de tudo, constatava-se com alívio que dos muitos emigrados em

França nenhum havia ainda regressado “por escassez de trabalho naquele país”174.

Perante a difícil conjuntura, a autarquia tomou providências básicas. “Em harmonia com o decreto 20.222 de 15 de agosto último”, enviaram-se “ao Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios, devidamente preenchidos, os boletins de desemprego de todos os indivíduos” da vila e concelho que se encontravam sem trabalho175.

Em julho de 1932, o jornal noticiou com agrado que a Companhia de Tecidos Rio Ave havia adquirido um terreno a norte das suas instalações “para ali ser construído um grande bairro operário, de 80 prédios, uma escola com os mais requisitos exigidos, e uma creche”176. As instalações foram inauguradas cerca de um ano depois e O Democrático

relatou os festejos com entusiasmo ao ver tal iniciativa social ser levada a cabo na vila, com o objetivo de atenuar o problema do desemprego gritante177.

Numa crítica direta a colaboradores do Estado Novo, nomeadamente do setor da Igreja, o jornal comentou sarcasticamente declarações feitas pelo Cardeal Cerejeira no livro A Igreja e o Pensamento Contemporâneo. Nas palavras d’ O Democrático, “há uma passagem, francamente, com a qual concordamos em absoluto e que não podemos deixar de aplaudir com entusiasmo: a de S. Exª inculcar o jejum com tanta oportunidade para a

171 “Notas. A falta de emprego”. O Democrático, nº 872, 24/07/1931, p. 1. 172 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 4. 173 “A falta de trabalho”. O Democrático, nº 914, 03/06/1932, p. 2. 174 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 4. 175 “Desempregados”. O Democrático, nº 877, 04/09/1931, p. 2.

176 “Novas construções. A fábrica de tecidos Rio Ave vai construir um grande bairro”. O Democrático, nº

918, 02/07/1932, p. 1.

época de crise que atravessamos”178. Considerando o tema do jejum extremamente

inapropriado nos dias que corriam, o periódico escarneceu desse incentivo de índole religiosa:

O jejum, porém, inculcado por sua Eminência, não teve só em vista, como devem ter suposto muitos pedreiros livres, poder vir a prestar assim com ele, um benefício enorme aos indivíduos que se encontrem desempregados, ou aos que mal ganhem para se alimentarem convenientemente, beneficio que, como o leitor deve ter compreendido, consiste em os fazer esquecer, ao jejuarem, as agruras porque venham passando179.

Nos inícios de 1932, o semanário apresentou um artigo de Duarte de Gusmão180, que apresenta uma análise geral sobre a crise que atravessava a Europa, revelando algumas propostas de resolução, sobretudo para o caso português. A evolução industrial era considerada um dos fatores que contribuíra para o aumento da amplitude das crises de produção e desemprego. “Na indústria antiga o mal tinha menos importância”, visto que, “dada a pouca extensão das oficinas e a escassa concorrência, as oscilações revestiam menos amplitude e os estabelecimentos desapareciam lentamente dando ao operário tempo para procurar colocação”. Porém, no século XIX, o desemprego depressa começou a tomar proporções graves, devido à “concorrência mundial ativa que fez aparecer a superprodução; à descoberta de novas máquinas, que deixaram, bem depressa” um elevado número de operários sem ocupação, “com a agravante de que tornou desnecessários os operáriosque se haviam especializado num trabalho determinado e que não podiam dedicar-se, em muitos casos, a outra ocupação”; e, finalmente, devido “à concentração de grandes massas de operários nas regiões e centros fabris”. Efetivamente, o desemprego encabeçava a lista dos problemas de inícios dos anos 1930, para o qual

178 VAGUEIRO, H. M. – “Ao de leve. De bom humor”. O Democrático, 05/08/1932, p. 1. 179 VAGUEIRO, H. M. – “Ao de leve. De bom humor”. O Democrático, 05/08/1932, p. 1.

180 Foi um “académico” (O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p. 1) e opositor da Situação que chegou a ser

preso a 20 de fevereiro de 1936 (Duarte Vilhena Coutinho Feio Ferrery de Gusmão. Memorial aos presos

e perseguidos políticos, 45º aniversário do 25 de Abril. Disponível em <https://www.memorial2019.org/site/presos/duarte-vilhena-coutinho-feio-ferrery-de-gusmao> [acesso em 19/09/2019]).

ainda não se havia colocado “em prática remédio algum”. Entre algumas das soluções apresentadas por alguns teóricos mundo fora, o autor destacava a redução das horas de trabalho e a supressão das máquinas pelos piores motivos. A seu ver, a redução do horário de trabalho poderia, na realidade, “produzir resultados em determinadas indústrias, como na dos transportes e naquelas em que o trabalho se executasse sem o auxílio de máquinas, como na da edificação” mas, ainda mesmo nestas, oferecia “o inconveniente de elevar os preços dos produtos, tornar mais difícil a vida dos operários ou restringir a produção”. Por outro lado, defendia que a máquina, ao invés de ser destruída, deveria antes ser aperfeiçoada, contudo, não deveria pertencer “ao patrão”, mas sim a quem a dirigia, “como a terra a quem a trabalha”. Dado que tais premissas não tinham ainda “aplicação prática viável”, invocava o importante papel do Estado no auxílio da população em necessidade, neste caso os “sem trabalho”, através de duas medidas que considerava justas: “pedir ao Sr. Ministro das Finanças que seja distribuído urgentemente […] [um] subsídio [e] solicitar do Governo que os reformados que recebam mais de 300$00 mensais não possam desempenhar outros cargos”.O artigo não terminava sem o seu autor afirmar que as reivindicações dos desempregados eram justas, visto que estes pediam justiça e não esmolas181. Este discurso espelha, claramente, como se pode constatar, uma posição progressista, até socialista, que o semanário decide divulgar, embora essa não pareça ser a sua posição ideológica predominante, se bem que o contexto de crise económico-social profunda o leve a destacar a luta do movimento operário internacional no combate à crise e às injustiças sociais. Noticiou, por exemplo, a contestação aguerrida dos operários em Espanha que, perante a grave crise, procederam à criação de sindicatos extremistas numa luta por melhores condições, assistindo-se então à formação de associações operárias inspiradas no princípio da emancipação económica, adotando a forma de sindicatos profissionais182:

Conforme vimos, os operários enfileiram-se, de preferência, nas agrupações extremistas e lançam mão dos meios violentos para conseguirem o que os

181 GUSMÃO, Duarte de – “A crise do desemprego”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 2. 182 “O movimento proletário espanhol”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 1.

Governos prometem sempre para lhes inspirar confiança, mas nunca cumprem: a proteção dos desempregados e inválidos183.

A situação vivida no Chile também foi realçada. À semelhança de Espanha, os operários chilenos organizavam-se em sindicatos e reivindicavam junto do Governo melhores condições de trabalho e mais direitos. A situação era deveras delicada, uma vez que os tumultos se sucediam, assim como as deportações. Enfim “o descontentamento” lavrava “entre o proletariado”184.