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Os deficientes cuidados de higiene: uma ameaça à saúde pública

6. O Democrático e as representações de Vila do Conde

6.3. Principais melhoramentos e reivindicações locais

6.3.2. Os deficientes cuidados de higiene: uma ameaça à saúde pública

As arcaicas e desadequadas práticas de higiene de séculos passados assombravam a Vila do Conde do século XX. Nas palavras de Carmo Reis, os perigos inerentes à não

321 “A nossa praia”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 1. 322 “Pela praia”. O Democrático, nº 1065, 05/07/1935, p. 4. 323 “A Praia”. O Democrático, nº 1073, 30/08/1935, p. 1. 324 “A nossa praia”. O Democrático, nº 971, 28/07/1933, p. 2.

modernização dos cuidados de salubridade colocavam em grave risco a saúde pública dos vila-condenses:

O século XX prolonga o século XIX. As condições da saúde não são bastantes para dilatar significativamente a esperança de vida. Permanecem as carências de higiene no quotidiano do povo. No concelho e na vila, onde ainda não existe água canalizada nem esgotos, o perigo de contaminação ameaça pessoas de todas as idades. O princípio do século não traz consigo horizontes radiosos. São grandes as impotências perante a doença e a epidemia. Prevalecem velhos hábitos de cura doméstica, o recurso á superstição e bruxaria. No trabalho em terra e no mar não há segurança. A morte é espetro que não foge da vida quotidiana325.

Logo no início de 1926, o jornal apontou a falta de higiene como um dos aspetos mais urgentes a melhorar. Vila do Conde havia sido considerada, “por um decreto de Governo da República”, uma localidade de turismo. Contudo, apesar de receber este reconhecimento como uma honra, o periódico considerava que o concelho não apresentava ainda as condições necessárias para ascender totalmente a esse estatuto, particularmente no que dizia respeito às práticas de higiene urbana, tanto habitacional como individual. Neste contexto, elencou as razões que faziam de Vila do Conde uma localidade com padrões de higiene abaixo dos padrões novecentistas. Por um lado, a população não tinha ainda “água em quantidade suficiente para o seu consumo diário e com certas e determinadas condições de qualidade também”. Por outro, “uma terra para poder ser considerada higiénica” era preciso que fosse “limpa”, o que abrangia tanto a via pública como os complexos habitacionais. Relativamente à primeira, o jornal exigia maior cuidado, visto que a via pública estava invariavelmente repleta de excrementos de animais domésticos e de tração, assim como de resíduos corporais, nomeadamente expetoração de indivíduos potencialmente portadores de doenças contagiosas, isto é, quem passava “pelas ruas da vila, às vezes até nas principais” encontrava “verdadeiras montureiras” onde se juntavam “materiais orgânicos em decomposição, até cheirar mal”.

Apesar de se considerar que a Câmara Municipal devia ser a grande promotora de eficazes normas de higiene no município, o jornal reconhecia que numa região com cerca de 7.225 habitantes não se podia esperar que os problemas de higiene fossem resolvidos “exclusivamente a cargo da Municipalidade”. Mais uma vez defendia como essencial investir na educação da própria população, a quem deviam ser incutidos princípios básicos de higiene. Assim, era necessário que a Câmara Municipal e a população juntassem esforços para tornar a cidade mais limpa, cabendo à edilidade “dotar a terra com o que é absolutamente indispensável à prática da higiene” e à população aprender a não deitar todo o tipo de lixo para a via pública, pois tal atitude propiciava a propagação de doenças que punham em risco a saúde pública.

O próprio jornal pretendia colaborar na resolução do problema e, para tal, encetou uma missão de sensibilização para a promoção de melhores práticas de higiene junto da população. Avultava entre as suas preocupações a questão da limpeza e higiene habitacionais, divulgando didaticamente uma espécie de tutorial de asseio doméstico, explicando passo a passo os procedimentos a seguir e os produtos a utilizar de forma a manter a casa limpa326. Mas contribuiu também com uma série de propostas a serem adotadas pelo órgão supremo do município. Assim, a Câmara Municipal devia “dividir a vila em setores – cada um naturalmente constituído por um determinado número de habitantes – e em cada um daqueles mandar assentar um depósito fixo”, “onde cada habitante” fosse “lançar diariamente” o seu lixo. Advertia para que o reservatório se mantivesse bem fechado e que o pessoal da limpeza camarário teria a seu cargo varrer o setor e esvaziar o respetivo depósito327.

Firme no seu propósito de incitar à mudança e contribuir para o melhoramento das condições de higiene do município, O Democrático também não se inibiu de tecer duras críticas à prestação camarária neste domínio. Visou, por exemplo, os serviços de limpeza pública que não satisfaziam os requisitos básicos para manter a vila limpa, visto que em “certas ruas” já há muito não passava “a vassoura municipal, como por exemplo na calçada e escadas de S. Francisco, na travessa 5 de Outubro [e] no Largo do Estaleiro”.

