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2. Das origens da Ditadura Militar aos primeiros anos de afirmação do Estado Novo

2.2. O Estado Novo – a formação da nova ordem

2.2.2. Ideário e mecanismos de afirmação do salazarismo

Efetivamente, António de Oliveira Salazar foi uma personalidade extremamente conservadora. Grande ativista, enquanto estudante, do Centro Académico da Democracia Cristã e, mais tarde, do Centro Católico, sempre repudiou os exageros republicanos, procurando manter uma amigável relação com os monárquicos e com os adeptos do Integralismo Lusitano. Esta faceta de Salazar teve evidentes repercussões no sistema político que liderou. As suas ideias provinham de “doutrinas católicas e contrarrevolucionárias, na sua maioria retiradas de encíclicas papais e de pensadores

57 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

História do Estado Novo, vol. II, p. 868.

58 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 131-133.

59 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

franceses como Gustave Le Bon e Charles Maurras [ideólogo da Action Française], sendo mais tarde atualizadas por Henri Massis e Jacques Bainville”60.

Na verdade, o Estado Novo distinguiu-se, entre os demais fascismos, pelo seu caráter profundamente conservador e tradicionalista. Valorizou conceitos e ideais de moralidade que jamais poderiam ser questionados, tais como a conhecida trilogia salazarista “Deus, Pátria, Família”. O regime enalteceu o mundo rural, visto como um refúgio seguro da virtude e moralidade numa sociedade consumida pelos vícios típicos dos grandes centros urbanos e industriais. A mulher – por exemplo – viu-se reduzida a um papel passivo dos pontos de vista económico, social, político e cultural, devendo ser uma mãe e esposa submissa que vivesse apenas em função do marido e dos filhos, ao mesmo tempo que cuidasse do lar.

Por outro lado, a evocação de tempos e glórias históricas do passado sobressai na doutrina salazarista. “A sociedade medieval foi escolhida como o ideal a aspirar” realçando-se eventos como a “reconquista cristã” e a importante ideia de que “ao longo da Idade Média se desenvolvera uma sociedade bem organizada e hierárquica, na qual considerações espirituais eram tidas, tanto por governantes como por governados, como o cerne da existência humana”. Isto comprova-se com o investimento por parte do Estado “na conservação e restauro de monumentos medievais, elos vivos com uma época que segundo Salazar, tinha lições importantes para o presente”61.

Ainda de acordo com as tendências então em voga, o Estado Novo perfilhou um nacionalismo exacerbado. Erigiu em desígnio supremo da sua atuação o “bem da Nação”, expresso no slogan “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. Assim, o nacionalismo era tido necessário para “manter a sociedade portuguesa unida face às dificuldades”, tal como seria um mecanismo fundamental para “ultrapassar a luta de classes”62.

Seguindo a mesma linha, também o corporativismo se revelava fundamental para manter a unidade da Nação e para fortalecer o Estado, negando o divisionismo fomentado pela luta de classes marxista e a noção de “indivíduo” consagrada pelo liberalismo político. O corporativismo concebia a Nação representada pelas famílias e por organismos

60 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 107. 61 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 108. 62 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 109.

específicos, à guarda dos quais os indivíduos se agrupavam conforme as funções que lhes competissem desempenhar na sociedade em prol do bem comum. As corporações incluíam, por exemplo, instituições de assistência social e caridade, as universidades e associações científicas, literárias e desportivas, as Casas dos Pescadores, as Casas do Povo, os Sindicatos Nacionais e os Grémios63.

Em termos políticos, o corporativismo não criou grande impacto, visto que “as suas organizações nunca foram capazes de falar pela nação”. No campo da economia, os trabalhadores foram tomados pela máquina corporativa na forma dos sindicatos nacionais, ou seja, viram-se desprovidos da sua independência. De facto, “a máquina corporativa tinha como funções prioritárias exercer uma forma de controlo social, desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado64.