326 “Coisas mínimas de higiene”. O Democrático, nº 615, 20/02/1926, p. 2. 327 “Coisas mínimas de higiene”. O Democrático, nº 612, 23/01/1926, p. 2.

Vários locais encontravam-se numa “imundice”, até mesmo pontos de culto religioso, como era o caso da parte exterior da Igreja Matriz, pois havia quem fizesse “de um templo daqueles retrete ou mictório sem a menor sombra de consideração por ele”, o que era revelador da “mais absoluta ignorância” e da mais “completa selvageria”. Dado este cenário, o jornal desabafava, indignado: “Com franqueza, não sabemos para que serve tanto polícia e tanto zelador na nossa terra”328.

Inevitavelmente, as reivindicações do periódico expressas numa linguagem contundente chegaram “aos ouvidos” das entidades competentes superiores do município, tendo surtido efeito. Assim, no mês seguinte a esta campanha, o periódico informou que os serviços de higiene da vila seriam “intensificados”, sendo que a subinspeção de Saúde teria já iniciado visitas a hotéis e restaurantes, para que nos mesmos fossem “introduzidos os melhoramentos necessários”. Adicionalmente, seria também “posto em prática o serviço permanente de limpeza das vias públicas e remoção do lixo para lixeiras fora do centro da vila”329.

Todavia, a situação esteve longe de se resolver e, nos anos seguintes, O

Democrático continuou a denunciar o estado de conspurcação da vila, apontando diversos

casos para os quais pedia a intervenção da Câmara Municipal. A “lixeira” que afogava a rua Joaquim Maria de Melo era um desses focos, pois a “imundice” já transbordava “da embocadura de uma congosta” que ali existia, avançava “para o passeio daquela rua”, e corria ao longo do mesmo, afetando locais e visitantes, já que “este cenário” estava “precisamente montado defronte à Escola de Rendilheiras, estabelecimento do Estado”, e que de um momento para o outro poderia ser visitado por entidades oficiais330.

Outro fator que na ótica do periódico contribuía para a sujidade nas ruas era a presença de cães vadios, pois além do problema óbvio dos dejetos na via pública, esses animais colocavam em risco a segurança da população e conferiam mau aspeto à localidade, pelo que sugeria que tanto os funcionários da Câmara como a própria polícia se encarregassem de os recolher, retirando-os das ruas da vila331.

328 “Limpeza Pública”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 2. 329 “Higiene Pública”. O Democrático, nº 676, 18/06/1927, p. 3.

330 “Providências. Duas lixeiras”. O Democrático, nº 751, 05/01/1929, p. 4. 331 “Cães vadios”. O Democrático, nº 800, 25/01/1930, p. 3.

Percebe-se que o peso das reivindicações aumentava (assim como a gravidade da situação relativa à saúde pública) quando o semanário publicou uma lista de determinações relacionadas com a higiene pública elaborada pela subinspeção de Saúde do concelho por ordem da Direção Geral de Saúde. Advertia-se, logo inicialmente, que “todas as faltas de cumprimento” das determinações mencionadas seriam “punidas com a multa de 200$00 a 300$00, a favor dos cofres do Estado”. Entre as instruções deste documento destacavam-se os cuidados de limpeza a adotar em locais pululados por grandes quantidades de moscas e outros insetos, uma vez que estes transmitiam ao Homem “muitas doenças graves”. Pelo facto de o concelho ser fortemente ruralizado muitas das advertências relacionavam-se com os cuidados de higienização na atividade agrícola332.

A questão turística era sempre tida em conta pelo jornal que explicava que o lixo amontoado em algumas das principais artérias da localidade limitava a atratividade de uma das mais proeminentes atividades económicas de Vila do Conde – a zona balnear, junto às praias, que seduzia os turistas na época estival:

O nosso bairro balnear está simplesmente indecente, amontoando-se o lixo pela rua Bento Freitas abaixo. Esta rua está em tal estado que, há dias, veio uma família procurar casa para passar a época balnear e, perante aquela limpeza, desistiu e lá foi para outra praia, fazendo um triste comentário: «Quando isto é no verão, o que será no inverno». [Outro] comentário de um banhista que já se encontra entre nós: «Este lixo já é meu conhecido; deixei-o cá em outubro passado…»333

Dando voz a protestos da própria população, este periódico mencionou que A

União, outro semanário local, publicara nas suas colunas uma carta de um habitante da

rua Joaquim Maria de Melo “a reclamar por causa do lixo” que estava “acumulado na viela dos Gatos fazendo, assim, coro com as insistentes reclamações” que O Democrático

332 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 812, 19/04/1930, p. 2.

tinha vindo a fazer sobre o importante assunto da limpeza e saúde públicas, provando que esta preocupação se generalizava nos órgãos da imprensa periódica local334.