Por outro lado, o corporativismo era também parte de um “programa político católico” que Salazar muito prezava. O objetivo primordial seria, após a perseguição da República à Igreja, “reconquistar a adesão da população” à religião, “permitindo à Igreja liberdade de ação espiritual”65.

Neste contexto, a longevidade do Estado Novo pode explicar-se pelo conjunto de instituições e processos que, de forma mais ou menos eficaz, conseguiram enquadrar as massas e obter a sua adesão ao projeto do regime.

Em primeiro lugar, destaca-se o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), criado em setembro de 1933, tendo o Estado Novo criado o seu “mais diversificado, profundo e duradouro instrumento” de penetração nos vários espaços de produção cultural. Habilmente dirigido por António Ferro, concebeu um projeto totalizante que fez de artistas e escritores instrumentos privilegiados da inculcação e da propaganda do ideário do Estado Novo66.

Recorreu-se, também, a organizações milicianas, entre as quais se destaca a Mocidade Portuguesa. A inscrição era obrigatória para todos os estudantes dos ensinos

63 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, vol. XII. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 97.

64 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p.113. 65 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p.113.

66 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

primário e secundário e destinava-se “a estimular o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do caráter e a devoção à pátria, no sentimento da ordem, no gosto da disciplina e no culto do dever militar”67.

Realmente nada escapava à esfera do Estado Novo e a criação da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), em 1935, prova exatamente isso. Tinha como finalidade controlar os tempos livres dos trabalhadores, providenciando atividades recreativas que possuíam como pano de fundo a moral oficial defendida pelo regime68.

Por outro lado, como outros regimes ditatoriais, o Estado Novo rodeou-se de um aparelho repressivo que amparava e perpetuava a sua ação.

A censura prévia à imprensa, ao teatro e à rádio, enfim, a todas as áreas de produção cultural e informativa, abrangeu assuntos políticos, militares, morais e religiosos. Era ao “lápis azul” da censura que competia a proibição e difusão de palavras e imagens consideradas subversivas para a manutenção da ideologia do Estado Novo. Efetivamente, pouco ou nada escapava às malhas apertadas deste sistema de repressão:

De tão lavados pela censura, os jornais chegavam às mãos dos portugueses como se viessem de um país em que não acontecia nada, e daí que se parecessem todos uns com os outros, a ponto de podermos dizer que, na monotonia, todos eram iguais, porque todos publicavam apenas o que lhes era consentido pela Censura69.

Também a criação de uma polícia política foi vista como indispensável para a manutenção do regime. Em 1933, nascia a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), que posteriormente seria transformada em PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e, finalmente, DGS (Direção Geral de Segurança). Este organismo ficaria responsável por perseguir, prender e interrogar qualquer possível opositor à ditadura salazarista, sendo a sua atuação caracterizada “pelo uso permanente de meios

67 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 400-401.

68 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 400.

69AZEVEDO, Cândido de – A Censura de Salazar e Marcelo Caetano: imprensa, teatro, televisão,

violentos e por uma contínua e permanente violação da legalidade”. Efetivamente, o recurso à tortura “assumiu um carácter sistemático, constituindo uma forma regular de obter informações para os processos por crimes políticos”70.

Assim, foi através do pulso forte de Oliveira Salazar e dos mecanismos ideológicos e politico-repressivos aqui sucintamente expostos, entre numerosos outros, que o Estado Novo vigorou em Portugal durante 41 anos, sobrevivendo ao próprio ditador que o criou. Não obstante as várias crises que necessariamente o abalaram (uma das últimas e mais determinante para o seu fim foi a Guerra Colonial, iniciada em 1961), permaneceu invicto desde a aprovação da Constituição em 1933 até ao 25 de Abril de 1974, quando foi derrubado pela Revolução dos Cravos, sendo então instauradas em Portugal as liberdades inerentes a uma Democracia.

70 RIBEIRO, Maria Conceição – “Polícias Políticas”, in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.)