Em bom rigor, a falta de salubridade não se verificava apenas nos edifícios habitacionais particulares e na via pública. Também os estabelecimentos públicos que manuseavam géneros alimentares enfermavam do mesmo problema. E a comprovar, uma vez mais, esta situação, O Democrático publicou a correspondência da freguesia de Mindelo, requerendo que o semanário chamasse a atenção do subdelegado da Saúde, André dos Santos, relativamente “ao estado anti-higiénico” em que se encontravam “instalados vários talhos em diferentes freguesias”, pois que alguns deles mais pareciam “aidos de gado do que talhos”, ao contrário do que as posturas municipais determinavam335.

Nesta conformidade, o periódico insistiu na urgência de execução de “uma rigorosa fiscalização” sobre “os géneros destinados ao consumo público, nomeadamente ao peixe, à fruta e às carnes”, sem esquecer as “más condições de higiene no matadouro municipal”. A título de exemplo, o periódico expôs algumas ações precisamente no tocante a práticas de fiscalização regular aplicadas em Matosinhos, apelando que o mesmo fosse implementado em Vila do Conde, sobretudo relativamente aos bens de primeira necessidade336.

Com efeito, a carne e o leite estiveram na mira d’O Democrático que denunciou frequente e vivamente a “deficiência de fiscalização no gado que pela vila e freguesias do concelho” se abatia “para consumo público”, considerando-a uma das principais ameaças à saúde pública. Apesar de estar estipulado por lei que a matança do gado bovino devia ser obrigatoriamente efetuada no matadouro municipal, havia proprietários que continuavam a matar “clandestinamente as outras qualidades, especialmente os suínos, destinados ao consumo público”. A comprovar a situação, o jornal publicou relatos de casos específicos de animais que, apesar de visivelmente enfermos – atingidos por meningite ou com membros partidos em consequência de outras doenças – eram abatidos pelos proprietários e a sua carne colocada à venda em locais de comércio público. De

334 “Notas. Limpeza”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 1. 335 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 623, 15/05/1926, p. 3. 336 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 880, 25/09/1931, p. 2.

maneira a mostrar como o município deveria lidar com este tipo de situações, o semanário evidenciou o exemplo de medidas adotadas na Maia, nomeadamente a construção “de um matadouro com todos os requisitos higiénicos” imprescindíveis e a “municipalização dos serviços de matança”337.

Quando a tão desejada fiscalização de alimentos como o leite e a carne era efetuada, os resultados obtidos eram devastadores o que enfatizava a premência de controlos regulares. Com efeito, apareceu inesperadamente em Vila do Conde “uma brigada de funcionários da fiscalização dos géneros alimentícios” que efetuou uma “larga colheita de amostras de leite” e carne, destinados ao consumo público338. No que diz

respeito às amostras de leite recolhidas e posteriormente remetidas a Lisboa a fim de serem submetidas a análise, verificou-se que dez “eram impróprias para consumo por falsificação”. As várias leiteiras infratoras foram julgadas, em tribunal especial, sendo- lhes aplicadas multas a serem pagas no prazo de 5 dias “sob pena de, não o fazendo, recolherem à cadeia 6 meses”. Note-se que O Democrático fez questão de publicar os nomes completos e freguesias de residência de todas as “mixordeiras” prevaricadoras, com o intuito de fazer das mesmas um exemplo de humilhação pública, dada a gravidade dos seus atos339.

Nos inícios de 1936, o jornal transcreveu integralmente um artigo de O Cávado – periódico de Esposende – no qual se evidenciava a carência de higiene e asseio da população que, naturalmente, O Democrático acreditava aplicar-se também aos vila- condenses. Apontava-se a mentalidade retrógrada e absurda de grande parte da população que se mantinha avessa a hábitos de higiene pessoal, pelo que o banho deveria ser obrigatório tal como a vacina, tal era a “imundice” que se propagava340.

Com efeito, a par das críticas à falta cuidados sanitários a nível dos espaços exteriores e dos produtos alimentares, também as recriminações às práticas de higiene da população pululavam as colunas deste periódico durante toda a década de 1926-1936,

337 “A municipalização e rigorosa fiscalização da matança do gado para consumo público é uma

necessidade”. O Democrático, nº 920, 15/07/1932, p. 2.

338 “Fiscalização de géneros”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 3. 339 “Mixordeiras”. O Democrático, nº 973, 11/08/1933, p. 2.

denotando-se a sua frustração em não assistir a qualquer evolução positiva das mentalidades.